EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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"Ser vegetariano não é comer saladinha"

Quem afirma isso, de forma irônica, é o chef de cozinha Augusto Pinto, que pilota o Goa Gourmet Vegetariano, um descolado e bem freqüentado restaurante no bairro de Pinheiros que subverteu o clichê da culinária vegetariana ao servir pratos que fogem da surrada receita natureba, popularizada na época hippie, de arroz com lentilhas e soja. Ou da trivial saladinha, como muitos imaginam. Nem os garçons do lugar se vestem com o visual de um típico bicho-grilo. “Ser vegetariano hoje é mais do que um estado de espírito, significa incorporar outros conceitos, como o compromisso com a sustentabilidade, por exemplo”, ensina ele.

 

No Goa, o preço único do almoço dá direito a entrada, prato principal (se o cliente quiser, pode pedir mais meio prato), suco natural e sobremesa. As opções vão de uma deliciosa feijoada vegetariana (ensopado de feijão com legumes, proteínas vegetais, tofu e seitam) a uma lasanha vegetariana de dar água na boca. “O cozinheiro trabalha com a memória degustativa, para se lembrar do sabor e da textura do alimento”, explica o paulistano Augusto, 47 anos, que volta e meia vai para a cozinha também. “Um prato é como uma aquarela de ingredientes, uma tela para se pintar. A comida tem o condão de produzir ótimas relações afetivas”.

 

Dá para afirmar, sem medo de errar, que o sucesso da casa e seu menu inventivo e bem contemporâneo é resultado não só da vocação para a gastronomia de Augusto como de uma trajetória de vida cheia de experiências. No início dos anos 1980, então adolescente cheio de dúvidas, passou no concorridíssimo vestibular da Escola Preparatória de Cadetes do Ar, na cidade mineira de Barbacena, classificando-se entre os trezentos aprovados em meio a trinta mil candidatos.

 

Durante os três anos do curso, ele se diferenciava dos colegas nem tanto pela facilidade com que dedilhava um violão ou cantava MPB, mas pela habilidade que exibia na cozinha. Sua família tinha tradição na área de gastronomia. O avô havia sido um inveterado boêmio no Rio de Janeiro dos anos 1930 e seu pai chegou a comandar uma churrascaria nas décadas de 1960 a 80.

 

Logo após abandonar a incipiente carreira militar, estudar publicidade por um ano na ESPM – Escola Superior de Propaganda e Marketing e trabalhar como contato publicitário, decidiu fazer as malas e desembarcar na Europa, onde permaneceu por três anos. O quartel general era Londres, mas, sempre que possível, escapulia para Marrocos, Portugal, Holanda, França, Espanha e outros países vizinhos.

 

Para sobreviver, depois de perceber que seu inglês não era suficiente até para a prosaica função de lavar pratos em restaurantes, arriscou-se a tocar violão nas escadarias do metrô londrino. Foi quando descobriu, pela indiferença dos transeuntes que mal o percebiam em Picadilly Circus, que havia um esquema clandestino montado para os músicos de rua. Não era qualquer ponto que funcionava. Só conseguiu furar o bloqueio ao conhecer outro músico brasileiro, que ensinou o caminho das pedras.

 

No divã. A virada, no entanto, aconteceu ao conhecer o maestro Carlos Galvão, que estava recrutando músicos para compor um grupo brasileiro naquele país. “Nós nos apresentamos no Royal Festival Hall, em uma das mais importantes salas de concertos de Londres na época”, recorda. Galvão, porém, acabou convocado pelo então presidente Sarney para voltar ao Brasil e dirigir a Universidade de Música de Brasília. Sem outra opção, Augusto juntou-se a uma banda colombiana de salsa. “Chegamos a tocar num hospital de Amsterdã, ficamos no pátio e os doentes acompanhavam das janelas de seus quartos”, conta. Alguns imprevistos depois, se viu sozinho em Amsterdã, quando chegou a passar fome e dividir apartamento com um chileno viciado em heroína.

 

Em 1987, após conhecer a primeira mulher, uma pernambucana de passagem por Londres, mudou-se com ela para Tenerife, nas Ilhas Canárias. No arquipélago espanhol, por quase um ano, tocou bossa nova em hotéis para turistas ingleses. Então retornou para o Brasil e casou-se formalmente. Teve um filho, atualmente com 18 anos, apaixonado por literatura russa. Sem espaço para tocar em bares, no complicado final do governo Sarney, passou a vender sanduíche natural e outros quitutes, durante a semana em escritórios comerciais em São Paulo, e no litoral paulista, aos sábados e domingos. Quem o acompanhava era o fotógrafo e artista plástico espanhol David Dalmau, hoje nome conhecido no circuito das artes visuais e seu sócio no Goa. 

 

Foi nessa ocasião que uma amiga o apresentou para o consultor cultural Yacoff Sarkovas, dono da Articultura, que o contratou para ser produtor executivo da empresa. Augusto estreou no espetáculo Elsinore, um concerto cênico dirigido por William Pereira. “Nunca mais vou me esquecer das montagens e desmontagens do cenário, era coisa de gente maluca”, diverte-se. Após breve período na nova atividade, preferiu trabalhar por conta própria e abriu a sua produtora, a APPART. Um de seus feitos foi pilotar a elogiada restauração do Páteo do Colégio, além de ter coordenado turnês e apresentações internacionais de músicos como Sérgio Mendes (1993, em Porto Rico) e Toquinho (1994, na Alemanha).

 

Em 2001, separou-se e demorou alguns meses para reorganizar a vida. Enjoado de depender de terceiros para tocar seus negócios, sonhou abrir um restaurante, seguindo o histórico familiar. Com Dalmau e um amigo inglês, inaugurou o Eugênia Restaurant & Music Bar, de cozinha internacional, fechado dois anos após por falta de clientes. Aí Augusto, no intuito de reciclar seu malsucedido negócio, transformou o ponto no Gaia, já com culinária vegetariana, que no final de 2007 virou Goa. O nome homenageia uma região do oeste da Índia, ponto de encontro dos hippies nos anos 1960.

 

Um dos fatores que o impulsionaram nessa mudança foi a psicanálise lacaniana, apresentada pela sua atual mulher, Rejane Arruda, atriz e doutoranda em artes cênicas pela USP. “A psicanálise me ensinou a enxergar as coisas com mais profundidade, a eliminar o péssimo hábito de responsabilizar os outros pelos nossos fracassos, a evitar a repetição de um padrão”, resume ele, que desde 2002 reserva ao menos um dia da semana para deitar-se no divã.

 

Respeito à natureza. Neste mês de abril Augusto abrirá outro restaurante, o Yam, na Vila Madalena, cujo nome vem do mantra do chakra do coração e que servirá comida vegetariana em regime fast-food. A decoração terá como base o reaproveitamento de materiais reciclados, como uma luminária feita com latas de ervilhas e garrafas de coca-cola. Outra novidade será um estacionamento móvel, feito a partir de uma carcaça de automóvel, com capacidade para guardar até dez bicicletas.  

 

A psicanálise e o segundo casamento, aliás, não foram os únicos responsáveis pela reviravolta que motivou Augusto a abraçar de vez a gastronomia vegetariana. Em 2004, numa comunidade mineira formada por remanescentes hippies seguidores do Mestre Saint Germain, ele passou 21 dias meditando e sem se alimentar. A experiência foi tão transformadora que ele borrifou todo o conhecimento acumulado na criação e nos princípios que regem a administração do Goa.

 

Na casa trabalha-se com o conceito da sustentabilidade – tudo o que gera lixo, como garrafas de refrigerante e materiais descartáveis, é banido do cardápio. Portanto, quem gosta de coca-cola, por exemplo, deve correr para o bar da esquina. O menu segue a risca a doutrina. “Podem me chamar para ser cozinheiro no Greenpeace pelo Amazonas, mas não para ir ao mercadão comprar carne para churrasco”, avisa ele, que também atende a domicílio e pode preparar, por exemplo, um coquetel à base de canapés vietnamitas.

 

O que Augusto não digere é o que chama de processo de produção predatório, aquilo que implica maltratar animais e interferir na saúde e bem estar do meio ambiente. “Você sabia que a população suína em Santa Catarina é maior que a população brasileira? Para se produzir 1 kg de carne são necessários vinte mil litros de água, enquanto a produção de grãos requer só quatro mil litros”, compara.

 

Em relação aos refrigerantes, é taxativo. “O elemento mais poluidor dos rios do planeta são as garrafas pet de refrigerantes e as sacolas plásticas”, sentencia ele, que não se julga um militante ecológico chato nem ambientalista xiita, mas afirma ter uma visão de responsabilidade do negócio que comanda. “Não acho que as pessoas deveriam virar vegetarianas, mas se a maioria preferisse comer em lugares com responsabilidade ambiental já seria uma vitória”, acredita.

 

A filosofia que orienta o cardápio do Goa é largo o suficiente para permitir a inclusão de elementos das culinárias baiana, vietnamita, tailandesa, judaica e de várias outras culturas, fruto de pesquisas e das viagens de Augusto pelo mundo atrás de novidades. “Quando me perguntam qual é o estilo da comida que sirvo, eu simplesmente respondo que é a comida que eu gosto”, assinala. Ele avalia que os freqüentadores da casa são, em sua maioria, pessoas especiais. “São aqueles que buscam qualidade de vida, exercitam a generosidade, ligam-se em ecologia e defendem projetos pacifistas.”

(Fotos da fachada e do interior do restaurante: Gladstone Campos)     

 

Goa Gourmet Vegetariano. Rua Cônego Eugênio Leite, 1152, Pinheiros. Fone: 3031-0680. Funciona de terça a sexta, das 12h às 15h30; sábados, domingos e feriados, das 12h às 16h30. R$ 21 (terça a sexta) e R$ 26 (sábado e domingo).

www.goavegetariano.com.br  

 

Italianos invadem o Brasil

. Com 32 filmes em sua programação, entre longas e comédias clássicas, começa no dia 8 de novembro mais uma edição do Festival de Cinema Italiano. 

. O evento gratuito, que completa dezoito anos de existência, se estende até 9 de dezembro e vai ocupar 91 salas espalhadas por mais de sessenta cidades em todas as regiões do país e também no streaming.

. A Sombra de Caravaggio (foto da capa) abriu o festival em São Paulo, em sessão para convidados.

. O filme de Michele Plácido retrata a vida do artista plástico Caravaggio.

. Riccardo Scamarcio dá vida ao rebelde, controverso e genial pintor durante o ano de 1609, enquanto aguarda o perdão papal para escapar de uma sentença de morte. 

. Há cinco produções que foram pré-selecionadas pela Itália na sua escolha pelo candidato a representar o país na disputa do Oscar de Melhor Filme Internacional em 2024.

. A relação reúne Ainda Temos o Amanhã, de Paola Cortellesi; A Terra das Mulheres, de Marisa Vallone; A Última Noite de Amore, de Andrea Di Stefano; Obrigado, Rapazes, de Riccardo Milani; e O Retorno de Casanova, de Gabriele Salvatores. 

. No drama de Salvatores, um aclamado diretor de cinema em sua última obra escolhe contar a história de Casanova, de Arthur Schnitzler.

. O personagem central já superou sua juventude, não vive mais os tempos de glória, perdeu o charme e poder sobre as mulheres, está descapitalizado e deixou de viajar pela Europa. (foto ao lado)

. No elenco, destaque para Toni Servillo, Sara Serraiocco e Fabrizio Bentivoglio. 

. Na retrospectiva A Comédia à Italiana, destacam-se clássicos de Federico Fellini (A Trapaça, 1955), de Mario Monicelli (Brancaleone nas Cruzadas, 1970), Luciano Salce (Pato com Laranja, 1975) e Dino Risi (Pobres mas...Belas, 1957).

. Para mais informações, consulte o site do festival: https://festivalcinemaitaliano.com/programacao-2023/  

Medaglia: "Os ícones musicais viraram pop stars"

A crítica, endereçada a monstros sagrados como Chico Buarque e Caetano Veloso, não é proferida por alguém que acompanhou apenas à distância o cenário musical dos anos 1960 e agora vive lamentando o caráter descartável assumida pela produção artística atual. O autor dessa dura avaliação é o maestro e arranjador Júlio Medaglia, 74 anos, cujo nome está gravado definitivamente na história da música popular e erudita no Brasil.

Ele tem estatura, cacife e conhecimento de causa para questionar o rumo tomado por artistas que se revelaram ou se consolidaram quase meio século atrás. Afinal, Medaglia foi jurado ativo nos célebres festivais da canção exibidos pela TV Record naquela década. Nesse papel privilegiado, gastou saliva na polêmica em torno das composições Disparada e A Banda, viu um dos intérpretes espatifar o violão e atirá-lo contra a platéia e testemunhou a gênese do Tropicalismo – por sinal, ele é autor do revolucionário arranjo de Tropicália, de Caetano Veloso, hino e bula do movimento.

Diplomado em regência sinfônica pela Universidade de Freiburg, na Alemanha (1965), Medaglia é dono de um currículo robusto. Entre outras importantes funções, já dirigiu a Rádio Roquette Pinto, foi supervisor musical da Rede Globo, diretor artístico do Theatro Municipal de São Paulo, escreveu livros, assinou trilhas sonoras para o cinema e criou a Amazonas Filarmônica de Manaus. No momento, tem regido dentro e fora do País como convidado especial, atua em diversos projetos culturais e lançou a nova Orquestra Filarmônica Vera Cruz, de São Bernardo do Campo (SP).

Nesta entrevista, ele revisita os bastidores dos festivais de MPB, relê o movimento tropicalista, critica os ex-provocadores Chico Buarque e Caetano Veloso, lembra da covardia de Elis Regina, chama a atenção para o elitismo da OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) e cutuca sem piedade a postura de certa mídia brasileira. “O principal problema da MPB no Brasil é que os meios de comunicação eletrônicos romperam com a música inteligente. Só tem lixo no ar.”

 

Por Edgar Olimpio de Souza

 

Você participou ativamente dos famosos festivais de música exibidos pela TV Record. Na edição de 1966, o público praticamente se dividiu entre Disparada, de Geraldo Vandré, e A Banda, de Chico Buarque. Os torcedores xingavam uns aos outros de “bandidos” e “disparatados”. Que lembranças guarda desse episódio?

Eu estava no júri. Nós não tínhamos decidido qual das duas seria a vencedora. A decisão durava muito e mudava a cada minuto, a cada argumento. Foi quando Paulinho Machado de Carvalho, dono da emissora, entrou na sala e revelou que o Chico Buarque havia dito que, se ganhasse o prêmio com A Banda sozinho, não iria recebê-lo. Foi um alívio. Votamos pelo empate.

Na edição seguinte, o cantor Sérgio Ricardo tentou interpretar Beto bom de bola e foi veementemente vaiado. Aí, ele arrebentou o violão e o arremessou contra a platéia. Hoje, como você avalia aquele momento?

O público sabia analisar e tinha opinião formada e muito clara do que queria. No contexto da época, a música do Sérgio Ricardo (foto ao lado) tentava se apoiar numa série de elementos artísticos, sociais e humanos. A junção não foi aceita pelo público, que a rejeitou com veemência. Mesmo assim ele insistiu e naquele momento não tinha mais ou menos. Ou era sim ou não. O seu temperamento forte acabou promovendo um dos maiores escândalos da música popular brasileira. Mas serviu para demonstrar também a forma como o público se comportava diante dos acontecimentos daquela década.

No Festival Internacional da Canção, transmitido pela Rede Globo em 1968, pressões externas das autoridades militares teriam impedido a vitória de Pra Não Dizer que não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, preterida por Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim. Como foi o bastidor dessa história?

De fato, a música de Vandré catalisou todas as forças do festival. Eu cheguei a conquistar o prêmio de melhor arranjo, com uma canção de Hermes de Aquino, mas ninguém deu bola. Com um banquinho, um violão e dois acordes, Vandré turbinou a temperatura artística e política da época. Houve pressão para dar a vitória para Sabiá. O desastre foi total. As intérpretes Cynara e Cybele tiveram que engolir uma vaia astronômica. Chico e Tom jamais imaginariam isso.


Naquela época, Chico, Caetano, Gil e Vandré eram vistos como símbolos da oposição ao Regime Militar. Por sua vez, o politizado jornal O Pasquim chegou a "enterrar" Elis Regina como alienada...                                                                                                                                   

Como afirmei anteriormente, não havia meios termos na época. Clara Nunes, por exemplo, foi pressionada pelos militares em função de um determinado show que apresentava. No entanto, ela teve coragem de enfrentar a situação, inventou histórias para não colaborar e sumiu. Já a Elis Regina (foto ao lado) teve outra atitude. Ou porque não teve coragem ou por estar submetida a fortes ameaças, ela apareceu na tevê, no auge da repressão, interpretando o Hino Nacional. Ninguém a perdoou. Vandré, quando viu que a coisa estava pesada para o seu lado em função de Caminhando, fugiu para o Paraguai, camuflado, usando barba e maquiagem. Ele não entregou os pontos. 

Por que o Tropicalismo nunca foi consensual?

Nenhum movimento ou artista revolucionário encontra o caminho aberto, pavimentado. Igor Stravinsky, por exemplo, viveu as duas primeiras décadas do século XX em Paris, na época capital cultural da Europa. Foi lá que apresentou sua Sagração da Primavera, que eu considero a maior obra musical do século, uma espécie de Divina Comédia, uma Capela Sistina, uma Odisséia. Na estreia, o sofisticado público do Champs-Élysées lançava objetos no palco. Para não apanhar, os músicos tiveram que fugir. Beethoven, Erik Satie, João Gilberto e outros inovadores nunca foram bem recebidos inicialmente. Como a música chega à alma antes da razão, muitas vezes o atrito entre uma linguagem e o repertório que o indivíduo carrega em seu espírito gera conflitos.

Então o reconhecimento nunca é imediato?

Veja que curioso: 27 anos depois de estrear, Sagração da Primavera se tornou trilha sonora de um filme infantil, o antológico Fantasia, de Walt Disney, sem que nenhuma criança tivesse entrado em pânico após assisti-lo. Caetano entrou vaiado no palco do Festival da Record de 1967 para interpretar a música Alegria, Alegria e saiu aplaudido. Ele havia me pedido para fazer um arranjo para essa música, que entrou no álbum Tropicália. Concluímos que a grande virada seria uma simples marcha-rancho ser tocada por uma banda eletrônica, como as do rock de então. Não usei instrumentos acústicos tradicionais. O arranjo foi combinado com os músicos e não escrito. Um escândalo que se tornou sucesso. Só que essa passagem durou apenas três minutos.

Há quem avalie que Chico Buarque, Caetano Veloso e outros pesos-pesados do passado não conseguem mais compor canções com a mesma pegada. Você acha que eles continuam produzindo com a mesma qualidade de antes?

O principal problema da MPB é que no Brasil os meios de comunicação eletrônicos romperam com a música inteligente. Só tem lixo no ar. O que se produz de bom acontece em palcos subterrâneos. Boa parte dessa situação de massacre da sensibilidade se deve também a esses ícones do passado, aos provocadores daquela época, que ainda são líderes. Eles preferiram seguir a carreira de pop star em vez de continuarem engajados nacionalmente numa luta cultural ou social. Vivem dos juros da produção antiga e entregam troféus à indústria eletrônica, a mais insensível do mundo. A ditadura militar os obrigara a reagir de forma criativa e engajada. Hoje, a ditadura é mercadológica, mas aqui e agora eles não a enfrentam. Ao contrário, são beneficiados por ela. Abriram mão da criatividade.

O mercado dita as regras do jogo?

Foi montada uma grande máquina para ativar o comportamento do “consuma & descarte”. Como as atuais lideranças empresariais não sabem lidar com o talento criador artístico, que é diferente do criador de um novo modelo de celular, preferem eles mesmos inventar seus Frankensteins para o processo não ser interrompido. Aliás, gravadoras e veículos de massa substituíram os diretores artísticos pelos chamados diretores de marketing. O resultado é que a criação saiu das mãos do criador e parou nas mãos do produtor. Em Hollywood, isso funcionou muito bem, mas não em relação à música produzida hoje. É bom ressaltar que esse problema não se resume ao Brasil. Se você ligar o rádio ou a tevê na Europa, vai cair de costas.

A MPB faliu?

Houve um tempo em que as músicas eram veiculadas em várias rádios e os produtores se sentiam motivados. O cenário mudou. Agora, você tem que consumir muito, gostar pouco e jogar fora logo. Ou seja, não é mais interessante para a indústria cultural produzir uma coisa de qualidade que dure. O paradoxo é que o público gosta da boa música, mas está vilipendiado. Pixinguinha compôs Carinhoso há oitenta anos e até hoje as pessoas estão tocando e curtindo. Beethoven criou dois séculos atrás uma sinfonia com três notas e o pessoal ouve. Isso não interessa ao mercado. A TV Globo, a maior do País e a mais talentosa do mundo do ponto de vista da linguagem, não programa nada de música no horário nobre. É como se música não existisse no Brasil.

Como você avalia a música erudita no Brasil no tocante aos cantores, compositores e apresentações de orquestras de nível internacional?

A música erudita vai muito bem. Criam-se cada vez mais orquestras em todo o País e existem dezenas de projetos de uso da música como elemento de inserção social. Com isso, há uma enorme quantidade de jovens estudando instrumentos. Isso é bom. A música não só organiza a mente das pessoas como desenvolve a sensibilidade delas, revelando talentos. É preciso, porém, melhorar a qualidade do ensino. Levei sessenta músicos da Europa Oriental à Manaus e em três anos formaram-se quatro orquestras jovens na cidade, de excelente qualidade. Escola boa é tudo.

A sua demissão do cargo de diretor artístico da Orquestra do Theatro São Pedro, no ano passado, foi tingida de controvérsias...

Eu me desentendi com a direção executiva da organização social que administra a casa. Estas entidades são um tipo de estrutura que antigamente todo mundo desejava. Depois, elas foram distribuídas nas mãos de empresas não competentes. O resultado disso são pessoas que não são do ramo, com um pensamento burocrático, com as quais a gente tem de lidar. No fundo, eu era tratado como criança. Não dá para trabalhar com quem não é do ramo. A carreira não é levada em consideração. Em empresas públicas, muitas vezes somos tratados como cachorros sarnentos. 

Na sua opinião, que modelo de política cultural deveria ser adotado para as orquestras públicas do País?

As orquestras brasileiras são órgãos públicos, não apenas instituições feitas para produzir entretenimento cultural para uma elite. Como é possível a OSESP (foto ao lado) gastar 87 milhões de reais por ano para a fruição de tão somente um pequeno grupo de pessoas e o estado todo não se beneficiar disso? É aceitável importar uma regente desconhecida dos Estados Unidos, sem nenhuma expressão internacional, e pagar a ela mais que a Filarmônica de Berlim, a melhor do mundo, desembolsa para o maestro Simon Rattle? Ela vem aqui, faz a programação e se manda. Além disso, a orquestra fecha as portas aos maestros brasileiros. A gente achava que a privatização delas representaria um grande avanço, mas gerou outros vícios e problemas. Com essa grana, eu crio dez OSESPs em seis meses e abranjo musicalmente o estado inteiro. 

Médicos mais humanistas?

Marcelo Coltro é especializado em Medicina de Família e Comunidade. Concursado, trabalha na Prefeitura de Florianópolis. Em fevereiro deste ano, esteve em Cuba com um grupo de médicos brasileiros para trocar experiências no setor. Viveu outra particularidade: depois de formar-se na Universidade Federal de Pelotas, foi o único médico residente em Protásio Alves, na serra gaúcha, experiência que muitos cubanos viverão agora, em cidades do Norte e Nordeste brasileiros.

Sem a histeria que tem caracterizado a reação de alguns médicos à chegada dos cubanos, Coltro conta como foi sua experiência. Fala das similaridades e diferenças entre os dois sistemas de saúde, sobre o que o Brasil pode ensinar a Cuba e vice-versa.

Trechos da entrevista, em que Marcelo fala também sobre o que Cuba pode aprender com o Brasil no setor e conta a história de um provável erro de médico brasileiro corrigido em Cuba, que ele testemunhou.

“Como o número de médicos em Cuba é maior em relação médico/habitante do que no Brasil, eles conseguem ter uma capacidade de cuidado muito melhor do que os médicos brasileiros aqui no sistema público. Por exemplo, a cidade que eu visitei, onde eu estive, tinha um médico dentro do sistema de saúde para cada 800 habitantes. Então, eles conseguiam organizar através da sua área de atuação a população de uma forma muito melhor estruturada do que a gente consegue organizar aqui no Brasil, em que cada médico de família é responsável por 4 mil, 6 mil, 7 mil habitantes e tem cidades onde o médico de família é responsável pela cidade inteira.”

“Eu acho que se fosse uma força de trabalho médica para vir para o País e permanecer para sempre, eles deveriam fazer o Revalida. Mas eu entendi que no Mais Médicos eles vem para cá não com interesse de substituir a mão-de-obra médica brasileira. O programa traz médicos estrangeiros para o Brasil até que o Brasil consiga se adequar à sua própria formação médica. Enquanto isso vai acontecendo, esses médicos estrangeiros seriam temporários e, por isso, talvez não precisem fazer o Revalida. Eles têm experiências em outras missões internacionais.”

“Quanto à formação médica dos médicos cubanos, me pareceu que eles têm uma formação muito semelhante à dos profissionais brasileiros. Eu diria que é bem rígida por eles serem militarizados e super-estruturados. Eles têm o mesmo número de anos que a gente tem aqui na formação médica. Eles também têm especialidades lá, mas todos os médicos formados inicialmente têm de ser médicos de família, de comunidade. Precisam ter experiência médica para depois passarem para as especialidades. São muito bons cirurgiões, são bons oftalmologistas, são bons ortopedistas, mas, principalmente, são bons médicos de família e de comunidade.”

 “Talvez os médicos cubanos possam ensinar para a gente como usar melhor a tecnologia. Talvez a gente use a tecnologia muito precocemente quando cuida das pessoas. Ao andar pelas ruas de Ciego de Ávila, em Cuba, você não encontra farmácias como as encontra aqui no Brasil. Quando você encontra farmácias em Cuba você tem muitas medicações que são fitoterápicas, medicações que a gente encontra aqui no Brasil numa quantidade um pouco menor. Assim como aqui no Brasil nós temos dificuldades de ter concentração de tecnologia, por exemplo nos postos de saúde, por conta de ser muito caro, eles têm uma otimização de tecnologia muito maior. Quando uma pessoa lá em Cuba é submetida a uma tomografia é porque realmente ela tem necessidade de fazer essa tomografia.”

“Lá não é frequente a questão de você fazer check-up como é muito comum aqui no Brasil. Ou fazer exames laboratoriais de rotina para as pessoas ficarem medindo colesterol quando tem queixas de dor-de-cabeça ou tem queixas super inespecíficas para exames que são muito difundidos na mídia. Então eu vi que lá talvez tenha uma racionalização do uso da tecnologia que, por conta da influência da indústria farmacêutica e da indústria dos insumos de saúde no Brasil desde a década de 60, nós perdemos. A questão do ampliado raciocínio clínico que os médicos têm lá e uma otimização da tecnologia.”

“Aqui a gente vê cada vez mais a mercantilização da medicina. Eu diria que os médicos brasileiros são bons médicos, mas existe dentro da formação médica, nas escolas de medicina, uma grande inclinação para você fazer uso de muita tecnologia, exames laboratoriais, exames de imagem e também uso de medicamentos de uma forma talvez um pouco mais precoce. Que faz com que a gente não avalie esses pacientes com um olhar um pouquinho mais holístico ou humanista, com uma percepção de poder compreender um pouquinho mais esses pacientes antes de usar tecnologia, antes de usar um medicamento precoce, antes de pedir um exame laboratorial que muitas vezes a gente sabe que vai dar normal e está pedindo porque tem uma orientação protocolar para isso.”

“Talvez os médicos cubanos possam trazer para nós um resgate do raciocínio clínico que as escolas de medicina e as profissões, ao longo dos anos, foram perdendo por conta de um adensamento tecnológico muito grande.”

“A gente tem alguns estudos que mostram que 75% dos médicos brasileiros recebem visitas de laboratórios, para medicamentos. São pessoas que visitam os consultórios médicos com frequência. Ao visitar tais consultórios, existe muita informação dos laboratórios para estes profissionais. Alguns outros estudos mostram que até 41% dessas pessoas visitadas têm como referência essa visita da indústria para prescrever as medicações. Você tem uma grande influência da indústria farmacêutica dentro da prática médica no Brasil. Isso também se expande para o uso da tecnologia, como exames laboratoriais.”

“Você tem muitos professores de faculdade de medicina no Brasil que têm vínculo empregatício com indústrias farmacêuticas ou com indústrias que produzem tecnologia em saúde. Isso acaba influenciando seguramente a formação médica e o uso de tecnologia. Necessária, que bom que a gente tem essa tecnologia, mas muitas vezes precoce e diria até que de certa forma indiscriminada, sem uma boa indicação, sem um raciocínio clínico adequado.”

(Luiz Carlos Azenha, do site Viomundo) 

A prima-dona cabocla

Ela é uma das cantoras líricas mais conceituadas do mundo. Radicada desde 2002 em Berlim, após cinco anos residindo em Viena, a soprano paraense Adriane Queiroz, 38 anos, integra o corpo solista da Staatsoper, a principal ópera estatal da capital alemã, que diariamente apresenta óperas, concertos e balés. Nesta casa de nível internacional, ela atua sob a batuta do prestigiado maestro argentino Daniel Baremboim, “um homem de tanta energia que parece carregar um motor dentro de si”, como ela o define.

A diva brasileira já dividiu o palco com o estrelado tenor espanhol Plácido Domingo, “um artista que nunca se coloca acima da música, simples e genial”, cantou com os meninos cantores de Viena e na celebrada Filarmônica de Berlim. Versátil, é capaz de passear por obras de compositores tão diversos quanto geniais – o arco inclui de Mozart a Beethoven, de Rossini a Puccini. Adriane representou alguns dos mais vigorosos papéis do universo lírico, como Susanna (As Bodas de Fígaro, foto abaixo à direita) e Zerlina (Don Giovanni, foto abaixo à esquerda), ambas de Mozart, além de Micaela (Carmen, de Bizet).

Por conta de tantos compromissos profissionais, poucas vezes ela se apresenta no Brasil. Em junho passado, em São Paulo, na estréia da orquestra do Theatro São Pedro, que executou concerto em homenagem ao compositor Carlos Gomes, a principal estrela da noite foi ela. A soprano brilhou em meio a solistas do naipe de Lício Bruno, Saulo Javan e Sergio Weintraub e seu desempenho não passou incólume pelo crítico Sidney Molina. “Ela é uma das principais figuras da música clássica brasileira. Sua voz é capaz de extrair o pathos de cada frase, graduando brilho e opacidade. Às vezes, parece mais orquestral do que a orquestra”, anotou em crítica publicada no jornal Folha de S. Paulo.

Outros especialistas avaliam que a voz de Adriane combina firmeza nos registros central e grave com a segurança nos agudos, virtude técnica difícil de ser alcançada. Pouco à vontade em concordar ou não com tais análises, ela lembra que o seu tipo de voz é mais comum do que se imagina. Afirma que 70% das mulheres são sopranos natas, biologicamente falando, e que numa audição com cinqüenta candidatas, em média umas quarenta dominam esse registro vocal.   

“Soprano é como doença, dá em todo lugar, com vozes lindas e silhuetas de Hollywood. O que vai fazer a diferença é a experiência e isso não tem plástica que resolva”, alfineta essa elétrica paraense de pele morena, aparência jovial e sorriso farto. “No fundo, o que importa é saber que estou cumprindo o meu destino e trabalhando com dignidade”, assinala ela, que recentemente emprestou sua voz ao monumental disco duplo Sinfonia n° 8, de Gustav Mahler, regido pelo cultuado compositor francês Pierre Boulez.

Boca fechada. Seja como for, sua rápida ascensão neste segmento bastante concorrido é digna de nota. Por sua origem classe média baixa, alguns a consideram uma espécie de cinderela do mundo lírico, embora não avalize a comparação. “Foi difícil entrar no circuito internacional, mas isso não faz da minha trajetória um folhetim mexicano”, resigna-se. Mesmo com o vento a favor, aprendeu que ainda precisa matar um leão por dia para sobreviver. “A responsabilidade e a cobrança são enormes, tanto faz se sou protagonista ou coadjuvante. A todo momento me sinto avaliada.” 

A sua rotina profissional em Berlim segue parâmetros militares e conspira contra a sua vida social. São três récitas semanais à noite e ensaios todas as manhãs de uma ópera seguinte. Às 15h ela fecha literalmente a boca por algumas horas para preservar as cordas vocais. Em média, participa de oito produções diferentes por temporada, que se desdobram em até 55 récitas por ano.

Nessa contagem, devem ser adicionados ainda eventuais concertos e récitas extras. Para efeito de comparação: em 2008, uma ativa soprano brasileira cantou apenas nove récitas em duas produções no Teatro Municipal de São Paulo. Adriane se reveza em papéis maiúsculos e minúsculos. A onda agora é trabalhar com diretores de cinema em ópera, que adoram misturar linguagens. A cineasta alemã Dóris Dorrie, por exemplo, a dirigiu em Turandot, de Puccini, e Cosi Fan Tutte, de Mozart.

Por mais que torça o nariz para aqueles que enxergam em sua trajetória ingredientes de um típico conto de fadas, não dá para ignorar o fato de que ela chegou ao pódio da música clássica por conta de um feixe feliz de acasos e sacrifícios pessoais. Nascida no pobre e populoso bairro de Terra Firme, na capital Belém, ela trabalhava desde os 14 anos com arte-educação em comunidades carentes quando, no final dos anos 1980, decidiu estudar música. Apostava que o conhecimento musical poderia funcionar como valiosa ferramenta na alfabetização de crianças de rua. “Com a inserção da música elas aprendiam mais facilmente a ler”, notou.

Sem saber absolutamente nada de teoria musical, ela foi picada pela mosca azul e se apaixonou pelo canto durante as aulas. Melhor: descobriu que tinha voz de soprano lírico. Ela cita três nomes importantes na sua formação acadêmica. A professora Marina Monarcha teve o condão de fazer aflorar sua paixão pelo canto lírico. A docente búlgara Malina Mineva a incentivou a se profissionalizar. O pianista Paulo José Campos de Melo foi decisivo ao recomendar aperfeiçoamento na Europa. “Adriane tem o poder de amansar feras e acordar os deuses, de assombrar e enternecer com sua voz”, elogia ele.

Personagens fortes. Em 1997, após pedir demissão do emprego, deixar marido e filho em Belém e contrariar os pais que sonhavam vê-la seguir carreira de advogada, desembarcou em Viena com pouco dinheiro no bolso, insegura e cheia de receios. Beliscou uma vaga na Universidade de Artes Cênicas e no Conservatório locais, após enfrentar rigoroso processo de seleção em uma das cidades mais rígidas no tocante à música clássica.

Como tinha 25 anos na ocasião, dois acima do teto de corte, só foi aceita porque, além de demonstrar aptidão técnica, comprometeu-se a fazer o curso em quatro e não seis anos e aprender alemão básico em apenas três meses. “Eles são metódicos em estabelecer barreiras porque tudo é uma questão de estrutura física: quanto mais velho, mais difícil fica desenvolver a musculatura necessária ao canto lírico”, conta.

Foi um período em que amadureceu rapidamente. “Tinha horas que eu ficava tão desesperada que mal conseguia controlar as crises de choro. Aí eu parava e pedia a Deus para me guiar”, recorda. Durante o tempo em que viveu na capital austríaca, atuou na Volksoper, o teatro de operetas e óperas cômicas em língua alemã.

Nunca se acomodou, no entanto. Vivia farejando novas oportunidades. Chegou a fazer audição em Berlim, quando ouviu de um agente que era gorda demais para atuar nos palcos médios alemães. Não desistiu e voltou dois anos depois para novos testes. Acabou selecionada por Baremboim para figurar como solista da Staatsoper. “Fui escolhida durante a Copa do Mundo no Japão e Coréia do Sul. Como ele adorava a Seleção Brasileira, acho que eu entrei pela nacionalidade. Eu tinha grife”, brinca.  

Novamente se viu subindo um degrau de cada vez. Começou cantando papéis pequenos, como Barbarina, em As Bodas de Fígaro, e foi assumindo trabalhos mais expressivos. Hoje interpreta personagens fortes nas óperas Fidélio (foto acima), de Beethoven (Marzellini), L´italiana in Algeri, de Rossini (Elvira), e em obras famosas de Mozart, como A Flauta Mágica (Pamina). O compositor austríaco, aliás, é um dos maiores desafios para cantores líricos: “Suas óperas exigem um trabalho peculiar porque a orquestra é mais transparente e os recitativos mais claros e acordados com o texto”, explica.

Adriane acredita ter fincado de vez seu nome no cenário lírico europeu. Só outra brasileira, a cantora lírica Eliane Coelho, que vive há mais de três décadas naquele continente, tem maior projeção. Um dos sonhos da soprano é interpretar a protagonista em Madame Butterfly, de Puccini, um papel complicado de se criar por conta da origem oriental da personagem. “Creio que para as cantoras latinas o grau de dificuldade aumenta porque não temos intimidade com o universo das gueixas”, justifica. “É preciso equilibrar base técnica e experiências de outros papéis.”

Cara de paisagem. Nesse ano, a sua agenda anda lotada. Meses atrás estreou em solo português, na cidade do Porto, onde se apresentou na Casa da Música sob a batuta do maestro Christoph König. Cantou na Konzerthaus, maior casa de concertos de Berlim, e se apresentou duas vezes no festival 3 Séculos de Canções (foto ao lado), em São Petersburgo, na Rússia. Por fim, fez sua estréia no tradicional Classic Open air am Gendarmenmarkt, na capital alemã, quando se apresentou ao ar livre para seis mil pessoas. Mais recentemente subiu aos palcos no papel de Rosalinde, na opereta cômica O Morcego, de Johann Strauss. 

Quase uma década depois, considera estar adaptada ao estilo de vida em Berlim. Vive ao lado do marido, que trabalha como ator clown e produtor, e do filho de 20 anos. "A cidade tem aquela paz de vilarejo, mas com todas as vantagens de uma grande metrópole, e como sou uma cabocla de Belém, dou muito valor ao verde do lugar”, diz.

Quando a agenda permite, atende a convites e corre para fazer apresentações especiais no Brasil, como a mini temporada no Theatro São Pedro. Quatro anos atrás, no Theatro da Paz, em Belém, representou Ceci numa montagem de O Guarani (foto abaixo), de Carlos Gomes. Mas não quer só trabalho aqui. Confessa sentir saudades do cheiro de chuva, de tomar açaí, de ouvir o carimbó do Mestre Varequete, de se espreguiçar na rede, de jogar conversa fora com os amigos.

A soprano lamenta o pouco espaço e atenção que a música clássica desperta no País. “Apesar de sermos um celeiro de talentos no canto lírico, caminhamos a passos de tartaruga para a profissionalização. Mesmo capacitados, não temos nenhuma companhia de ópera fixa”, indigna-se. Cita o compositor Villa Lobos, que brigava pelo ensino da música nas escolas por saber a importância dessa linguagem para o aperfeiçoamento humano. “Nossas crianças não sabem de sua própria cultura. Pergunte se conhecem uma cantiga de roda e qual o significado simbólico do folclore. Certamente irão fazer cara de paisagem”, aposta. Na Europa, conta, o ensino da música clássica é massificado. No Brasil, ainda segue confinado a um gueto e limitado a uma elite.

Ao lembrar-se dos tempos em que ensinava arte para crianças carentes, ela relativiza o status que alcançou na carreira. “Não vivo do glamour da profissão, algo tão abstrato e passageiro. Jamais vou me desconectar da realidade que conheci ou negar minhas raízes”, avisa. Para a prima-dona cabocla, seu trabalho não tem nada de excepcional. “Se feito com dignidade, não vejo diferenças entre uma soprano, um jornalista, uma cozinheira, um pedreiro e uma dona-de-casa. Cada uma dessas atividades tem as suas especificidades e importância na sociedade.”

 

 

Veja cena de O Guarani com Adriane Queiroz:

 

 

 

 

 

 

 

 

Exército fantasma

Mais uma daquelas histórias impressionantes da Segunda Guerra Mundial que virou documentário: era junho de 1944 quando dois franceses desavisados entraram no perímetro de segurança da Vigésima Terceira Tropa de Forças Especiais dos EUA e viram, incrédulos, quatro soldados norte-americanos carregando um grande tanque de guerra. Um dos soldados, diante da cara dos franceses, apenas respondeu: “Os americanos são muito fortes.”

No entanto, não se tratava da força dos soldados, mas da leveza do tanque que era, na verdade, feito de borracha inflável. Este episódio foi documentado numa pintura por um dos soldados da tropa, que era mais conhecida como The Ghost Army (o Exército Fantasma). O grupo, que desembarcou na França no verão de 1944, foi recrutado em faculdades de arte e em agências de publicidade e tinha como principal arma a criatividade. Sua missão? Enganar as tropas de Hitler.

Além dos retratos da guerra que faziam esporadicamente nos tempos livres, o exército fake tinha vários recursos para espantar os soldados alemães: artilharia de borracha, efeitos sonoros (alto-falantes imitavam barulhos de grandes unidades de infantaria) e falsas transmissões de rádio, que faziam a tropa de artistas parecer um grande exército pronto para o ataque. Foram mais de 20 missões - algumas bastante perigosas - na França, Bélgica, Luxemburgo e Alemanha em que a capacidade de atuação dos soldados era o que lhes garantia a vida. Dentre os cerca de 1.100 jovens do grupo estavam o designer de moda Bill Blass, o fotógrafo Art Kane e os pintores Ellsworth Kelly e Arthur Singer.

A “arte da guerra” feita pelos soldados fantasmas exigia muito mais do que apenas carregar os aparatos de borracha e incluía um verdadeiro trabalho cênico para despachar homens em caminhões e ficar dando voltas, aparentando a chegada de uma grande tropa. Eles freqüentavam também cafés franceses para espalhar fofoca entre os espiões que poderiam estar no lugar e visitavam cidades vestidos de generais. Estima-se que o Exército Fantasma tenha salvado muitas vidas e sua atuação foi importante para a vitória dos Aliados no ano seguinte.
O diretor de cinema Rick Beyer contou que soube da história acidentalmente, em um café, ficou maravilhado e tratou de procurar e entrevistar os dezenove veteranos da tropa que ainda estavam vivos. O resultado está no documentário The Ghost Army, que foi lançado nesse ano na rede de televisão estadunidense PBS.

(Do site Opera Mundi)

 

Veja trailer do documentário:

 

 

O cara da ópera

Ele tem tipo de roqueiro, mas sua atividade profissional passa longe de guitarras, baixos e baterias. O seu trabalho não atrai cabeludos trajando jeans desbotados, camisetas estampadas e tênis sujos, mas um tipo de público que sai de casa na estica para ir ao teatro e costuma acomodar-se em poltronas estofadas. Estamos falando de Caetano Vilela, nome em ascensão no segmento lírico brasileiro e já com algum reconhecimento no Exterior. Nos últimos anos ele é responsável pela iluminação de um punhado de óperas produzidas no Brasil e, mais recentemente, tem acumulado ainda a função de diretor desse sofisticado gênero artístico.   

A paixão pela ópera, aliás, despertou na adolescência. Tudo começou quando ouviu uma ária pela primeira vez aos 17 anos. Na época trabalhava como office-boy e, atraído por uma melodia de Lakmé, do compositor francês Léo Delibes, parou num sebo na Praça da Sé. “Fiquei entusiasmado por aquele tipo de música”, relembra ele. Não parou mais. Hoje, aos 41 anos, já ostenta mais de quarenta produções líricas na bagagem. Vilela, por exemplo, é figura onipresente no festejado Festival Amazonas de Ópera, que acontece anualmente na capital do Amazonas.

No começo, apenas concebia a luz dos espetáculos. De uns tempos para cá, decidiu dirigir e pegou gosto pela coisa. Na versão 2008 do festival, colecionou elogios e um prêmio Carlos Gomes de Música Erudita pela iluminação e direção da ópera Ça Ira, de Roger Waters, ex-líder da banda Pink Floyd. Na edição passada, concebeu a luz de Sansão e Dalila, dirigida pelo encenador espanhol Emilio Sagi, e iluminou e dirigiu a estréia brasileira de Os Troianos, de Berlioz.

No final do ano passado Vilela ficou instalado em um estúdio em Paris, para onde rumou para iluminar uma produção local do musical A Noviça Rebelde, no Théatre Du Châtelet. O convite partiu de Sagi, após a bem sucedida parceria em Manaus. A sintonia entre os dois foi a melhor possível. “A única coisa que pedi para ele no início foi para dispensarmos aqueles canhões de luz que seguem os cantores, que particularmente acho horrível, e ele topou”, conta. “Talvez seja o primeiro musical no mundo feito sem canhão.”

Durante a concorridíssima temporada do espetáculo, de 6 dezembro a 3 de janeiro, seu nome ganhou destaque na crítica local. Um site escreveu que sua luz remetia aos quadros do pintor Edward Hopper. “Vai entrar para o meu caderninho, ao lado de ´brasileiro expressionista´ e 'Rembrandt da luz´, como já se referiram a mim em montagens anteriores. Será que estão torcendo para eu virar pintor?”, brinca ele, que com tal vento a favor já articula novos projetos na Europa, inclusive com o próprio Sagi, numa turnê internacional da ópera Sansão e Dalila.

Caetano é genial. Na capital francesa, Vilela trabalhou feito louco, mas mal retornou a São Paulo e iniciou outra maratona. Há dois meses ele pilota a Cia. de Ópera Seca, fundada pelo controvertido diretor Gerald Thomas que, pela primeira vez, terceirizou o comando de seu grupo. Vilela vai assinar a direção e iluminação da comédia política Travesties, escrita pelo dramaturgo inglês Tom Stoppard, com pré-estréia no Festival de Teatro de Curitiba, neste mês, e temporada no Rio de Janeiro a partir de agosto. O próximo projeto com o grupo já está no forno. Trata-se de uma pocket opera intitulada Tetralogia, com atores, cantores e músicos desvendando o monumento operístico criado por Richard Wagner. Uma paixão, aliás, compartilhada também por Thomas.

“Estou retornando às origens, afirma ele, em alusão à sua trajetória teatral. Foram cinco anos no grupo Boi Voador, criado por Antunes Filho, três meses no Uzyna Ozona, do Zé Celso, e dois anos no CPT de Antunes Filho, período em que viajou pelo Brasil e Exterior e classificou de “experiência mágica”. Em sua profícua passagem pela Cia. Ópera Seca, na primeira vez, desdobrou-se em múltiplas funções. A sua versatilidade chamou a atenção de Thomas, que em recente entrevista derramou adjetivos ao novo piloto. “Não sei explicar como alguém vira gênio. Sei apenas que Caetano é genial.”

A sua veia artística pulsou no teatro. Desde criança, apesar da insistência do pai comerciante que queria vê-lo herdar a papelaria da família, intuiu que aquele tipo de vida pacata e de futuro previsível - trabalho, casamento, casa, filhos – não serviria para ele. Queria o mundo das artes. Foi então que pisou num palco, encantou-se pelo ofício e começou a viajar por aí. Não se limitou a conhecer só paisagens, cores e cheiros. Em alguns lugares por onde circulou, permaneceu um tempo para aprender línguas, hábitos e costumes nativos.

O resultado dessas experiências como cidadão do mundo é visível. Embora só tenha cursado até o ensino médio, hoje Vilela fala inglês, francês e arranha o idioma russo. Mas sua maior habilidade continua sendo a iluminação, que aprendeu por intuição e muita prática. “Quando penso na luz, não a reduzo a uma simples operação de botões e refletores. Trata-se de uma arte e não de técnica”, ensina. “No cinema, o iluminador é o fotógrafo. Uma história pode ser construída apenas com a luz.”

Non ducor, duco. Tal raciocínio ele transporta para as montagens que ilumina. Antes de clarear atores e cantores, primeiro busca descobrir o local da ação e capturar sua atmosfera. Depois, tenta desenhar uma narrativa com a luz. Sua intenção é a de que o público assimile o espetáculo por meio da iluminação. “É aquilo que denomino de dramaturgia da luz, uma expressão difícil de traduzir, mas suficiente para designar o significado do que faço”, revela. “No seu trabalho, um cenógrafo lida com o dado concreto. Já o iluminador mexe com o abstrato. Minha memória e meu raciocínio são bastante visuais."

Entusiasta dos festivais de óperas no coração da floresta, ressalta que Manaus entrou no mapa lírico do mundo depois do sucesso do filme Fitzcarraldo (1982), do cineasta alemão Werner Herzog – no longa, um homem obcecado sonha construir um teatro de ópera no meio da selva. “Agora, todo mundo quer participar da festa”, garante ele, que faz uma comparação entre o que se gasta na capital manauara e a produção de uma ópera no Exterior. “O evento todo é feito com apenas R$ 4,5 milhões e o custo médio de uma única ópera na Europa gira em torno de US$ 16 milhões.”

Antenado, Vilela não se satisfaz só com óperas. Freqüenta exposições, mostras de cinema, festivais de teatro, shows de música com incansável abnegação. Não há tempo feio. Tudo serve de inspiração para o seu ganha-pão. O iluminador e diretor cênico tem tatuado nas costas o lema Non ducor, duco, frase em latim que significa ´Não sou conduzido, conduzo´. “É uma das minhas quinze tatuagens. Quem não me conhece pensa que eu sou roqueiro.”

(Colaborou Edmilson de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Página Inicial: Leonardo Wen)

 

Assista cena da ópera Os Troianos

 

 

 

 

 

 

Jeitinho brasileiro

Certo dia, recebi uma mensagem eletrônica via Internet que listava uma série de práticas comuns no Brasil. Para muitos, vistas como sinal de esperteza e não de desonestidade, que minam o bem estar social como um todo. Eis a lista de atitudes nada aceitáveis em uma sociedade que visa se estabelecer com justiça e honestidade:

- Coloca nome em trabalho que não fez.
- Põe nome de colega que faltou em lista de presença.
- Paga para alguém fazer seus trabalhos.
- Saqueia cargas de veículos acidentados nas estradas.
- Estaciona nas calçadas, muitas vezes debaixo de placas proibitivas.
- Suborna ou tenta subornar quando é pego cometendo infração.
- Troca voto por qualquer coisa: areia, cimento, tijolo e até dentadura.
- Fala no celular enquanto dirige.
- Usa o telefone da empresa onde trabalha para ligar para o celular dos amigos (me dá um toque que eu retorno...). Assim o amigo não gasta nada.
- Trafega pela direita nos acostamentos num congestionamento.
- Para em filas duplas, triplas, em frente às escolas.
- Viola a lei do silêncio.
- Dirige após consumir bebida alcoólica.
- Fura filas nos bancos, utilizando-se das mais esfarrapadas desculpas.
- Espalha churrasqueira e mesas nas calçadas.
- Pega atestado médico sem estar doente, só para faltar ao trabalho.
- Faz "gato " de luz, água e de tevê a cabo.
- Registra imóveis no cartório num valor abaixo do comprado, muitas vezes irrisórios, só para pagar menos impostos.
- Compra recibo para abater na declaração de renda para pagar menos imposto.
- Muda a cor da pele para ingressar na universidade através do sistema de cotas.
- Quando viaja a serviço pela empresa, se o almoço custou R$ 10, pede nota fiscal de R$ 20.
- Comercializa objetos doados nas campanhas de catástrofes.
- Estaciona em vagas exclusivas para deficientes.
- Adultera o velocímetro do carro para vendê-lo como se fosse pouco rodado.
- Compra produtos piratas com a plena consciência de que são piratas.
- Substitui o catalisador do carro por um que só tem a casca.
- Diminui a idade do filho para que este passe por baixo da roleta do ônibus, sem pagar passagem.
- Emplaca o carro fora do seu domicílio para pagar menos IPVA.
- Leva das empresas onde trabalha, pequenos objetos, como clipes, envelopes, canetas, lápis, como se isso não fosse roubo.
- Comercializa os vales-transporte e vales-refeição que recebe das empresas onde trabalha.
- Quando volta do exterior, nunca diz a verdade quando o fiscal aduaneiro pergunta o que traz na bagagem.
- Quando encontra algum objeto perdido, na maioria das vezes não devolve.

Infelizmente, muitas destas práticas são generalizadas, enquanto outras são esporádicas. Mas, de qualquer forma, estão presentes no comportamento do brasileiro como uma espécie de cultura. Poucos se escandalizam com estas atitudes. E o pior: muitos, se pudessem, as praticariam sem nenhum problema. Outra questão é que estas práticas vão sendo ensinadas às crianças, através do exemplo que observam nos adultos.

O paradigmático de toda esta questão é que boa parte destes que praticam tais atos são os mesmos que cobram melhores condições de ensino nas escolas públicas, reclamam por melhores hospitais e, o mais intrigante, atacam a desonestidade dos políticos. Ora, como cobrar honestidade de políticos se o cidadão comum também não a adota em seu cotidiano? Como difundi-la se esta não é transmitida? Como valorizá-la se a desonestidade é vista como sinal de esperteza e a honestidade um insulto a inteligência?

Os políticos nada mais são do que o extrato da maioria. Cabe aos cidadãos decentes e honestos disseminarem sua honestidade e não se calarem diante das práticas que levam a um verdadeiro colapso da paz social, como se vê nos dias atuais. A mudança de uma sociedade começa através dos pequenos atos e não nas grandes revoluções. No dia em que nossa sociedade for composta por uma maioria honesta, a minoria desonesta não terá vez nem voz. O que se vê hoje é exatamente o contrário.

Definitivamente, o “faça o que eu digo, mas não o que eu faço" não funciona.

(Edison Evaristo Vieira Junior, do site Recanto das Letras)

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