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Teatro: As Benevolentes - Uma Anatomia do Mal

Na mitologia grega, as benevolentes são entidades que simbolizam a vingança e a punição aos mortais. Elas deteriam o poder de condenar à morte aqueles que cometessem crimes ocultos, revelassem sua pequenez moral e espiritual, expressassem uma atitude cínica. O título é adequado à instigante peça do dramaturgo americano Jonathan Littell, que exibe um homem entorpecido pelas faltas e falhas que cometeu em sua vida.

O personagem que assume o palco, nesta montagem dirigida por Ulysses Cruz e estrelada por Thiago Fragoso, é a figura fria e distante de Max, um oficial da SS – uma das mais célebres divisões da organização nazista de Adolf Hitler. Sem explicar as razões e motivações que o levam a expor suas memórias, decide narrar em primeira pessoa, com acentos aqui e ali de devaneios, episódios dolorosos de sua trajetória na Segunda Guerra Mundial. Ele alerta que não irá ocultar a realidade do que viu e presenciou. Tampouco irá se vangloriar de seus feitos.

Ao longo do conflito bélico, Max assumiu tarefas infames e protagonizou alguns dos principais lances que demarcaram a ascensão e queda do Terceiro Reich, como a implantação dos campos de concentração, a execução de judeus, a derrocada final do exército alemão e a tomada de Berlim pelos aliados. Como admite sem pudor, tudo o que fez foi de forma consciente. Ou seja, o anti-herói da trama é, ao mesmo tempo, um criminoso e um observador privilegiado, um sujeito despido de remorsos, amarguras ou culpas, que executou o seu trabalho da melhor maneira possível e hoje vive anonimamente sob outra identidade.

Littell escancara o personagem central como um anel de uma larga cadeia, um dente da engrenagem de um conflito mundial de contornos industriais. Max testemunhou uma série de mortes, entre as quais a de um menino judeu pianista, e chegou a fuzilar uma mulher agonizante no campo de batalha, quando teve a sensação de que o seu braço se desprendeu do corpo e passou a atirar em todas as direções. Em um momento desconcertante no espetáculo, para ilustrar matematicamente o significado de uma guerra, o ex-oficial nazista contabiliza o número de mortos por minuto. Os relatos são despejados com um apuro de linguagem que torna a narração dos acontecimentos algo quase insuportável.

É visível que o dramaturgo quer remover o espectador da zona de conforto proporcionada pelo distanciamento histórico dos eventos daquela época. Além disso, a peça se abre também para uma espécie de subtrama, focada na vida pessoal de Max, que sofreu as agruras de um lar desfeito e confessa sentir atração por outros homens, embora tente satisfazer a mulher de vez em quando.

A direção de Ulysses Cruz denota esforço para sublinhar o discurso impudico e implacável de Max. No entanto, cria marcações que servem como cilada ao ator que, num esforço físico contínuo, é impelido a encaixar pelo espaço cênico uma série de postes de madeira – alusão a um monumento em Berlim que homenageia as vítimas do Holocausto. Para um texto de caráter intimista, tal opção funciona como um convite ao expectador se dispersar. Talvez o diretor tenha receado não superar os riscos do cansaço e da monotonia de um enredo que exige concentração para melhor usufruí-lo.

Thiago Fragoso ainda se ressente de maior envergadura para encarnar um ser humano complexo como Max, mas desempenha o papel com diligência e nunca descamba para o mau gosto. Sua maior dificuldade é encontrar o tênue equilíbrio entre a pressão dos relatos e a narração impassível e impertubável – em algumas passagens, a ironia vaza sem refinamento e sutileza. Considerando o tamanho do desafio autoimposto, ele obtém bom rendimento geral ao evitar a super representação e enunciar as suas falas sem buscar rebuscá-las. 

O texto é relevante nos tempos atuais porque empina questões fundamentais sobre a lógica do genocídio e da política de extermínio. E que permitem pensar sobre a tragédia humana e a banalidade do mal que acompanha a humanidade desde sempre. Não à toa Max sustenta o argumento de que, em seu lugar, todos teriam feito o mesmo, ainda que com menos empenho ou mais angústia. “Você tem mais sorte de nascer numa época em que ninguém vem assassinar sua mulher e os filhos dos outros, porém não é melhor do que eu”, provoca, salpicando citações filosóficas de Sófocles e Schopenhauer. Em outras palavras, determinante não é o sistema de valores de cada um, mas o fato de ter nascido em um momento específico da história. Na visão do autor, Max carrega o peso de ser um produto das circunstâncias. Por isso não ser correto afirmar categoricamente de que se trata de um assassino. O perigo real é sempre o homem comum. “Eu sou um homem como os outros, como vocês”, fustiga. Em cena incômoda, o personagem pergunta se todos estão seguros de que realmente não ocorrerá uma guerra novamente. “Afinal, dementes e psicopatas escondem-se em todos os lugares, até nos bairros mais sossegados.”       

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Patricia Cividanes)

 

Avaliação: Bom

 

As Benevolentes – Uma Anatomia do Mal

Texto: Jonathan Littell

Direção: Ulysses Cruz

Elenco: Thiago Fragoso

Estreou: 21/01/2016

Clube Hebraica – Teatro Arthur Rubinstein (Rua Hungria, 1.000, Pinheiros. Fone: 3818-8800). Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 80. Até 13 de março.

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