EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Fogo-Fátuo

A trama do homem que simboliza o eterno choque do ser humano contra a sua condição transitória e finita, essência do mito de Fausto, serviu de referência para este novo texto de Samir Yazbek, autor de obras bem-sucedidas como O Fingidor e As Folhas do Cedro.  Irônico ou cruel, o título, nome dado à energia emanada de terrenos pantanosos ou de sepulturas, adquire o sentido figurado de brilho fugaz, tão apropriado ao que se pretende discutir em cena. No caso, a efemeridade de um mundo que perdeu o humanismo e se mercantilizou. Na visão do dramaturgo, a famosa lenda alemã de um homem que vende a alma ao diabo pode ser uma poderosa metáfora para a atualidade.

Na Europa, o mito de Fausto tornou-se tão popular que, no final do século XVI, começaram a surgir freqüentes representações teatrais protagonizadas por um mágico e alquimista que pactua com o demônio para obter sucesso e prestígio em sua carreira. Em A Trágica História do Doutor Fausto (1588), o dramaturgo inglês Christopher Marlowe deu forma literária à lenda popular, que dois séculos depois, na versão do escritor alemão Goethe (1749-1832), ganharia o status de uma das obras fundamentais da literatura germânica. Tratado como um arquétipo da alma humana, a história foi revisitada por diversos autores, do romancista Thomas Mann ao poeta Fernando Pessoa, e chegou aos cinemas em 1926, adaptado pelo cineasta F. W. Murnau.

Com a colaboração pontual de Hélio Cícero, o dramaturgo Samir Yazbek transpôs para o palco a angústia de um escritor em crise criativa que marca encontro com Mefisto para tentar reencontrar o eixo. O espetáculo, dirigido por Antonio Januzelli, foi desenhado como uma leitura não totalmente consolidada, permitindo-se modificações e a incorporação de novos olhares ao longo de sua temporada. Uma opção salutar para um trabalho que, com evidentes traços biográficos, revela ainda uma dramaturgia à procura de maior consistência e fôlego. O enredo construído sustenta-se numa espécie de discurso direto, sem meios tons e janelas para muita argumentação. Em conflito existencial, o personagem chamado Escritor confessa ter perdido a inspiração e o encantamento pela literatura, sentindo-se acuado em uma época que transforma arte em commoditie e dá endosso a modismos teatrais. Ele está desgostoso com o comportamento mesquinho e egoísta da humanidade, com as guerras santas e o descontrole da economia global, e quer uma explicação de Mefisto para a miséria espiritual em que vivemos. Perplexo e aturdido, o interlocutor confessa sua incapacidade de interferir em um planeta em que o mal, acredita, se instaurou no cotidiano a ponto de não causar mais o menor impacto.

Em que pese o potencial do tema, que permitiria uma discussão densa sobre o sentido da criação, a função do mal e o destino do homem, a peça se desenvolve como uma troca de impressões, comentários, desabafos e anseios pouco além do senso comum e certa simplificação. Contrariando a natureza do personagem, agente que impede o exercício da inércia no homem e o faz ver que o mal é parte integrante da alma humana, o Mefisto desta montagem é entendido como a própria encarnação do mal. Se em Goethe, Fausto busca uma espécie de redenção, aqui o Escritor está preso a uma crise pessoal sem raiz trágica. São complexidades que o texto não contempla ou pouco amplifica, mas que não tiram o mérito de um autor disposto a escancarar no palco não só uma inquietude pessoal como também seu inconformismo diante do atual estado de coisas.

Na encenação, a sala de teatro serve de ambientação para o embate sinuoso entre os dois personagens. Mesmo em crise como as demais artes, também vítimas de um certo rebaixamento cultural, o teatro ainda é um espaço provocador para se destrinchar o assunto. Tanto o Escritor quanto Mefisto rompem a divisão entre palco e platéia e trazem indiretamente o espectador para a trama. Na pele do autor com bloqueio criativo, Yazbek demonstra alguma limitação técnica e falta de desenvoltura, performance previsível para um profissional mais afeito ao bastidor. No entanto, de forma oportuna, ele se aproveita dessa condição para evidenciar a fragilidade e a insegurança do escritor, flagrado em uma situação limite. Experiente e um dos grandes atores brasileiros, Hélio Cícero introduz racionalidade e elegância a um Mefisto que anseia ser ressignificado no mundo de hoje – sua interpretação ganharia novas camadas se se libertasse de uma mesma moldura vocal que vem acionando em alguns trabalhos. Ambos são parceiros de longa data na inquieta Companhia Teatral Arnesto nos Convidou.

Amparado no talento conquistado na direção de atores, Januzelli (O Porco) imprime bom ritmo a uma montagem concisa e não busca criar ruídos desnecessários que pudessem perturbar a encenação. É um espetáculo bem acabado, preocupado em dar equilíbrio aos diálogos e criar marcas adequadas. Ele cercou-se de gente competente na área técnica. A cenografia minimalista de Laura Carone demarca o espaço cênico com areia. Poucos objetos de cena, como mesa, cadeira e bancos, preenchem o ambiente, pensado como uma arena ritualística ou, quem sabe, um fórum de debates. Há também um espelho que, ao descer do teto e promover a fusão de imagens dos protagonistas, produz um significado altamente simbólico. Assinados por Telumi Hellen, os figurinos brincam com a reversão dos estereótipos de Fausto e Mefisto. Se este, que personifica o mal, aparece com trajes de cores claras e luminosas, aquele surge vestido em peças de tons escuros, sublinhando seu momento emocional. A iluminação de Osvaldo Gazotti e a trilha sonora original de Marcello Amalfi funcionam satisfatoriamente, contribuindo para a funcionalidade da montagem. Um tanto distante ainda de gerar uma reflexão mais aprofundada sobre os tempos atuais, o espetáculo exibe ao menos o condão de atiçar uma discussão pertinente, além de mostrar que o bode está dentro da sala e poucos se dispõem a enxergá-lo.    

(Vinicio Angelici - O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Fernando Stankuns) 

 

 Avaliação: Bom   

 

Fogo-Fátuo

Texto: Samir Yazbek (com colaboração de Hélio Cícero)                                             

Direção: Antônio Januzelli                                                                                              

Elenco: Samir Yazbek e Hélio Cícero                                                                                         

Estreou: 21/02/2012                                                                                                                              

Sesc Santana (Avenida Luiz Dumont Villares, 579, Santana. Fone: 2971-8700). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 5 a R$ 20. Até 27 de maio.

 

 

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