EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Ou Você Poderia Me Beijar

É um doloroso conto de amor entre dois homens hoje octogenários, denominados A e B, que o público acompanha ao longo de mais de seis décadas de intervalo. O texto do dramaturgo inglês Neil Bartlett, em parceria com a trupe sul-africana Handspring Puppet Company, da dupla de bonequeiros Adrian Kohler e Basil Jones, é emocional e tocante, mas não sentimentalista e afetado. O casal homossexual está enfrentando o detalhe cruel da mortalidade porque um deles sofre de enfisema pulmonar e gradativamente perde a memória e a capacidade de comunicação. Na peça, circulam questões como companheirismo e o desejo de agir com dignidade, decoro e integridade diante da cruciante situação. Ambos ainda lidam com os trâmites burocráticos relativos aos direitos civis do cônjuge sobrevivente. Não existem garantias legais de que um herdará os bens do outro em caso de morte.

A trama escapa à cronologia padrão e segue um fluxo aleatório, saltando de trás para frente e vice-versa – da semana que eles se conheceram, em 1971, à que irão se separar de vez, em 2036. Em casa, A (Claudio Curi) e B (Roney Facchini) estão extremamente fragilizados e, de forma perseverante, tentam se lembrar dos primeiros dias que passaram juntos. O casal aparece em mais dois períodos de vida: na versão meia-idade (Marco Antônio Pâmio e Rodrigo Caetano) e durante a sua juventude (Thiago Carreira e Felipe Ramos), ocasião em que se apaixonam em uma repressiva África do Sul. A estrutura proposta pela dramaturgia não contempla os flashbacks habituais, mas uma deliberada sobreposição de tempos. Trata-se de um procedimento que funciona tanto para evidenciar os elos entre passado e presente como tonificar os sentidos do relacionamento. Observamos as cenas iniciais do romance, quando eles nadam, jogam squash, vão a uma festa e se beijam, e os últimos dias, ambientados no hospital e na residência. 

Há alguma insuficiência no texto e ausência de tensão, especialmente por não aprofundar a vida desses homens e não situar a história adequadamente ao contexto moral e político sul-africano – defensor dos direitos homossexuais, o autor prefere não explorar o temor de expor uma relação homoafetiva num ambiente moralmente hostil. Como desliza na segurança da superficialidade, a peça adiciona uma palestra médica sobre a corrosão da memória, com registro de trechos de Metamorfoses, de Ovídio, que descrevem a morte e suas transformações. Se pouco acrescenta à compreensão do que o casal está vivenciando, é um claro esforço em oferecer um acento clássico ao enredo.

Dirigida por Zé Henrique de Paula, a montagem contorna a relativa escassez dramatúrgica com sensibilidade e ternura comovente. A encenação exige cuidado especial porque os atores permanecem em cena praticamente durante todo o espetáculo e cabe ao espectador ir identificando quem é quem no decorrer da trama. É necessário dar clareza ao fato de que a narrativa não linear é pontuada por interferências dos amantes em outras idades. E achar o tom certo para a mistura de discursos, monólogos interiores, reflexões, memórias e silêncios. É preciso ainda traçar um fino equilíbrio entre a espontaneidade e a exuberância da juventude e os movimentos lentos e reflexivos do casal nos instantes derradeiros da vida. Em algumas sequências, a combinação de épocas parece um tanto confusa e o ritmo tende a desandar, mas o estilo metódico de construção da direção consegue prender a atenção da plateia.

O elenco cumpre seus papéis com diligência. Clara Carvalho faz malabarismos incorporando diversos personagens, como uma advogada, governanta, motorista de táxi e a cientista que, numa palestra, aborda a degeneração da memória provocada pelo Alzheimer – nesta função, a estudada falta de emoção acentua o incômodo da doença. Ela também funciona como narradora, que guarda distância dos acontecimentos e costura as cenas que envolvem o casal em suas três fases. Marco Antônio Pâmio e Rodrigo Caetano estão assumidamente comedidos e discretos porque ambos interpretam o casal na maturidade, faixa em que normalmente o equilíbrio prevalece. Thiago Carreira e Felipe Ramos esbanjam a energia e vitalidade dos jovens apaixonados. Celso Cury tem presença cênica e Roney Facchini desemaranha nuances e expressões de um grande ator.

Algumas cenas ganham relevo no palco. Em uma delas, realista, o velho B caminha com dificuldades visíveis e respiração nervosa – mais adiante, ele vai remexer uma caixa de fotografias cavoucando alguma lembrança. Em outra, carregado nos ombros, o jovem A nada no ar simbolizando um mergulho no mar. São momentos transcendentes em um espetáculo embalado pela doce canção What Are You Doing the Rest of Your Life, tema do filme Tempo para Amar, Tempo para Esquecer. Mesmo não alcançando potência emocional, a peça faz um retrato pungente e sombrio da fragilidade humana.  Ao colocar personagens no outono da existência, o dramaturgo elabora uma sincera meditação sobre o amor, a morte e a passagem do tempo.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Ronaldo Gutierrez)

 

Avaliação: Bom

 

Ou Você Poderia Me Beijar

Texto: Neil Bartlett e Handspring Puppet Company 

Direção: Zé Henrique de Paula

Elenco: Clara Carvalho, Roney Facchini, Cláudio Curi, Marco Antonio Pâmio, Rodrigo Caetano, Thiago Carreira e Felipe Ramos.

Estreou: 07/02/2014

Teatro do Núcleo Experimental (Rua Barra Funda, 637, Barra Funda. Fone: 3259-0898). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 40. Até 27 de abril. 

 

 

 

 

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