EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Adorável Garoto

Na cena de abertura, Delia pratica sexo oral em Harry. São amantes e ele deixa claro que, apesar de seus apelos, não pretende desfazer seu casamento. A esposa Nan sabe desse e de outros casos extraconjugais do marido, porém não demonstra desejo de solicitar a separação. Chega a ironizá-lo ao afirmar que, por conta de sua aventura sexual com a secretária, ele teria saltado do clichê para o arquétipo. Não há uma foto dos dois juntos, como ela lembra. O casamento deles está praticamente morto e se arrasta à base da incomunicabilidade e troca de golpes baixos.

O descompasso no amor, no entanto, será provisoriamente mascarado no momento em que o filho de trinta anos, pintor e professor de artes em uma escola primária, visita os pais. Ele não veio necessariamente para o almoço, como programado, mas com um pedido de ajuda. Isaac foi obrigado a sair do emprego porque se apaixonou por um de seus alunos e espera ser acolhido após a acusação de desvio de comportamento. A desestabilizadora notícia vira do avesso Harry e Nan, a partir de agora inseridos numa realidade de culpa e horror.  

Com direção da atriz Maria Maya, o texto do dramaturgo americano Nicky Silver (Pterodátilos / Os Altruístas) é um drama cômico sombrio sobre transgressões sexuais e morais em ambiente privado. Existe um óbvio paralelo com A Cabra ou Quem é Sylvia?, peça de Edward Albee, porque ambas lidam com uma preferência sexual que tangencia a  norma do comportamento aceitável. Outra influência é a obra Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, também de Albee, no que diz respeito às brigas conjugais movidas a álcool. Por fim, o tema ainda remete à Blackbird, de David Harrower, sobre a relação afetiva entre um homem maduro e uma pré-adolescente. 

Em que pesem as inspirações e os traços em comum, Silver tem voz própria, aborda o assunto de maneira peculiar e não persegue o escândalo fácil. A peça exibe carpintaria arguta ao articular sem dificuldades vários registros. Uma sequência cômica é sucedida por um momento tocante, uma cena que parece extraída de uma tragédia grega dá vez à farsa, uma pitada de realismo mágico pode anteceder um bizarro drama de tribunal. O autor captura a atenção do público apoiado num humor ácido, em solilóquios reveladores e diálogos entrecruzados que servem mais para tergiversar – há uma divertida situação em que todos desatam a falar ao mesmo tempo e ninguém escuta o outro. A questão central, o romance reprovável do filho, e o seu entorno, a desarmonia de um casamento de fachada, nunca chegam a gerar reflexões profundas. Aos poucos, no entanto, os eventos compõem a fotografia da fragilidade, ilusão e desespero de certa classe média enredada em crise de valores.

Vale observar como algumas conversas acontecem mecanicamente, sem propósito algum. Os sentimentos mais autênticos só se materializam quando os personagens, interrompendo a ação, se voltam para o público para dar apartes, relembrar episódios trágicos, externar uma emoção. Fora da cena, a psicanalista Elizabeth Hilton faz interjeições e interage com aquelas criaturas perdidas. É ternamente engraçado o colóquio que mantém com Délia, naquele instante no ápice de sua crise de identidade e com sérias limitações para perceber a situação na qual está envolvida. O curioso é que a própria terapeuta tem problemas pessoais para desabafar. O surpreendente jogo entre palco e platéia funciona como projeção ou imaginação dos evolvidos na trama. Um dos bons flagrantes da montagem, dentro desse espírito absurdo, é a realização de um estranho julgamento em que Harry e Nan se transformam em juízes e Délia faz taquigrafia da sessão.   

A fluída e cuidadosa direção de Maria Maya valoriza as tensões e reflexões emanadas do enredo e sublinha os necessários alívios cômicos. Em sintonia com o texto, ela institui um equilíbrio possível entre o conflito que purga o casamento sem amor dos pais e as penosas discussões em torno das revelações de Isaac. Cenas que poderiam facilmente descambar para o melodrama ou sentimentalismo rasteiro ganham a coloração de quadros dramáticos realistas. Tudo o que se vê é potencializado pela conveniente cenografia de Ronald Teixeira. O espectador vê o interior de uma casa transparente, que parece ter paredes de vidro, cercada por um jardim forrado de cascas de árvores – a premeditada abertura do espaço doméstico permite que se bisbilhote o comportamento daquela gente.

O elenco atua com desembaraço visível e fornece desenhos claros dos personagens. Por vezes, carrega um pouco no tom, o que conspira para aplacar a identificação completa da platéia com seus pares no palco. Na pele de Nan, a atriz Isabel Cavalcanti encarna uma mãe negligente e acovardada, afundada no consumo de álcool e antidepressivos, capaz de mudar o temperamento em segundos. Se no início esbanjava confiança e falava pelos cotovelos, gradativamente a pose se desmorona. Leonardo Franco dá vida a Harry, uma espécie de mulherengo sensível, que não lida bem com o seu passado e sofre um baque diante da confissão do filho. Seus confrontos com a esposa e a amante são intensos.

Michel Blois humaniza o desnorteado e infantilizado Isaac, o filho que não pode ser definido como um predador sexual e que parece ignorar os desdobramentos morais de seus atos. A secretária Délia, na eficiente, segura e comovente composição de Raquel Rocha, é uma mulher instável, que transpira carência pelos poros, vive implorando para que Harry fique de vez ao seu lado e desnuda-se emocionalmente à vista de todos. Mabel Cezar interpreta com irreverência e impertinência a psicanalista meio sem noção Elizabeth Hilton. O charme de sua presença está em surgir em meio ao público, dar pitacos e aos poucos se inserir no núcleo familiar.  

Trata-se de uma fábula divertida e inquietante sobre uma família disfuncional, desejos indomáveis, solidão e vínculos arruinados. Outra leitura possível está embutida em uma frase proferida durante o espetáculo, quando um personagem diz ao interlocutor que ninguém irá aparecer para salvá-lo. O desfecho inusitado, que reinterpreta a tragédia grega Édipo, insinua metáfora poderosa. A de que a cegueira, quem sabe, pode ser a saída para um mundo paradoxal.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Divulgação) 

 

Avaliação: Bom 

 

Texto: Nicky Silver

Direção: Maria Maya

Elenco: Isabel Cavalcanti, Leonardo Franco, Michel Blois, Mabel Cezar, Raquel Rocha

Estreou: 27/02/2015

Teatro Nair Belo (Shopping Frei Caneca. Rua Frei Caneca, 569, Cerqueira César. Fone: 3472-2414). Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 40. Até 29 de março.

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