EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Assim É (se lhe Parece)

Há um momento no espetáculo que traduz o cerne da obra do dramaturgo, romancista e contista italiano Luigi Pirandello (1867-1936). Sozinho, em frente ao espelho, o personagem Lamberto Laudisi diz que a imagem que vê refletida é diferente daquela construída a partir do olhar alheio. Quem estaria ali é o seu verdadeiro eu. De certa forma, à semelhança do que ocorre na vida, ele acabou permitindo que outras identidades fossem sobrepostas a dele. Laudisi é aquilo que o meio social, em pleno uso de subjetividade, acha que ele é. Tudo é relativo no mundo de Pirandello, que exerceu influência sobre diversos autores, como Samuel Beckett, Albert Camus e Edward Albee. Sua dramaturgia sintetiza a inglória luta do homem para alcançar a verdade.

Nesta montagem, dirigida com habilidade por Marco Antônio Pâmio, o conflito entre a essência e a aparência se avoluma aos poucos. Escorre pelo leito de uma trama que mostra personagens se debatendo diante de regras sociais que são estabelecidas para, no fundo, aprisionar o ser humano e não libertá-lo. Escrita em 1917, a comédia carrega uma inconveniente atualidade. No enredo, três forasteiros, que acabaram de se mudar para uma pacata cidadezinha italiana após sobreviverem a um terremoto, viram alvos da bisbilhotice local. Nesta provinciana comunidade, para compensar um cotidiano vazio, todos se comprazem na arte de espalhar mexericos e cultivar futilidades. Os novos moradores são criticados por supostamente exibirem um comportamento nada comum aos valores morais do lugar. Se naquela época os tipos pirandellianos já viviam atormentados tentando se amoldar às expectativas da coletividade, hoje o homem se encontra refém da ditadura da opinião pública.      

A incrível simetria com os dias atuais é o fermento que alimenta esta inteligente, instigante e vigorosa encenação de um texto que evoca uma discussão necessária sobre a fragmentação da identidade e o embaralhamento das esferas pública e privada. Não por acaso, a primeira cena faz uma oportuna e rápida alusão ao desenhista americano Norman Rockwell, artista sensível ao modo de vida americano. Uma de suas obras mais célebres é a emblemática The Gossips (1948), que ilustrava a reação das pessoas durante o ato de levar adiante uma fofoca. A peça faz justiça ao quadro. O senhor Ponza é o novo funcionário da prefeitura e sua mulher vive confinada em sua casa, à margem do convívio social, impedida até de ser visitada pela própria mãe, a senhora Frola. A circunstância é considerada tão inusitada que um grupo de comadres e  alcoviteiros quer entender as razões desse mistério.

A partir daí o espectador mergulha em um redemoinho. O senhor Ponza explica que sua primeira mulher, filha da senhora Frola, morreu durante o terremoto e quem vive ao seu lado é Júlia, seu segundo matrimônio. Por apostar na loucura da velha mulher, e preocupado em poupá-la de mais sofrimento, ilude-a de que Lina ainda está viva e casada com ele. A senhora Frola, no entanto, afirma que o jovem enlouqueceu ao acreditar na morte de Lina e, para não contrariá-lo, deixou-o casar pela segunda vez com a sua filha. Daí a necessidade de que ambas residam em endereços diferentes. Estamos diante do mesmo fato, mas com versões divergentes e contraditórias. A confusão de papéis é explícita: caso a filha esteja viva, como insiste a senhora Frola, ela é sogra do senhor Ponza. No entanto, se Lina morreu mesmo, como ele sustenta, ela se tornou ex-sogra.

Originalmente, a história transcorria no início do século passado, porém, Pâmio decidiu ambientá-la nos anos 1940. A transposição de época não comprometeu o espírito da obra e trouxe novos vapores à trama. Com cenografia simples, concebida basicamente por uma dúzia de cadeiras, camadas de cortinas e eventual uso de mesa para designar o espaço de um gabinete, a encenação aposta no crescente jogo de intrigas e no processo de histeria que passa a acometer a comunidade – em certas sequências, os personagens, progressivamente descontrolados, compõem uma bem divertida coreografia de gestos e ações de pura ansiedade. O que dá sabor à trama é a percepção de que tanto a senhora Frola quanto o senhor Ponza desembrulham argumentos convincentes, conhecem a versão contrária e se movem pela compaixão. Ao seu modo, cada um se esforça para manter intacta a ilusão do outro, como se observa durante uma surpreendente acareação. Nem o levantamento de provas documentais chega a ser conclusivo. A última cartada é convocar a própria mulher do funcionário público, no desfecho revelador.

O espetáculo é digno do peso deste clássico da dramaturgia mundial. De modo algum se perde em meio ao universo de absurdos, dúvidas e singularidades. Levemente inspirado em alguns dos procedimentos do vaudeville, por conta da carga de intrigas e o ar farsesco, aqui adquire o desenho de uma ferina comédia de costumes. O diretor deixa o público se levar pela curiosidade natural do enredo, harmoniza humor, suspense e melodrama e dá agilidade aos eventos. Três planos são visíveis. O primeiro corresponde aos supostamente excêntricos visitantes. O outro é preenchido pelos abelhudos moradores. O terceiro toma corpo na presença de Lamberto Laudisi, espécie de alter ego do autor.

O elenco reunido revela excesso de apuro, contrabalançando diversão e profundidade. Rubens Caribé interpreta com latente ambigüidade a figura de Laudisi, figura que desaprova os fuxiqueiros, critica a moral burguesa e solta gargalhadas mirando provocativamente a platéia. Bete Dorgam encarna uma senhora Frola frágil e comovente. Nicolas Trevijano, como o senhor Ponza, tem desempenho correto, mas sua atuação ganharia notas diferenciadas se ele infundisse mais angústia e aflição ao personagem e o deixasse menos rígido.  Na pele do agitado Conselheiro Agazzi, um dos mais incomodados com a presença dos estrangeiros, Joca Andreazza entrega performance vibrante e persuasiva. Seguros, os demais atores também efetivam rendimentos satisfatórios.

A peça é uma parábola aguda sobre a maleável natureza do absoluto e a impraticabilidade da existência de uma única verdade. Neste texto, somos guiados a um beco sem saída. Pirandello não finge isenção. Ainda que escorado no humor, ele pinta um retrato pessimista e destrutivo da chamada opinião pública. O autor acredita que o homem está fadado ao sofrimento por tentar inutilmente conciliar conteúdo e imagem. Em sua visão, opor a loucura à normalidade seria um esforço vão.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )    

(Foto Heloisa Bortz)

 

Avaliação: Ótimo

 

Assim É (se lhe Parece)

Texto: Luigi Pirandello

Direção: Marco Antônio Pâmio

Elenco: Bete Dorgam, Nicolas Trevijano, Rubens Caribé, Joca Andreazza e outros.

Estreou: 11/04/2012

Sesc Vila Mariana (Rua Pelotas, 141, Vila Mariana. Fone: 5080-3000). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 35. Até 18 de maio.

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