EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Estrada do Sul

Certo dia, a caminho de uma grande cidade, motoristas empacam em congestionamento quilométrico em uma autoestrada. Ninguém imaginava a causa do surpreendente engarrafamento, que vai acabar se estendendo por horas, dias, semanas, meses. A circunstância é insólita, surreal, desconcertante. Todos estão prisioneiros do tempo e do espaço. Neste contexto, relações interpessoais vão se desenhando, grupos se organizam, lideranças são instauradas, gestos de solidariedade se impõem, com a repartição de comida, água, cobertores. É forjada uma logística de guerra para a sobrevivência. Conflitos, atritos e intolerâncias, rompimentos de pactos e atitudes aéticas, no entanto, não demoram a eclodir. Difícil não entender esta nova realidade como uma crise da sociedade contemporânea ou, num olhar mais agudo, metáfora do fim da civilização.

Trata-se de uma experiência peculiar a que o público se submete em uma rua da antiga e histórica vila operária Maria Zélia. São dezoito modelos novos e antigos de carros, que acolhem três espectadores cada um e que funcionam como palco, assento e até cama. Todos os veículos têm um ou dois atores, que dão vida a uma série de personagens, e a ação transcorre no interior e no exterior dos automóveis. Livremente inspirado em A Autoestrada do Sul, conto de realismo fantástico do escritor argentino Júlio Cortázar (1914-1984), o espetáculo é uma co-produção entre o brasileiro Grupo XIX de Teatro, pilotado por Luiz Fernando Marques, e a italiana Compagnia del Teatro Dell'Argine, com direção e dramaturgia de Pietro Floridia. O diretor e dramaturgo preservou a estrutura original da trama e a temperou com excertos de obras de Pablo Neruda, Hilda Hilst e Mia Couto, além de ter criado outras situações e incentivado o improviso dos intérpretes. 

Nesta envolvente encenação, o espectador-passageiro entra e sai dos carros o tempo inteiro para acompanhar o novelo de eventos que é desfiado. Uma das facetas mais estimulantes é que cada um assiste à peça de um jeito, de acordo com o veículo em que foi acomodado e o personagem que lá se encontra. Ninguém vê o mesmo espetáculo, mas recortes da realidade. Nesse papel de testemunha ocular, em que é requisitado a se envolver e se sentir cúmplice, cabe ao público tecer a narrativa, criando associações e garimpando os significados. Trata-se de um microcosmo ao mesmo tempo simples e complexo. Se no âmbito dos automóveis as relações são determinadas pela natureza intimista das histórias pessoais e a interação entre personagens e passageiros, nas cenas externas são as questões políticas que emergem.  

Aos poucos, o espetáculo vai adquirindo força, com o acréscimo de graus de angústia e algum desespero. É uma imobilidade, diga-se, que enerva. Mesmo porque há momentos em que sobressai uma guerra de buzinas, batidas de portas, o arranque de um motor. E, principalmente, uma troca de insultos e maldições contra o estado das coisas. Em algumas sequências, uma briga acontece em frente ou ao lado do veículo, personagens conversam entre si, um festivo casamento é improvisado, um cortejo fúnebre avança em meio ao congestionamento. Até um roubo se materializa e desemboca em graves acusações, com direito ao enclausuramento dos suspeitos. Às vezes chega um estranho, alguém em ziguezague por entre os carros, que traz alguma notícia inquietante, repetida ao longo das filas, sobre os motivos do engarrafamento. Dentre as suposições, até um atentado terrorista é cogitado. Ainda que o nível de tensão nunca seja totalmente expandido, o público experimenta a contraditória sensação de claustrofobia em um ambiente absolutamente aberto. Um cárcere simbólico e desconfortante.   

Curiosamente, os personagens são identificados e diferenciados de acordo com o veículo que dirige, pela sua atividade profissional, por algum adjetivo relacionado à sua faixa etária ou ao seu status social. É um comboio humano que reúne mecânico, freira, adolescente, escritor, comerciante, policial, noivos, uma mãe alcoólatra e seu filho renegado, um professor comunista. Mesmo desigual, com certos desempenhos demandando maior depuração e aprimoramento, o elenco não compromete coletivamente. O vibrante e impetuoso conjunto dá conta de viver figuras multifacetadas, que tanto podem oferecer ternura ou cometer vilanias, exorcizar fantasmas, exibir pequenas mesquinharias, expor vaidades desnecessárias, partir para a agressão física, desnudar inquietações existenciais, se entregar a paixões momentâneas No fundo, naquela condição de tonalidades trágicas, eles tentam vivenciar a possibilidade utópica de uma comunidade de viés socialista. Mas que irá sucumbir, por exemplo, ao primeiro sinal de escassez de alimentos e água. 

É um trabalho que, se não beira a intensidade de um pesadelo e encontra alguma dificuldade em soar corrosiva na maneira como aborda esta fábula da decadência humana, consegue radiografar satisfatoriamente os preconceitos, os pequenos poderes, os contrastes sociais, as idiossincrasias e o modo de vida burguês de uma sociedade que elegeu o carro como símbolo opulento do consumismo. Nota-se aqui e ali quedas de ritmo, natural em um espetáculo que depende em parte da interação de espectadores nem sempre atentos à dramaturgia, mobilizados apenas para o que julgam ser mera diversão. A montagem não denuncia, mas registra a temperatura de uma sociedade com febre. Ecoa a ideia de quanto medonho pode ser o comportamento humano em situações extremas.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Marcela Falci)

 

Avaliação: Ótimo

 

Estrada do Sul

Criação: Grupo XIX de Teatro, Pietro Floridia e Daniela Scarpari, a partir do conto de Júlio Cortázar 

Direção e Dramaturgia: Pietro Floridia

Elenco: Daniel Viana, Ligia Yamaguti, Maria Carolina Dressler, Ronaldo Serruya e outros

Estreou: 04/09/2013

Armazém XIX (Rua Mário Costa, 13, Vila Maria Zélia, Belenzinho. Fone: 2081-4647). Domingo, 19h. Ingresso: R$ 20. Até 1 de dezembro.

 

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