EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Preto no Branco

À distância, lembra uma família normal de classe média do subúrbio. De perto, no entanto, são preconceituosos, ordinários, reféns de etiquetas sociais e formalidades. E o que é pior: não exalam suas intolerâncias aos berros, mas em conversas educadas e reservadas. A peça do dramaturgo inglês Nick Gill, levada aos palcos pelo diretor Zé Henrique de Paula, desembrulha um estudo sem concessões do comportamento desviante de um estrato social sem ética e propagadora de cavalares doses de hipocrisia. A dona de casa Jane Jones (Clara Carvalho), xenófoba à flor da pele, alimenta fantasias com homens negros ao mesmo tempo em que nutre um pavor patológico dessa etnia. Particularmente está assustada após deparar, numa estação de trem, com um grupo deles em atitude que julgou suspeita. Indignada, chega a sonhar que todos os de pele negra se esfaquearão até a morte. Só um rapaz negro escapa de seu olhar torto, justamente um bancário que decidiu se naturalizar.

O marido, James Jones (Marco Antônio Pâmio), não passa de um frio e calculista negociante de armas para milícias privadas que atuam em nações em estado de guerra civil. Ele trabalha duro e, ao chegar à sua residência depois do expediente, costuma relatar para a mulher como foi o seu dia. Ela faz o mesmo também. No fundo, ambos exercitam um ritual efusivo de banalidades. A filha Jenny Jones (Bruna Thedy) é uma adolescente tão sexualmente ativa quanto frustrada, que não vai para a cama com o namorado antes do casamento por firulas religiosas, mas gosta de espiar o irmão John Jones (Thiago Carreira) tomando banho, por quem transpira sentimentos incestuosos. Este, por sua vez, acabou de regressar da universidade, cultiva grandes ideias e a urgência de ver a sua namorada um tanto ninfomaníaca.

O autor não poupa sua metralhadora e atira para todos os lados. Para desnudar o microcosmo dessa família modelo, liberal no comportamento, porém avessa ao convívio com seres de outra raça, ele embala os eventos em uma chave irônica, quase cáustica. Não é errado recorrer à dramaturgia de Ionesco, que adorava a pulsão das conversas ridículas e as ações sem sentido, para entender aquele núcleo formado por gente de mentalidade estreita. O público ri porque é difícil se manter indiferente diante de um clã embebido em relações sexuais freudianas, que sente dificuldades em mascarar seus valores e não avança um milímetro além de só falar o que está exatamente em sua mente. Por isso, não se estranha que, após o jantar, o pai anuncia de forma muito natural que subirá ao quarto com a mãe para fazer sexo. O mundo engaiolado do quarteto será transtornado após a apresentação de Kwesi (Sidney Santiago), o namorado muçulmano negro de Jenny. Inicialmente, a mãe o confunde com um ladrão, embaraço desfeito pela oferta interminável de chás ao visitante.  

A comédia de tintas absurdas pode até prevalecer como peça de humor, mas os assuntos abordados são sérios demais para serem ignorados. Sequências terríveis são trabalhadas com incômoda leveza. É o caso, por exemplo, de uma cena de sexo oral em que a parceira involuntária do ato encontra-se em estado catatônico. Em outro momento, alguém pergunta ao interlocutor se este, alguma vez, já decepara a perna de uma pessoa. A montagem não escorrega para lá nem para cá e equilibra-se entre ambos os registros. O cuidado em transitar pelas duas esferas sem pesar a mão é maior, inclusive, a partir do instante em que a família migra para o Oriente Médio com a intenção de tonificar os lucros do negócio do chefe de família. Aparentemente nada mudou. Todavia, basta observar a incrível semelhança entre a ex e a nova casa de Jane e James. Gill cutuca o espírito tacanho de uma classe média que, orgulhosa de morar em uma das maiores cidades da Inglaterra, como o casal Jones vive a repetir, plagia a mesma decoração em um país de estética antagônica. É uma sátira incisiva sobre a natureza imutável do status quo, de um sistema que se impõe e se reproduz por inércia.

Diante de material sugestivamente rico, provocador de um nó na consciência, Zé Henrique de Paula finca um estilo de direção elegante e dinâmico. Mostra traquejo na maneira como reafirma e ao mesmo tempo implode os estereótipos raciais. A harmonia entre o riso e o horror obtida na primeira parte mantém-se intocada quando a história se desloca para o Oriente Médio. A direção não perde o controle diante de eventos mais ultrajantes, que tornam a realidade mais anômala ainda. O ritmo fluído permeia toda a encenação, até na ocasião de um monólogo sobre temas religiosos e mitológicos.

Sintonizado com o espírito da peça, o elenco oferece performances naturalmente adequadas. Clara Carvalho é persuasiva na pele da esposa iludida e tosca, que oscila entre o desejo e o medo. Ela parece estar sempre à beira de um colapso nervoso. Marco Antônio Pâmio encarna o marido janota, de olhar entorpecido e afogado em tibieza. Em duplo papel, Bruna Thedy compõe com trejeitos nunca excessivos, frescor espontâneo e desavergonhada sensualidade duas estilosas adolescentes. Também se desdobrando em dois, Sidney Santiago enfrenta com segurança o desafio de tornar crível um personagem religioso que, cooptado pelo sogro, muda radicalmente sua personalidade. Com bons recursos técnicos, Thiago Carreira transforma John numa figura insolente e presunçosa. Em graus variados, todos os personagens acabam se tornando cúmplices das abominações escancaradas no palco. 

É possível apontar que o texto sofre de instantes de prolixidade e por vezes quer tratar de muitas coisas simultaneamente em curto espaço de tempo. Nada que disperse, ressalte-se. Sobra escárnio e bastante derrisão neste tratado sobre o caráter de uma classe média descaradamente genérica, simbolizada por uma família cujos integrantes curiosamente ostentam nomes e sobrenomes iniciados com a letra jota. James, Jane, Jenny e John vivem sorrindo, comoventemente satisfeitos com o seu modo de vida. Continuam sendo o que sempre foram. No dia-a-dia dessa família britânica, tão universal que irrompe fronteiras geográficas, as etiquetas vem antes da ética e da moralidade. 

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Ronaldo Gutierrez)

 

Avaliação: Ótimo

 

Preto no Branco

Texto: Nick Gill

Direção: Zé Henrique de Paula

Elenco: Clara Carvalho, Marco Antônio Pâmio, Bruna Thedy, Sidney Santiago e Thiago Carreira.

Estreou: 31/10/2014

Teatro do Núcleo Experimenta (Rua Barra Funda, 637, Barra Funda. Fone: 3259-0898). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 40. Até 21 de dezembro.

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