EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Família Lyons

Alguém já disse que não há situação mais solitária do que estar com sua própria família. Neste drama cômico do dramaturgo americano Nicky Silver (Pterodáctilos / Adorável Garoto), pela primeira vez levado aos palcos brasileiros, em montagem assinada por Marcos Caruso, o aforismo se confirma. Mesmo reunidos por conta da morte iminente de um deles, os quatro integrantes deste núcleo familiar disfuncional não conseguem agir civilizadamente. Egocêntricos, apreciam a arte de denegrir um ao outro e se esforçam para provocar mal estar alheio. O que torna mais sórdida a circunstância é que este estúpido comportamento coletivo transcorre nas dependências de um hospital, local onde se deveria respeitar o calvário dos doentes.    

Entrevado na cama, devastado por um câncer terminal, o ranzinza Ben passa o tempo vomitando palavrões para a esposa. Enquanto isso, a indiferente Rita se deleita folheando revistas de design de interiores, disposta a selecionar projetos para decorar a sala de estar da casa onde moram. Ela o tortura com detalhes de seus planos estéticos. A proximidade da viuvez quase nada a abala. Chega a ironizar o marido, ao percebê-lo aflito sobre eventual viagem ao inferno. “Quem você pensa que é para entrar no inferno? O que você já fez?”, fustiga-o.

Hilariantemente espontâneo e irascível, o casal aguarda a chegada dos complicados filhos, que desconheciam o quadro de saúde do pai. Lisa é uma alcoólatra em recuperação, divorciada de um marido violento e mãe solteira. Curtis é um escritor homossexual meia boca que gosta de inventar histórias sobre seus relacionamentos. A visita deles irá acelerar a tensão, porque eles engrossam o torneio de insultos, animosidades e revelações repugnantes. Os irmãos, por sinal, são incapazes de sustentar qualquer tipo de relacionamento saudável. Nem a morte do patriarca terá o condão de melhorá-los como seres humanos.

O autor compõe a imagem bárbara desse quarteto desagradável que chafurda na miséria moral. É irônico notar que a foto do programa da peça é uma caixa de remédio tarja preta. Afinal, os Lyons estão profundamente enfermos, infectados por decepções, culpas e ressentimentos. O texto desembrulha a autodestruição da família por meio de diálogos espirituosos, de humor ácido. Coloquiais, as frases adquirem tonalidade exasperante. Rita, por exemplo, pergunta para Lisa se ela já levou o filho para realizar um determinado exame médico porque, na sua avaliação, o neto é meio retardado.  

Se o primeiro ato solapa a promessa de arrependimento e perdão no leito de morte, no segundo o pai morreu e as atenções se voltam para o filho. O ambiente agora é o interior de um apartamento vazio, imóvel que pretensamente o rapaz deseja comprar. Na verdade, ele só queria atrair o corretor, a quem espionava sorrateiramente. A desesperada tentativa de estabelecer algum contato humano, no entanto, se revela um fiasco, uma vez que a conversa rapidamente se degrada e o desfecho dela conduz Curtis de volta ao hospital, onde receberá os cuidados da mesma enfermeira que cuidou do falecido pai. Outra vez a família se reúne para o exercício da troca de veneno verbal e carências espirituais. A mãe chega a desatar um discurso eufórico sobre o direito de uma viúva ao sexo e felicidade.        

O diretor rege com elegância e equilíbrio os diversos atritos, desconfortos e falsas reconciliações, costurando com naturalidade as passagens cômicas e trágicas da história. Caruso simplifica a encenação, fazendo-a deslizar com bom ritmo e fluência, humanizando os personagens até quando estes escancaram sua pequenez de espírito. A solidão de cada uma daquelas figuras no palco é desenhada com franqueza e desassombro. As marcações são facilitadas pela austera e funcional cenografia de Alexandre Marucci, uma parede de persianas que serve para materializar ambientes e agilizar a movimentação dos atores.

O elenco se entrega com desvelo à trama e às suas criaturas. Cada um é presenteado ao menos com monólogo emotivo. Suzana Faini passeia à vontade na pele da egoísta Rita, que nunca amou o marido e descobre, com atraso, o momento de mudar de rota. Sua atuação é enriquecida de sutilezas ao evitar o caminho fácil de transformar a matriarca num monstro de insensibilidade. Na composição do grosseiro Ben, o ator Rogério Fróes calibra os sentimentos de raiva, decepção e angústia. Ao mesmo tempo em que borrifa impropérios no ar sem medir consequências, é capaz de revelar seu amor pela companheira a quem hostiliza e se lembrar ternamente de seu pai morto.

Emílio Orciollo Netto encarna de forma aguda o obsessivo Curtis. O encontro com o agente imobiliário é uma das cenas mais estranhas e insinuantes do enredo, porque o que começa como casual se torna abertamente ultrajante. Ele injeta pílulas de perturbação a um homem que escreve histórias ridículas para sobreviver e tem uma vida amorosa inexistente. A carente Lisa, na firme interpretação de Zulma Mercadante, é uma mulher fragilizada, atropelada por inseguranças pessoais. Num papel fundamental para a trama, Pedro Osório é veemente como Brian, o tosco e imprevisível corretor de imóveis. Em rápidas intervenções, Rose Lima desempenha com determinação a enfermeira, que em certa passagem crucial manifesta o raciocínio de que algumas pessoas estão destinadas ao isolamento.    

Silver pinta a família como um pólo destrutivo, um aglomerado de gente em estado de falência, insinuando que é mais saudável não estar na companhia de parentes. Texto doloroso, ao mesmo tempo engraçado e comovente. À sua maneira, os Lyons buscam a felicidade pessoal, algum tipo difuso de afeto, ainda que não saibam como.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Paula Kossatz)

 

Avaliação: Ótimo

 

Família Lyons

Texto: Nicky Silver

Direção: Marcos Caruso

Elenco: Suzana Faini, Emílio Orciollo, Zulma Mercadante, Rogério Fróes, Rose Lima e Pedro Osório.

Estreou: 04/09/2015

Sesc Consolação (Rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque. Fone: 3234-3000). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 20 e R$ 40. Até 27 de setembro.

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