EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Breu

Imerso na escuridão total durante os dez primeiros minutos, o público acompanha as falas de uma personagem que se movimenta com desenvoltura pelo cenário. Trata-se de Carmen que, perceberemos, tem deficiência visual. Mesmo cega, ela corta legumes em pedacinhos com velocidade impressionante, acende o fogão e lava a louça. O espectador está infiltrado em uma casa do subúrbio carioca, no interior de uma cozinha preenchida de objetos e peças reais, como uma geladeira e um ventilador, que funcionam ao serem ativados. No breu, o ambiente parece um esconderijo, abrigo ou até refúgio. Assinada pelas diretoras Silvia Siqueira Campos e Miwa Yanagizawa, parte da encenação transcorre nessa espécie de penumbra ameaçadora, suavizada apenas pela luz de velas ou clarões que ora invadem as frestas das janelas. A anfitriã acabou de receber Aurora, contratada para ajudá-la em tarefas domésticas, mais especificamente para preparar cachorros-quentes que a dona da casa vende para sobreviver. O texto do jovem Pedro Brício, elogiado dramaturgo carioca, é ambientado na sombria década de 1970, em pleno regime militar brasileiro, e expõe estas duas personagens em processo de conhecimento mútuo. Lentamente vamos descobrir que Carmem aguarda o contato do irmão, um professor universitário e ativista político que caiu na clandestinidade. Aurora está em conflito com os pais e insegura com o homem com quem está envolvida afetivamente.

Sem se escorar no empilhamento de acontecimentos, a peça articula interesse a partir do relacionamento dessas duas mulheres que, de formas distintas, sofrem os efeitos e as conseqüências de uma realidade repressora. Um drama simples, se olharmos só a moldura, mas de conteúdo forte caso o observamos com lentes de aumento. O que seria mais um encontro casual, redunda em uma relação movida pelo medo e desconfiança, que tanto pode ter origem no mundo exterior como emergir daquele ambiente ralo de iluminação. O ruído de um cachorro, o toque de um telefone, a queda de uma louça, qualquer imprevisto pode virar uma ameaça terrível. Tanto o público quanto o espectador estão imbricados em uma atmosfera de tensão crescente, um estado de suspensão. Quase nada se diz a respeito do pano de fundo político, porém percebe-se uma certa angústia, uma respiração mais pausada. Carmem e Aurora moderam as palavras e os gestos, dosam segredos, anseios e pequenas revelações. Se no começo a primeira sobressai e parece exercer controle sobre a circunstância, aos poucos, no entanto, denota fraqueza e sua condição indefesa, enquanto a segunda perde o acanhamento inicial e deixa aflorar um temperamento mais expansivo.   

Nada no espetáculo é explícito, tudo é velado, camuflado, sutil. Por trás dos diálogos naturalistas e só na aparência insípidos, boa parte deles navegando em torno de preferências culinárias e troca de ligeiras impressões sobre a vida, insinua-se um subtexto rico sobre o sentimento de inquietude e a sensação de abandono diante de um árido contexto político. O autor foge de uma previsível abordagem panfletária, passa ao largo da ideologia para dar realce ao intimismo das relações interpessoais, recurso esperto para tratar de assunto espinhoso por via indireta. É um texto de cunho realista, que por instantes abandona essa índole e flerta com a poesia ao evocar nos diálogos citações da filósofa Hannah Arendt.    

Em harmonia com um jogo que projeta sombras e fixa uma violência psicológica, a direção deixa que o ambiente emocional se configure de forma gradativa, sem apressar o jogo, impondo à cena uma contenção anuladora do melodrama fácil. Com intensa presença cênica, Kelzy Ecard encarna uma solitária e vigiada Carmem com sensibilidade e matizes. A atriz, que mantém os olhos fechados o tempo todo, vale-se de técnica apurada para se movimentar pelo espaço sem parecer seguir uma coreografia de marcações. Natália Gonsales também revela desembaraço na composição de Aurora, transitando por diversas chaves de emoção. A peça, que culmina em um desolado e improdutivo jardim, é entrecortada pelo relato de histórias inventadas pelas personagens, talvez válvula de escape para a situação aflitiva vivida por ambas. O breu do título não significa só a ausência de luz, mas a sombra de um horror não dito.                                                                                                                        

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto: Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

Breu                                                                                                                                         

Texto: Pedro Brício                                                                                                         

Direção: Maria Silvia Siqueira Campos e Miwa Yanagizawa                                         

Elenco: Kelzy Ecard e Natália Gonsales                                                                         

Estreou: 11/05/2012                                                                                                                

Viga Espaço Cênico (Rua Capote Valente, 1.323, Pinheiros. Fone: 3801-1843). Quinta e sábado, 21h; sexta, 21h30; domingo, 20h. Ingresso: R$ 30 e R$ 40. Até 16 de dezembro.

 

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