EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

  • Font size:
  • Decrease
  • Reset
  • Increase

Vermelho

Nesta peça, o dramaturgo norte-americano John Logan desembrulha rico e amplo espaço para uma poderosa reflexão sobre o papel do artista na sociedade, o significado da arte, as razões para criá-la e sua função no mundo. O pintor Mark Rothko (1903-1970), um dos nomes mais expressivos nas artes plásticas do pós-guerra, está em crise. Trata-se de um homem criativo mergulhado em absoluta angústia, com sérias dificuldades de lidar com o paradoxo de ter que agradar consumidores fúteis que podem comprar o seu trabalho. Ele discursa sobre a guerra entre arte e comércio e de como a cultura se transformou em mero entretenimento. Em sua maneira de enxergar as coisas, a arte deve ser séria ou está condenada a não merecer existir.

Assinada por Jorge Takla e estrelada por Antonio Fagundes e Bruno Fagundes, pai e filho na vida real, a vigorosa montagem dá vida a esse debate acalorado. Tudo é muito intenso, emocionante e envolvente neste texto, que extrapola os limites da discussão sobre a natureza rebelde do processo artístico e a aflição de quem busca a perfeição no ofício para alavancar observações instigantes sobre a vida e a morte. A trama é ambientada no final dos anos 1950, no ateliê de Rothko, artista nascido na Rússia e naturalizado americano, que se tornou estrela do expressionismo abstrato, ao lado de Jackson Pollock e Willem de Kooning. O espectador acompanha o relacionamento dele, em um momento em que já começa a perder o tônus de influência, com o jovem aspirante a pintor Ken. Mediante um cachê milionário, ele está produzindo uma série de murais para enfeitar as paredes do novo e elegante restaurante do Four Seasons, instalado na cobertura do edifício de um arquiteto renomado. Da mesma forma que o aluno vai invadir o espaço do mestre, este está prestes a coabitar o ambiente dos endinheirados. 

O grande trunfo do espetáculo é que o conteúdo estético, conceitual e filosófico levado a cabo pelos personagens não se perde em verborragia chata. Concomitante às discussões sobre a história da arte e suas implicações, aflora uma sedutora disputa verbal entre mestre e aprendiz e seus pontos-de-vistas e concepções acerca da arte e da vida. Um duelo entre dois homens, pontuado por músicas clássicas e respeito reverente, mesmo nos instantes mais loquazes. Rothko não é um artista fácil de se relacionar e Ken se dá conta disso. Logo de cara ouve do mestre que hoje em dia todo mundo gosta de tudo e que vivemos sob a tirania do bem, num mundo sem discernimento. Da mesma forma, é informado de que a pintura que ele cria é para a posteridade e não pela fama ou fortuna. "Eu estou aqui para fazer você pensar, não para pintar quadros bonitos", avisa, mesmo insistindo não ser professor – obcecado pelo significado de formas e matizes, quer ensinar o pupilo a olhar a arte não como um borrão na tela, mas como um desfile de emoções. Culto, influenciado pela obra de Nietzsche, Rothko passeia por Sócrates a Shakespeare, Freud a Yung e ataca, com raciocínio afiado, a cultura pop do dia, desancando, por exemplo, o trompetista e cantor de jazz Chet Baker e o pintor iconoclasta Andy Warhol. Ambos, sustenta, carecem de profundidade e substância. A montagem oferece diálogos fortes e cenas pungentes. Em uma delas, os protagonistas pintam a mesma tela como se compusessem uma sinfonia, em um momento delicado de entrelaçamento. Em outra sequência, poeticamente dilacerante, Rothko vocifera a sua visão dos murais pendurados no Four Seasons, quando teme o rebaixamento de seu trabalho a mero papel decorativo, em vez de significar veículo para a transformação. Afinal, suas pinturas estarão emoldurando um lugar de negócios, com executivos engravatados mais interessados em refeições e transações do que vermelhos e pretos.

A direção de Takla é sutil e inteligente o suficiente para não criar ruídos desnecessários.  Ele desenha uma encenação que ajuda a manter as idéias em movimento e o fluxo da ação, ocupando o tempo ocioso entre as conversas dos personagens com uma série de mudanças efetuadas no palco pelos atores – telas descem e sobem e a mesa de trabalho se desloca de um ponto a outro, por exemplo. Tais momentos de silêncio funcionam não só de contemplação como alívio para as disputas verbais que ocorrem. A minuciosa  iluminação, de Ney Bonfante, tem ares de partitura porque rege o discurso de Rothko sobre a importância da luz para não quebrar o feitiço da obra e deixá-la radiante e viva.  Apesar do peso do texto, a leveza do espetáculo garante o interesse do público até o último minuto. Mesmo o clichê do artista atormentado, em crise com suas criações, tão comum no cinema, literatura, teatro e nas artes plásticas, é contornado satisfatoriamente pelo diretor, que mantém o foco no universo rico e pulsante da pintura.

Com visível química no palco, ambos os atores destravam desempenhos apaixonados, até nas pequenas ações, como misturar a tinta, preparar a tela, debater a luz ideal para realçar um quadro. Antonio Fagundes preenche de energia e vitalidade um personagem arrogante, vaidoso e brilhante, que caminha exalando mau humor e agressividade criativa. Seu Rothko é uma figura que cativa mesmo suando reclamações pelos poros e lascando suas obsessivas percepções sobre a vida e a arte. Ele o impregna com a ansiedade de um homem com medo de que o seu lugar no mundo da pintura esteja  por um fio. Bruno Fagundes, intérprete em processo de maturação, aproveita a ainda pouca experiência teatral a favor da composição de Ken, injetando humanidade ao assistente que luta para se tornar um pintor de vida própria. O ator faz o personagem evoluir da condição de aluno curioso para o artista que descobre a sua sensibilidade artística e adquire consciência de seu papel no jogo, chegando a desafiar a visão artística do mestre. Um dos momentos mais veementes é justamente quando ele mede forças com Rothko e defende apaixonadamente a sua forma de ver a arte. O texto de Logan evidencia o embate de duas gerações que brigam pelo significado e o propósito da arte. Escancara o dilema de todo criador que, para sobreviver em um mundo mercantilizado, muitas vezes precisa abdicar do compromisso estético e ideológico para encher o bolso. E põe em cena um artista que, fadado ao declínio, brada contra a irrupção da próxima caravana de artistas, também tão inquieta, provocadora e talentosa quanto ele.   

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )
(Foto João Caldas)

 

Avaliação: Ótimo

Vermelho

Texto: John Logan

Direção: Jorge Takla

Elenco: Antonio Fagundes e Bruno Fagundes

Estreou: 24/03/2012

Teatro Tuca (Rua Monte Alegre, 1024, Perdizes. Fone: 3670-8455). Sexta e sábado, 21h30; domingo, 18h. Ingresso: R$ 60 a R$ 80. Em cartaz até 04 de dezembro.

O Grande Inquisidor

Não poderia deixar de causar polêmica e controvérsia a reaparição de Jesus em plena Sevilha do século XVI, no auge da Santa Inquisição Católica. O andarilho, que todos acreditam ser a reencarnação de Cristo, é aclamado pela multidão por novamente curar e operar milagres. Para o Santo Ofício, no entanto, ele se torna uma ameaça a uma sociedade que, acreditam os sacerdotes enclausurados no poder, não passa de um formigueiro humano incapaz de lidar com o livre-arbítrio e precisa ser tutelado. Claro, o Cristo reencarnado acaba preso e condenado à fogueira, a mando de um velho cardeal da Igreja Católica, responsável pela cremação de dezenas de hereges.

Na encenação minimalista de Roberto Lage, com solo de Celso Frateschi, a opressiva atmosfera religiosa instaurada no palco demarca com precisão a porrada na consciência que emerge desse conto extraído da obra Os Irmãos Karamazov (1880), de Dostoiévski. O célebre escritor russo devia saber que o castelo cristão erguido após a primeira passagem do Messias pela Terra ruiria facilmente caso o mesmo fosse invadido por Ele em uma segunda incursão terrena. No ambiente conturbado daquele século, tipificado por fiéis submissos e obedientes, a presença de uma figura mítica pregando liberdade aos humanos é uma heresia que precisa ser eliminada.

No espaço diminuto onde ocorre a ação, não há necessariamente um confronto, mesmo porque Cristo, simbolizado por um quadro, mantém-se mergulhado em um silêncio perturbador. Ao longo da madrugada, o grande inquisidor não para de indagar as razões do prisioneiro para estorvar a humanidade nesse segundo regresso. Ele argumenta que, por ser uma criatura frágil e lamentável, o homem seria inapto para alcançar a felicidade, salvo se submetesse ao governo de seres superiores e privilegiados, no caso, o clero. Chega a relembrar as tentações no deserto e as recusas de Jesus em operar milagres. O interrogatório é intenso, com o religioso vociferando um discurso autoritário, que reconhece o abismo existente entre a instituição que representa e a essência do cristianismo.

O espectador é recompensado por um texto rico e profundo em idéias sobre os limites da fé, a intolerância religiosa, o exercício cínico do poder, a intransigência em relação ao diferente. Em suma, o público terá à sua frente a história mal contada de uma religião, de como ela forjou o seu ideário e estabeleceu o seu poder discricionário e paternalista. Num olhar mais ampliado, a narrativa escancara a natureza humana e as  

crueldades que o ser humano é capaz de cometer em nome de crenças e dogmas. É curioso como o tema dessa fábula encontra sintonia com os tempos de hoje, no momento em que estouram regimes autoritários e a verdade dos fatos depende do ponto de vista de quem a manipula.

Acionando seu conhecido domínio de recursos técnicos e emocionais, Celso Frateschi empresta força, rigor e autenticidade a este inquisidor impositivo. É impressionante a maneira visceral com que arrebenta o dique de palavras, sentenças e ideologias, num efeito de grande impacto. Ele circula pelo recinto intencionalmente reduzido e de iluminação tênue, em meio a projeções de imagens, baú, mesinha e uma poltrona. Ao fundo, uma parede atulhada de livros e processos administrativos. A cenografia, de Sylvia Moreira, reforça o clima dramático e grave. Neste espetáculo reflexivo e difícil, o embrutecimento de um personagem e a sensibilidade do outro formam contrastes inconciliáveis.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )      

(Foto: Bob Sousa)

 

Avaliação: Ótimo

 

Texto: Fiódor Dostoiévski

Direção: Roberto Lage

Elenco: Celso Frateschi

Estreou: 13/05/2016

Ágora Teatro (Rua Rui Barbosa, 672, Bela Vista. Fone: 3284-0290). Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 60. Até 10 de julho. 

A Última Dança

Numa fábrica, o operário não está acima das máquinas, mas abaixo delas. É uma espécie de refém. As engenhocas, que se servem dele, são feitas para turbinar o ritmo produtivo e não para auxiliá-lo a enfrentar uma tarefa. O labor deixa de ser uma luta pela sobrevivência para dar lugar ao propósito do lucro. Provocativo e objeto de acaloradas discussões ao longo dos tempos, o tema perpassa o surpreendente espetáculo construído a partir de textos da filósofa e escritora francesa Simone Weil (1909-1943). Durante dois anos, ela trabalhou como operária em uma fábrica com o intuito de examinar o cotidiano nesse ambiente. O registro diário da experiência resultou num instigante estudo sobre a opressão social e sua relação com a forma capitalista de organização do trabalho.

O conhecimento adquirido por essa mulher, que abdicou em 1935 e 1936 de sua confortável vida burguesa para vivenciar a empreitada a que se impôs, ganhou um sentido poético teatral ao ser transposto para o palco. Transformou-se em uma montagem que, sem resvalar no panfletário, superou a armadilha do denuncismo ou do melodrama fácil. Na pele dessa personagem singular, apaixonada por literatura, história e filosofia, Natalia Gonsales move-se pelo território cênico, povoado de verdadeiras máquinas de linha de produção moldadas para manejo apenas das mãos – assinado por Flávio Tolezani, o cenário exala a imagem forte de um ambiente claustrofóbico. Em meio aos seus afazeres, ela faz café, manipula um vaso de planta, escreve num diário.     

Em nenhum momento a encenação procura assumir o primeiro plano. A direção da própria atriz é discreta e eficaz, com respiros aqui e ali. Contorna sem maiores complicações os riscos de monotonia que costumam rondar os espetáculos solos. O texto desliza sempre interessante, as frases não saem do registro sereno e firme, as palavras soam veementes. Os conflitos emergem na sua essência, sem que seja preciso falsificá-los. A envolvente música composta por Daniel Maia, permeada por burburinhos, ruídos e batidas, contribui para pincelar o retrato de um rumoroso recinto fabril. A climática iluminação concebida por Igor Sane desenha a atmosfera fria e impessoal de um estabelecimento industrial.

Com sensibilidade e empenho, Natalia encontra a medida justa na hora de expressar sentimentos como fome, a passividade do funcionário diante da pressão dos superiores, a monotonia, o esgotamento físico advindo da atividade penosa e servil, o medo de lidar com máquinas perigosas, a angústia de constatar que chegar um minuto atrasado significa trabalhar uma hora sem salário. Uma dor de cabeça automaticamente se associa ao barulho diabólico de uma britadeira que chacoalha o trabalhador agarrado a ela. Um acidente na prensa e um dedo da mão é quase mutilado.

Natalia Gonsales chega a se confundir intencionalmente com Simone Weil, buscando uma analogia crível. Ambas, em escalas diferentes, viveram circunstâncias as quais a submissão hierárquica impõe um silêncio resignado – em seu trabalho no teatro, um ator muitas vezes precisa se despir de suas vaidades e aceitar, sem questionamentos, as ordens de um diretor. O drama da operária tem ecos de tragédia grega. Não por acaso, em determinada passagem, a intelectual francesa se espelha na figura mitológica de Antígona, em luta obstinada para enterrar o irmão morto, proibido de ser sepultado por um inquisidor Creonte – na vida real, ela foi fortemente influenciada pelo irmão, considerado um gênio da matemática. Na composição dessa mulher pertinaz, a atriz procura não se entregar ao virtuosismo estéril. Munida de recursos simples, ela desfaz qualquer tipo de efeito grandiloqüente, que concederia um aspecto superficial ao papel.   

Não realista, a montagem trata de temas urgentes e atuais. Em que pesem as mutações ocorridas no interior do sistema fabril, ainda subsistem fatores como a coerção constante para se alcançar uma pesada cadência produtiva, a ameaça subliminar de demissão caso não se cumpram metas cada vez mais utópicas, a fragmentação das atividades, a sensação de impotência e servilismo. Há muito uma fábrica funciona como um sistema absoluto, impermeável à efetiva participação do operário. A personagem chega a refletir que nesses locais a coação não resulta em rebelião, mas em obediência e apatia.

Uma cena simbólica exibe a força da peça, quando é relatado um encontro entre Simone Weil e a filósofa existencialista francesa Simone de Beauvoir (1908-1986), a quem admirava pela inteligência. Simone Weil defendia uma revolução que daria de comer a todo mundo. Simone de Beauvoir acreditava que o problema não era fazer a felicidade dos homens, mas encontrar um sentido para sua existência. “Vê-se bem que você nunca teve fome”, rebateu a primeira, instantes antes de vestir avental de operária.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Carla Trevizani)

 

Avaliação: Bom

 

A Última Dança

Dramaturgia: César Baptista, a partir de textos de Simone Weil

Atuação e Direção: Natalia Gonsales

Estreou: 13/06/2016

Viga Espaço Cênico (Rua Capote Valente, 1323, Pinheiros. Fone: 3801-1843). Segunda, 21h. Ingresso: R$ 30. Até 15 de agosto. 

Gilberto Gil, Aquele Abraço - O Musical

Não há aspiração biográfica ou a necessidade de instituir uma cronologia da discografia do artista baiano, que completou meio século de carreira e nunca perdeu o bonde da história. O que o autor e diretor Gustavo Gasparani arquitetou é uma nítida opção por romper com a estrutura dramática tradicional dos musicais brasileiros autobiográficos. Em vez de descrever linearmente a trajetória artística e pessoal de Gilberto Gil, entremeando-a com suas canções, o encenador desenvolveu uma sensível linha narrativa que parte da sua obra para produzir um sentido mais amplo e plural do cantor e compositor. O resultado é prodigioso.  

Envolvente, agradável e inspirada, imbuída do condão de seduzir platéias variadas, a montagem explora diversas combinações e compõe uma leitura política, comportamental, emocional e intelectual do homenageado. E, por tabela, desenha um painel histórico-cultural do Brasil. Que flerta com o poético. Trata-se de um trabalho que não mascara o propósito de apelar mais à emoção que à razão. Não por acaso, o subtítulo O Poeta, a Canção e o Tempo é emblemático. Logo no início, a figura de um poeta se encontra simbolicamente dentro de uma partitura, cercado de notas musicais. Uma poderosa imagem que, por sinal, irá desencantar outra vez no desfecho. Em seguida, os intérpretes cantam trechos de Eu vim da Bahia e a cena se transforma num grande cais, corporificado por percussões que emanam o som do mar.

Como não existe um desenvolvimento dramático convencional ao longo de suas duas horas, o público é instado a imergir lentamente nesse caldeirão lírico musical. Ao todo, 55 canções garimpadas do vasto acervo do artista sustentam o espetáculo. Um caleidoscópio de baião, rock, samba, reggae, bossa nova e outros ritmos, empreitada precisa e preciosa de Gasparani e do diretor musical e arranjador Nando Duarte. Parte do repertório é interpretada integralmente ou de forma parcial. Outra fração ganha vida por meio de versos e letras verbalizados pelo elenco. O artifício gera uma grata surpresa – a declamação de algumas canções sugere novas camadas e significados, num efeito sublime.

A dramaturgia criada também incorpora depoimentos dos atores-músicos sobre sua relação com a música do ícone baiano. Os testemunhos são pulverizados ao longo da peça. Daniel Carneiro, por exemplo, revela a sua familiaridade com o sertão. "Sempre que ouço o mestre Gil, que veio de lá e cá ficou, sinto cheiro de mato", emociona-se. Inebriado por lembranças de abacateiro, tamarindo e manga, Rodrigo Lima confessa que o violão é ao mesmo tempo o seu alimento e sua paz. Pedro Lima recorda da vez em que escapou por pouco de um tiroteio por não ter cantado uma composição do artista, Sandra, que posteriormente gravou em seu primeiro CD. Na representação, a passagem da música para o verso declamado e a prosa é sempre harmoniosa. 

Gasparani constrói uma encenação que avança descontraída, leve, viçosa, sem pressa ou pose.  Sua direção é segura. A forma como costura os números e implementa associações e conexões denota perspicácia. Só na aparência o empreendimento é simples, porque se nota um exercício aguçado de pesquisa e investigação. No palco, sobressai um musical consistente, que jamais trata com reverência redutora a criação musical do homenageado. Atento, o encenador tem como norte em sua carreira avançar na linguagem teatral. Recentemente ele brilhou sozinho em cena numa instigante versão de Ricardo III, ambientada em uma sala de aula. Com esta produção, ele oferece sua contribuição para tirar do conforto o teatro musical biográfico desenvolvido no Brasil.

Impregnado de nuances e gradações sentimentais, o espetáculo divide-se em quadros, que evidenciam os assuntos abordados pelo compositor em suas letras. O arco compreende desde as suas influências musicais às relações de amor e amizade, do movimento tropicalista às questões da negritude, do sincretismo religioso à ciência. Os blocos temáticos são aglutinados não só para mostrar a evolução do pensamento do artista como desnudar sua poética.  Embora não explicitados didaticamente em cena, mas descritos no programa da peça, eles emergem com incrível naturalidade.

Alguns são impactantes. Em Os Anos de Chumbo e a Tropicália, a batida de bateria insinua a repressão policial. Completamente nu, Gabriel Manita toca guitarra em tom superlativo durante Se Eu Quiser Falar com Deus. Com sutis mudanças gestuais, encarna um Cristo crucificado ao som de Miserere Nobis e transmuta-se em um homem torturado pela ditadura. A sequência se desanuvia ao adquirir cores tropicalistas, embalada por berimbau. Mais adiante, na futurista e um tanto extensa A Raça Humana – Dois Mil e Gil: Uma Odisseia no Espaço, povoada por hits como Extra e Parabolicamará, os instrumentos são posicionados na frente do palco. A Terra está destruída e eles viajam a bordo de uma nave espacial. No segmento E o Mar Virou Sertão, o grupo transfigura a coreografia do afoxé em um coro de retirantes de Portinari. Empolgante, O Poeta, a Canção e o Tempo promove o entrelaçamento de Expresso 2222 e Tempo Rei.

A trupe transpira virtuosismo. Eles atuam de forma orgânica e exercem domínio natural do público. Gil forneceu a sua matéria prima e o conjunto desembrulhou um desempenho sem fissuras, em simbiose completa. Além de interpretar e cantar, Alan Rocha, Cristiano Gualda, Daniel Carneiro, Gabriel Manita, Jonas Hammar, Luiz Nicolau, Pedro Lima e Rodrigo Lima tocam 39 diferentes instrumentos em cena. Nenhum deles incorpora o personagem central. Todos se revezam em vários papéis para esquadrinhar detalhes marcantes da carreira do músico. Em um momento hilário, eles imitam o jeito peculiar e inconfundível de falar do cantor e compositor.

A equipe técnica colabora para a eficiência do musical. Há um visível cuidado com os pormenores. O cenário de Helio Eichbauer evoca referências da natureza e o fundo azul fornece o contorno da linha do horizonte. Um totem em formato de cruz exibe imagens históricas do músico, como fotos de shows, capas de discos e livros, mais retratos de desaparecidos na ditadura militar, crianças brincando e outras representações, que dialogam com a sua obra. Em uma tela, de inserções pontuais, notas e letras de suas canções são projetadas. Concebidas por Renato Vieira, as coreografias são marcadas pela espontaneidade e extroversão. Os figurinos de Marcelo Olinto, coloridos, estampados e em estilo hippie, buscam capturar e expressar a natureza multifacetada do artista.

Talvez a montagem se ressinta da presença física feminina. Em apenas uma cena a figura de uma mulher desponta, mesmo virtualmente. É quando Cristiano Gualda desfia A linha e o linho enquanto a imagem de sua esposa se precipita na tela. Um pequeno ruído incapaz de deslustrar uma produção que, de maneira inteligente, ousada e despida de procedimentos já banalizados em musicais, celebra um dos nomes mais cruciais da MPB. 

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Mare Martin Fotografia)

 

Avaliação: Ótimo

 

Gilberto Gil, Aquele Abraço - O Musical

Texto e Direção: Gustavo Gasparani

Elenco: Alan Rocha, Cristiano Gualda, Daniel Carneiro, Gabriel  Manita, Jonas Hammar, Luiz Nicolau, Pedro Lima e Rodrigo Lima.

Estreou: 18/03/2016

Teatro Procópio Ferreira (Rua Augusta, 2.823, Jardins. Fone: 3083-4475). Quinta e sexta, 21h; sábado, 21h30, domingo, 18h. Ingresso: R$ 50 a R$ 120. Até 15 de maio. 

12 Homens e uma Sentença

Em uma época em que todo mundo entrega-se ao exercício de julgar moralmente todo mundo, a peça de Reginald Rose é um estudo minucioso do comportamento de grupo. Mais ainda: de como um mesmo fato pode admitir ângulos e verdades divergentes a partir das diferenças culturais e histórias de vida de cada um. Neste drama de tribunal de tom humanista, doze jurados devem decidir se um jovem estrangeiro de dezesseis anos assassinou ou não o próprio pai. Se culpado, será executado na cadeira elétrica. O veredicto precisa ser unânime – na justiça brasileira, basta apenas obter a maioria dos votos. Por conta disso, a carga dramática da decisão é absurdamente pesada. Afinal, alguém pode perder o direito à vida se uma injustiça for cometida. Onze estão convictos de que o garoto cometeu o ato. O jurado número 8, porém, quer discutir mais. Decidido a analisar novamente os eventos, ele se depara com a má vontade dos demais, famintos e ansiosos para irem embora. É um início de alta voltagem. Áspera e exasperante, a trama já foi transposta para o cinema (1957), na estréia na direção de Sidney Lumet, e agora ganha a primeira montagem teatral no Brasil pelas mãos do inspirado Grupo Tapa. Poucos diretores como Eduardo Tolentino cultivam o hábito de encenar peças que dialogam com a atualidade, que reflitam e espelham a sociedade de hoje. No extenso currículo da trupe, nada é levado aos palcos por acaso.   

O texto chega a ser contundente, em especial num tempo em que a conveniência avilta o consagrado princípio jurídico da presunção da inocência. Enquanto o jurado dissidente tenta convencer os outros colegas, toma forma e feição a característica individual de  cada membro do júri. Ou seja, o estilo e a trajetória de vida, a condição social, a ocupação profissional, a idade, os traços de personalidade e temperamento. (*) Há o bancário hesitante e humilde (Ricardo Dantas), o frio e autoconfiante corretor de ações (Oswaldo Mendes), o operário obtuso e influenciável (Marcelo Pacífico), o vendedor extrovertido e superficial (André Garolli), o publicitário sem nenhum ponto-de-vista (Ivo Muller), o relojoeiro imigrante que fala com sotaque (Eduardo Semerjian), o comedido e metódico presidente do júri (Brian Penido), o sujeito que cresceu em uma favela (Augusto César) e assim por diante.  A peça se alimenta desses choques e embates inevitáveis. O jurado 3 (Genézio de Barros), por exemplo, está debilitado emocionalmente pelo desdém do filho, o que influencia sua decisão. Espécie de antagonista do sereno e lúcido jurado 8 (Norival Rizzo), ele é amargo e passa o tempo todo berrando e inflamado com os outros. Será o último a ser persuadido, numa cena na qual revela uma vulnerabilidade surpreendente. O público irá observar atônito que o réu é visto como culpado mais por uma questão de preconceito, crenças e idéias pré-concebidas.

Em suma, quase todos ali solaparam a objetividade e a racionalidade, substituídas por ressentimentos, rancores e vinganças pessoais. Mesmo diante de um quadro aparentemente imutável, aos poucos o jurado 8 abala a convicção do grupo e espalha dúvidas. Chega ao detalhe de cronometrar o tempo e imitar os passos de uma testemunha que alega ter ouvido o crime e visto o menino escapulindo.  A arma do crime, uma faca dobrável, é espetada na mesa. O primeiro a concordar com ele é o jurado 9 (José Renato), o mais veterano e perspicaz, que afirma não haver provas suficientes para a condenação.  Por sinal, ele vai protagonizar um dos momentos emblemáticos do espetáculo, ao levantar-se da mesa, seguido um a um pelos demais, inconformado com o discurso racista e reacionário do jurado 10 (Riba Carlovich). É interessante observar como o placar vai sendo virado na medida em que as dúvidas são levantadas e fundamentadas, produzindo revisão das posições iniciais. Efetivamente, é possível existir um abismo entre o que se viu e o que se pensou ver. O processo, claro, não será levado sem conflitos e paixões exacerbadas. Trata-se de uma exaustiva guerra de nervos. O que está em jogo não é mais a solução do caso, mas a decisão de se condenar um jovem à morte.

Na envolvente e poderosa encenação do Tapa, que enfrenta um texto adaptado num sofisticado registro naturalista, a tensão é acirrada paulatinamente. Com o agravante de que o ambiente é uma pequena sala de um tribunal, em um dia de verão infernal. O calor excessivo e a falta de ventilação tonificam a atmosfera asfixiante e claustrofóbica. A platéia é tragada pela trama, pela fricção dos diálogos, pela dinâmica das mudanças, pela linguagem corporal e não pela ação física ou o desvendamento do crime. Deixa-se seduzir pelo passo a passo, pelo fato alavancado, pelo dado exposto, pela prova autopsiada. É uma encenação que instiga o espectador a degustar diferentes aspectos do caso. Numa direção em que o estilo deve ser deixado de lado, Tolentino desenha marcações que funcionam não só para acentuar o clima beligerante instaurado na arena de discussão como servem para transmitir a sensação de perplexidade de um júri atormentado pela insegurança. Dispondo tão somente de uma mesa e doze cadeiras, consegue prender a atenção do público de maneira absoluta. Trata-se de um tipo de trabalho que presta tributo à arte do ator e dispensa ilusionismos e grandes recursos cênicos.

O talentoso elenco masculino reunido é capaz de atribuir magnitude a figuras muito diferentes, valorizar e tirar proveito da atualidade e pertinência da peça. Em cena, eles fumam nervosamente, transpiram, trocam insultos, perdem a compostura, se enfurecem, andam estressados de um lado ao outro. Entregam-se com paixão e eletricidade aos seus personagens. Não há um destaque individual, cada intérprete deixa a sua marca e sua personalidade. São performances arrebatadoras, que abrilhantam e concedem coesão ao conjunto. Um espetáculo de construção narrativa precisa, reverente a um texto que celebra um tipo de ideal cada vez mais vilipendiado nos tempos cínicos de hoje.

(Edgar Olimpio de Souza - O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto: Zineb Benchekchou)

 (*) Na atual temporada ocorreram mudanças no elenco

 

Avaliação: Ótimo

 

12 Homens e uma Sentença

Texto: Reginald Rose

Direção: Eduardo Tolentino                                                                                                      

Elenco: Norival Rizzo, ZéCarlos Machado, Brian Penido, Ivo Muller e outros                                                                  

Teatro Viradalata (Rua Apinajés, 1.387, Perdizes. Fone: 99665-3986). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 60. Até 27 de novembro.

Estreou: 19/11/2010

 

 

O Musical Mamonas

Uma história de desfecho trágico. O grupo pop Mamonas Assassinas viveu carreira meteórica, de retumbante sucesso. Por pouco mais de sete meses, entre junho de 1995, ao estourarem nas paradas com seu único álbum de estúdio, até 2 de março de 1996, quando morreram num acidente de avião, os cinco integrantes da banda se tornaram celebridades, realizavam shows por todo o País e se apresentavam com freqüência em todos os programas populares de televisão.

O dramaturgo Walter Daguerre criou um roteiro sem mencionar diretamente o evento fatal, mas apenas tecendo alusões ao episódio. No início da peça, os músicos aparecem travestidos de anjinhos travessos, ostentando asas brancas, num lugar que lembra o céu. Então recebem do anjo Gabriel a missão de recontar a trajetória da trupe em formato de musical, com o intuito de subverter a mesmice que teria dominado o cotidiano dos brasileiros. A partir daí, segue-se uma narrativa cronológica do conjunto musical, que começou como Utopia, tocando rock progressivo, e deslanchou como Mamonas Assassinas, cujo primeiro trabalho, calçado em letras bem humoradas e hits de grudar no ouvido, vendeu três milhões de cópias e faturou o cobiçado disco de diamante. O autor optou por destacar mais a carreira artística do quinteto no lugar de explorar a vida pessoal de cada um.

O diretor José Possi Neto concebeu uma montagem pulsante, irreverente e cheia de escracho, numa tentativa – bem sucedida – de reproduzir a estética e a linguagem cartunesca emplacada pelo grupo. No fundo, a montagem funciona como uma espécie de paródia dos musicais biográficos, aqueles que seguem uma receita já testada e aprovada - cenas construídas para justificar as canções escolhidas, momentos apoteóticos e simplificações de enredo para captar sem floreios a atenção do público. Possi obteve excelente rendimento do elenco, desprezando a ideia de recriar no palco uma banda cover. Sem apelar para estereótipos, os cinco intérpretes encarnam os músicos com personalidade e nítido desembaraço.

Além da semelhança física com o tresloucado vocalista Dinho, o ator Ruy Brissac incorpora seus trejeitos, o ímpeto juvenil e a habilidade vocal em imitar pessoas conhecidas. Yudi Tamashiro (Bento), Adriano Tunes (Júlio), Élcio Bonazzi (Samuel) e Arthur Ienzura (Sérgio) são convincentes e transpiram carisma e entusiasmo. Vale destacar o desempenho de Patrick Amstaldem em vários papéis pontuais, chegando a roubar a cena em algumas passagens, especialmente na pele do produtor musical Rick Bonadio, que descobriu, produziu e agenciou a turma. Também encanta a participação de Bernardo Berro, perfeito na interpretação do menino Rafael e do apresentador Jô Soares. Um dos momentos mais cômicos é uma disputa dominical pela audiência entre os programas televisivos do Faustão e do Gugu Liberato.                                                                                                                                                                                                                              

Na parte técnica, o diretor cercou-se de profissionais competentes, que enriquecem a montagem.  Os figurinos de Fábio Namatame remetem aos anos 1990, abusando de divertidos modelos originais inspirados em personagens cults como Robin, Chapolin e Robocop. Vanessa Guillen desenhou coreografias bastante criativas e atléticas, bem assimiladas pelo elenco. Embora não muito bonitos, os cenários de Nello Marrese dão a ambientação adequada. Wagner Freire assina iluminação, em outro trabalho seguro. Responsável pela direção musical, Miguel Briamonte, em parceria com Possi, adicionou à encenação outras canções que marcaram aquela época. Além de títulos como Robocop Gay, Pelados Em Santos e Vira-Vira, êxitos monumentais da banda, a eclética trilha sonora inclui Comida (Titãs), Geração Coca Cola (Legião Urbana) e Sweet Child O´Mine (Guns N´Roses), além de outras músicas e grupos que influenciaram a carreira dos rapazes de Guarulhos. Eles não tocam os instrumentos, que são executados por cinco músicos profissionais posicionados atrás do palco. Espetáculo delicioso, com espírito de festa de adolescente e impregnado de humor besteirol. 

(Vinicio Angelici – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Rodrigo Rosa)

 

Avaliação: Bom    

 

O Musical Mamonas

Texto: Walter Daguerre

Direção: José Possi Neto

Elenco: Ruy Brissac, Arthur Ienzura, Adriano Tunes, Elcio Bonazzi, Yudi Tamashiro e outros.

Estreou: 11/03/2016

Teatro Procópio Ferreira (Rua Augusta, 2823, Jardins. Fone: 3083-4475). Terça a quinta, 21h. Ingresso: R$ 50. Até 25 de janeiro. 

Sobre Ratos e Homens

É uma história de solidão, de pessoas que precisam do outro para sobreviver. Ambientada durante a Grande Depressão na década de 1930, a trama tem como personagens centrais dois nômades, à margem da sociedade, em busca do chamado sonho americano de ter uma casa própria e trabalho digno. George é um deles. De olho na sua independência econômica, ele peregrina ao lado do protegido Lennie, um brutamonte com mente de criança, à procura de trabalho. Ambos acabam desembarcando em um rancho no interior da Califórnia. O local é um verdadeiro barril de pólvora, prestes a explodir e levar junto os personagens que ali arrancam a sua subsistência.  

Escrito pelo dramaturgo americano John Steinbeck, em 1937, o poderoso e controvertido romance foi adaptado para o teatro pelo autor no mesmo ano e ganhou quatro versões para o cinema. Uma das mais famosas (1992) estourou nas bilheterias e foi protagonizado por John Malkovich (Lennie) e Gary Sinise (George), que assinou a direção. Virou também musical na Broadway em 2014, com Chris O’Dowd (George) e James Franco (Lennie). No Brasil, a peça foi montada pela primeira vez seis décadas atrás e marcou a estreia de Augusto Boal (1931-2009) no mítico teatro de Arena, em um espetáculo capitaneado por Gianfrancesco Guarnieri (George) e José Serber (Lennie). Não é muito comum que um texto contundente, cuja força narrativa está centrada na relação entre George e Lennie, tenha permanecido engavetado por tantos anos. Por isso é promissor que uma nova encenação esteja em cartaz em São Paulo, com bons resultados, dirigida por Kiko Marques. 

No enredo, os impotentes e mal remunerados homens que atuam na fazenda são seres que lamentam suas vidas solitárias e vivem na expectativa de dias melhores. George alimenta o plano de adquirir um acre de terra e nele construir sua fazenda. O dependente Lennie quer estar sempre ao seu lado. Candy teme que sua idade avançada o torne inútil. O orgulhoso e discriminado negro Crooks, que cuida dos cavalos, deseja ser aceito socialmente. Slim se vale de sua intuição e autoridade para atrair os outros peões. Carlson vive se queixando do velho cão malcheiroso de Candy e se prontifica a sacrificá-lo. A única mulher da propriedade é uma fracassada aspirante à atriz que se casou com Curley, o arrogante e ciumento filho do proprietário – sem obrigações, a atrevida jovem passa o tempo todo flertando com os machos do lugar.

Fiel à dramaturgia de Steinbeck, Kiko Marques valoriza cada palavra e cria um espetáculo humano e de forte sensibilidade. Conseguiu ótimo resultado do elenco de oito atores, que dão dignidade e gravidade aos personagens. Ricardo Monastero interpreta de forma vigorosa George, um sujeito franzino e esperto. No difícil papel do gigante sem cérebro Lennie, dono de uma força desproporcional que eventualmente o leva à ruína, Ando Camargo exala nuances e comove, em desempenho marcante. O veterano ator Luiz Serra encarna com garra e humor Candy, o velho empregado que ansia por segurança. Natallia Rodrigues não chega a se destacar, mas transpira o ar da moça entediada num casamento infeliz. Uma prosaica brincadeira entre ela e Lennie será o estopim de uma tragédia anunciada. Gustavo Vaz (Slim), Cássio Inácio (Curley), Luciano Schwab (Carlson) e Tom Nunes (Crooks) completam o elenco, demarcando rendimentos convincentes e apaixonados.

A direção cercou-se de gente competente para dar suporte na parte técnica. Márcio Vinicius elaborou cenário rústico que reproduz com rigor alguns espaços do rancho, como o celeiro. A iluminação de Guilherme Bonfanti, apoiada em várias matizes de cores, instaura os climas necessários a cada ação dramática. Os figurinos de Fábio Namatame são adequados e atendem à proposta realista da encenação. A eficiente trilha sonora de Martin Eikmeier pontua todo o espetáculo. Nesse drama de Steinbeck, os personagens são símbolos das circunstâncias da época. Compõem uma plebe de sonhadores empenhada em resistir, mas que entra em rota de colisão com a dura e inóspita realidade da vida.  

(Vinicio Angelici – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Luciano Alves)

 

Avaliação: Ótimo  

 

Sobre Ratos e Homens

Texto: John Steinbeck

Direção: Kiko Marques

Elenco: Ricardo Monastero, Ando Camargo, Luiz Serra, Natallia Rodrigues e outros.

Estreou: 04/05/2016

Teatro Faap (Rua Alagoas, 903, Higienópolis. Fone: 3662-7233). Quarta e quinta, 20h. Ingresso: R$ 40. Até 28 de julho.

 

 

In On It

Em boa hora retornou ao cartaz um dos espetáculos mais interessantes dos últimos anos. Com título incomum, que permite múltiplas ilações, a peça do dramaturgo canadense Daniel McIvor é um exercício instigante de teatro, um libelo poético a partir do difícil tema da perda. Neste jogo, o espectador é colhido por peças de um quebra-cabeça emocional. O mais curioso nesta montagem, assinada por Enrique Diaz, é sua simplicidade estética, a economia de recursos. Tudo gira em torno do texto e do ator, com apenas duas cadeiras no palco e um casaco – refinada e meticulosa, a iluminação de Maneco Quinderé demarca os diversos níveis e ambientações da história.    

O êxito do espetáculo reside na combinação harmoniosa desses elementos, no fino equilíbrio entre comédia e drama, nos inspirados diálogos, no humor irônico e debochado, na sutileza com que os intérpretes Fernando Eiras e Emílio de Mello desincumbem-se de uma dezena de papéis. Seguros e cúmplices em cena, eles passeiam sem embaraços pelo enredo de construção engenhosa e hálito pirandeliano, deslizando de um personagem a outro, de dentro para fora e vice-versa. Performances pulsantes, destituídas de caricaturas, o que poderia ser uma armadilha levando-se em consideração o desenho das figuras criadas pelo autor. A hábil encenação de Enrique Diaz está a serviço do trabalho de interpretação. O diretor mantém a montagem fluente, escorrendo em um ritmo convenientemente acelerado, destacando as fendas emocionais, as fissuras intelectuais, as observações filosóficas.

A rigor, não é fácil descrever com precisão a estrutura em espiral da narrativa de McIvor, porque se trata da desconstrução de uma narrativa, moldado para ser frequentemente interrompido. Não está errado afirmar que a trama em si, no que diz respeito ao empilhamento de acontecimentos, não é levada muito a sério. O que importa é a forma como ela é desembrulhada. Três planos se alteram e se entrelaçam: dois personagens que discutem a concepção de um espetáculo, configurando-se uma peça dentro de outra, um homem tentando lidar com o fato de que ele pode ter uma doença terminal, a crônica da desintegração amorosa de um casal. As referências vão se embaralhando, há falsos momentos de clímax e vários finais. O público não precisa se afligir com a brincadeira assumida de confundir – cabe ao espectador imergir no contexto, amarrar as pontas soltas, reajustar o olhar a cada momento e compor o enredo ao seu modo. Ou seja, construir mais e ser menos receptor. Até porque uma pergunta, “é verdade ou invenção?”, feita em determinada passagem, ilustra bem as dúvidas intencionalmente lançadas pela dramaturgia. 

No fundo, o autor presta um tributo às possibilidades metalingüísticas do teatro, uma arte que pode chegar a comover se abordada com argúcia, senso e sutileza. Em sua essência, a peça se utiliza da perspicaz mistura de passado e presente para revelar como o tempo modifica a vida, como um episódio pode implicar e se conectar a tantos outros. Num olhar mais amplo, o texto trata da questão do afeto no mundo moderno.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto: Dalton Valério)

 

Avaliação: Ótimo

 

In On It

Texto: Daniel MacIvor

Direção: Enrique Diaz

Elenco: Emilio de Mello e Fernando Eiras

Teatro Jaraguá (Rua Martins Fontes, 71, Centro. Fone: 3255-4380). Quarta e quinta, 21h. Ingressos: R$ 60. Até 26 de maio.

Estreou: 15/01/2010

 

Modo de visualização:

Style Sitting

Fonts

Layouts

Direction

Template Widths

px  %

px  %