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O anti-herói da América

Faz cinco anos que o carioca Júlio Adrião percorre o Brasil e o Exterior com uma peça de Dario Fo que vira do avesso a epopéia do descobrimento das Américas. Em todas as praças o sucesso é arrebatador. Numa das apresentações chegou a ser chamado de punk por um entusiasmado adolescente. O curioso é que em A Descoberta das Américas não existe cenário, tampouco música ou vinhetas sonoras, desenho de luz ou troca de figurino. Nada do que se convencionou em uma montagem teatral.

Ele está literalmente sozinho em cena, mas nem parece. Isso porque o ator faz misérias usando seu corpo, voz, expressão e muita, mas muita, imaginação. Com naturalidade impressionante, interpreta índios e espanhóis, animais, Jesus e Madalena – o espectador tem a impressão de que está vendo tudo o que é sugerido. É uma performance tão arrebatadora que coleciona prêmios, aplausos efusivos do público e críticas favoráveis desde 2005, quando o espetáculo iniciou carreira e parece que, tão cedo, não irá se aposentar.

Nem deveria. O texto do dramaturgo italiano Dario Fo, escrito em 1992 para comemorar meio milênio do descobrimento do Novo Mundo, é uma versão transgressiva e transgressora das viagens de Cristóvão Colombo, que expõe as entranhas da formação da nossa identidade. Não há como não se seduzir pelas histórias mirabolantes que o ator vai desembrulhando no palco, como se fosse um contador de causos e histórias, na pele do malandro Johan Padan que embarca por engano em uma das caravelas do navegador e explorador europeu. Nas Américas, o anti-herói é escravizado por índios canibais, safa-se da morte certa fazendo milagres, vira líder venerado, forma um exército indígena e acaba caçando os espanhóis invasores.   

“O desafio atual é manter o grau de qualidade dentro de uma partitura que eu controlo desde as primeiras encenações, o que não quer dizer repetir, mas refiná-la”, diz o carioca Adrião, 49 anos, que já carimbou mais de quinhentas apresentações. “É como uma orquestra que toca uma sinfonia hoje para um público e amanhã já tem um outro à sua espera”, acrescenta. “E tenho que exercitar tudo tão bem como da primeira vez, sem perder o viço e a vitalidade. Não há espaço para algo mais ou menos.”

Ao longo desses anos a bordo do espetáculo,ele viveu experiências inusitadas. Em 2007, por exemplo, exibiu-se na Feira de Literatura de Passo Fundo sob uma lona com capacidade para mais de cinco mil  pessoas. Em se tratando de montagem intimista, o estilo show de rock foi um choque. Em contrapartida, também se apresentou para um único espectador pagante, no início da carreira do espetáculo. “Para dar idéia de casa cheia, espalhamos gente da produção pela platéia”, diverte-se.

A peça já foi encenada em todos os cantos do País e até desembarcou em Portugal, para onde retorna no final de maio para um tradicional festival na cidade do Porto. Na volta, percorrerá seis cidades brasileiras. Não está descartada ainda uma pequena turnê por Macau, Cabo Verde, Angola e Moçambique, países de língua portuguesa. Adrião chegou a montar uma versão na Itália, num festival local, com boa repercussão. “Já vi em DVD uma montagem com duas horas e meia estrelada pelo próprio Dario Fo, um mestre da palavra e do movimento, e olha que na época ele tinha 70 anos”, elogia. Hoje o dramaturgo tem 83.

Experiência internacional. Se o perfil do público varia, os elogios não. Certa vez, nos camarins, um espectador sapecou: “A montagem é tão louca que até esqueci que você estava dentro”. Em Niterói, um roqueiro levou a turma toda, que nunca tinha ido ao teatro. Ao final, um deles lascou: “Aí, tu é punk mesmo”. A intempestiva crítica de teatro carioca Bárbara Heliodora cravou: “O espetáculo preserva a ilusão da improvisação, parece que está sendo feito pela primeira vez, fala de um assunto como se tivesse acabado de lembrar.”

Adrião tem formação eclética. Cursou a prestigiada Casa de Artes de Laranjeira, trabalhou seis anos na Itália com o Teatro Potlach e outras companhias, integrou o trio cômico carioca Companhia do Público, dirigiu circo-teatro e ópera. A temporada européia foi fundamental para desenvolver habilidades em commedia dell´arte e teatro de rua. Foi uma experiência mais prática que acadêmica, de intenso treinamento físico, que serviu de âncora para montar A Descoberta das Américas. “A forma de contar a história surgiu a partir de exercícios de improvisação e a partir daí fui criando a partitura”, conta.

Há uma expectativa em torno do que o ator fará depois desse espetáculo, o que ele particularmente acha positivo porque não o estão aprisionando ao personagem. A ansiedade é em torno do teatro porque no cinema ele figura no elenco de dois filmes. Em Tropa de Elite 2, de José Padilha, fará nada menos que o governador do Rio de Janeiro. Em A Quente, de Juliana Reis, um plantonista no setor de emergência de um hospital. “Em algum momento vou largar A Descoberta das Américas e cair em outros projetos, mas a peça ainda está com a agenda lotada neste ano”, avisa. Um de seus sonhos é montar texto do poeta, contista e romancista Fausto Wolff (1940-2008), de escrita ácida, mas não teatral, um desafio para transpô-lo para a linguagem dos palcos.

Ator operário. Não são poucos os que estranham a ausência do ator em alguma novela ou minissérie na televisão, já que o discurso padrão na classe artística é a de que é impossível viver só de teatro. Não é o caso de Adrião, que garante sobreviver só do ofício. “O fato de ter o reconhecimento do público é um bom argumento na hora de acertar um cachê”, assinala. Na minissérie Amazônia, exibida pela Globo em 2007, ele chegou a fazer testes para interpretar um preceptor de Chico Mendes, um comunista foragido da Coluna Prestes. O Távora apareceu apenas em dois capítulos, mas era um sujeito importantíssimo porque foi responsável pela alfabetização de Chico Mendes.

“Não tenho nada contra a tevê, que é um excelente veículo para quando tenho tempo e saco”, brinca. “Também não critico quem faz novelas, talvez seja obrigatório mesmo para se ganhar dinheiro na profissão. Não acho que um ator tem de fazer de tudo. Tem gente que só prefere fazer cinema, outros querem apenas teatro, há quem privilegia televisão, qual o problema? Só não dá para ser ingênuo: atuar em telenovela significa também lidar com a mídia de celebridades, se transformar no alvo de qualquer coisa, para o bem e para o mal, perder a privacidade”, avalia ele. No ano passado, ele trabalhou em um docudrama na tevê inglesa sobre cidadãos americanos que se tornaram prisioneiros por tráfico de drogas. Foi escolhido por falar perfeitamente inglês.

Foi na virada dos 40 anos, quando montou A Descoberta das Américas, que Adrião conseguiu relativa autonomia profissional. Mas para chegar até aí, nada caiu do céu. O ator já fez muito o circuito do chamado teatro corporativo, exibindo-se em empresas e indústrias. “Já me apresentei em linhas de montagem e automotiva, junto aos operários, botava duas cadeiras no chão e mandava ver, durante meia hora eu teatralizava situações de segurança no trabalho”, lembra. “Foi enriquecedor porque se eles nunca tinham visto teatro, eu também nunca havia estado numa linha de montagem”, ressalta. “O fato é que esse tipo de trabalho me deu de comer e à minha família durante muito tempo. Como costumo dizer, tudo vale a pena, desde que você esteja a fim.”

(Fotos de Maria Elisa Franco)

 

Assista cena do espetáculo A Descoberta das Américas

 

 

 


 

 

A insustentável leveza da vida

Nas 160 páginas do livro Alta ajuda (Editora Foz), o escritor Francisco Bosco, 36 anos, se vale do denominado “alto pensamento” (filosofia, psicanálise e literatura, por exemplo) para lidar com questões da chamada “baixa cultura”, como futebol, facebook, Roberto Carlos e novelas televisivas. São 35 ensaios – e não crônicas, avisa – escritos originalmente para revistas e jornais, como O Globo, do qual é colunista desde 2010, que buscam prospectar novos sentidos para temas triviais do dia a dia. Nesta entrevista, o filho do músico João Bosco explica porque o banal não é raso, opaco e plano como parece.  

 

Por: Edgar Olimpio de Souza

 

O título é uma ironia aos livros de autoajuda?

Em parte sim. Alta ajuda apresenta modos insuspeitados de percepção do cotidiano, uma espécie de mapa mais complexo da vida. Bem diferente do princípio embutido nos livros de autoajuda, um guia de mantras escapistas de pensamento positivo.

Você usa ferramentas da filosofia, psicanálise e literatura para tratar de questões corriqueiras da vida... 

Exatamente. Na Grécia Antiga, a Filosofia discutia a melhor forma de se viver. Ao longo do tempo, virou especialização e passou a produzir grandes monumentos de abstração. Eu procuro resgatar algo de sua função original. Ao observar certos aspectos da vida atual, tento detectar o que não é banal na banalidade.

Exemplo?

O cai-cai do jogador brasileiro, na tentativa de enganar o juiz, parece algo trivial, mas revela toda uma crise de legalidade na sociedade brasileira. Prefere-se driblar a lei e não driblar na lei.  

O que você escreve são crônicas?

Quando alguém elogia as minhas “crônicas”, eu fico feliz, claro, mas entendo isso como uma nota desafinada. Eu escrevo pequenos ensaios. Meus textos têm pontos em comum com a crônica, como a brevidade e os temas cotidianos. Mas eles pertencem ao olhar teórico, que sempre tenta perceber o que há de semelhante num conjunto de fenômenos. Gosto de falar que faço “teoria crônica”, jogando com os sentidos de gênero e de compulsão da palavra crônica.

Arte é alta ajuda e entretenimento é autoajuda?

A arte coloca a vida humana em questão. O entretenimento pretende justamente o contrário: não colocar a vida em questão. As duas estratégias são fundamentais. Para mim, o ideal é compor uma dieta existencial – mental, cultural – balanceada, onde o sistema da alta ajuda possa conviver em harmonia com a esfera da diversão.  

O seu pai o influenciou de alguma forma nesse trabalho?

Herdei dele a disciplina, somos muito estudiosos. Mas ele é mais intuitivo, eu sou mais racional. E não tenho, é claro, o talento desmedido que ele tem.

Qual sua relação com a música?

A música para mim é a certeza do ser, o sentido e o afeto numa coisa só, a expansão do corpo e dos sentimentos. Em suma, é uma experiência fundamental na minha vida.

Você escreveu a letra de algumas músicas compostas pelo seu pai. A lógica da canção é diferente da lógica da literatura?

Sim, fundamentalmente diferente. A canção é uma totalidade estética composta por duas linguagens: a verbal e a musical. Uma canção é o sentido que se forma por meio da relação entre palavras e sons, letra e música (melodia, ritmo e harmonia). Já na literatura “só” se conta com a linguagem verbal.

O mundo hoje está muito superficial? Por que poucas pessoas se interessam pela reflexão?

Houve uma mudança de temporalidade progressiva nos últimos séculos. A percepção das pessoas foi se fragmentando cada vez mais. Basta comparar uma forma como o romance do século XIX, com suas oitocentas páginas, e uma tela de rede social, com suas dezenas de informações díspares num mesmo espaço visual. A experiência da reflexão requer uma temporalidade mais contínua, linear e duradoura, ao passo que a história caminha no sentido de uma fragmentação progressiva.

Uma nova edição do BBB está no ar na TV Globo. Esse tipo de programa é um exercício de mau-caratismo, como alguns críticos gostam de defini-lo?

Um dos sinais de ausência de pensamento é a moralização apressada dos fenômenos culturais. Para mim, e vou deixar a frase soar enigmática, o problema fundamental do BBB é que, diferentemente do que ele pensa, não revela a vida de ninguém.

O que você acha da mídia de celebridades?

Acho nada.

(Foto de abertura: Bruno Veiga)

 

Simples sabedoria

Francisco Bosco seleciona frases de célebres pensadores que ajudam a entender o cotidiano

 

“O homem só dispõe de dois objetos sexuais: ele próprio e a mulher que cuida dele.”

Psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) (foto ao lado)

 

“As pessoas são tanto mais autênticas quanto mais se parecem com o seu desejo.”

Cineasta espanhol Pedro Almodovar             

 

“Não há nada de mais abjeto no mundo do que um bon vivant. Ao contrário, os grandes vivos são pessoas de saúde fraca.”

Filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995)                                                                                                                   

 

“Nenhum objeto está em relação constante com o prazer. Contudo, para o escritor esse objeto existe: é a língua materna.”

Escritor e filósofo francês Roland Barthes (1915-1980)                                                                                                                       

 

“A amizade é uma consanguineidade de espíritos."

Escritor francês Marcel Proust (1871-1922)  

                                                              
"Não me incomodo que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo."

Cantor e compositor Noel Rosa (1910-1937) (foto ao lado)                                                            

 

“O amor é uma forma de suicídio.”

Psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981)                                                                                               

(Matéria publicada originalmente em novembro de 2012 na Revista Gol)


Ator não é celebridade

Rachel Ripani lembra-se de quando havia uma clara divisão entre atores que só faziam teatro daqueles que atuavam apenas na televisão. “Aliás, se a gente pegar como referência o início dos anos 1990, após o Plano Collor, sequer havia aqueles que trabalhavam basicamente no cinema, como se vê atualmente. Com poucas exceções, hoje quem entra numa escola de interpretação está pensando em seguir carreira na telinha”, diz ela. A constatação de que a tevê é a meca de todo iniciante não chega a ser um problema, em sua avaliação, desde que haja seriedade na profissão e base de formação, o que normalmente é conquistada no palco. “A tevê e o cinema são trabalhos dignos e também contribuem para melhorar o nível técnico, além de oferecer uma visibilidade que dificilmente o teatro oferece.”

 

A atriz de 34 anos foi vista há pouco na novela das sete da Globo Caras & Bocas, vivendo a personagem Tatiana, assessora de Dafne (Flávia Alessandra) numa galeria de artes. Na trama de Walcyr Carrasco, ela se apaixonava por um judeu ortodoxo interpretado por Sidney Sampaio. O papel rendeu elogios e relativa fama, especialmente pelo fato da personagem ter contraído doença grave e, em conseqüência, acabar raspando todo o cabelo. Não é a primeira vez que Rachel migra dos palcos para a telinha. Sua estréia deu-se em 1994 na novela Zazá, quando encarnou uma das filhas da personagem de Fernanda Montenegro. De lá para cá, trabalhou em teleteatro da TV Cultura, atuou em outras novelas e passou por Malhação.

Se muitos atores de carreira teatral se queixamde que ao chegarà televisão são olhados com certo desdém, Rachel afirma que não sofreu preconceito algum. “É fato que tempos atrás não se costumava dar valor para quem vinha do teatro, mas hoje em dia isso mudou e no meu caso o respeito é maior porque falo outros idiomas, canto, estudei no Exterior, fiz comédia, drama, stand-up. É uma formação diferente comparado aquele que começou cedo na televisão e não teve tempo para aprimorar-se na profissão, o que o deixa sem repertório.”

Ator x celebridade. Outras questões, em sua opinião, contribuem para atrapalhar o desenvolvimento profissional. Na televisão, muitas vezes os atores são pressionados ou se deixam aprisionar por rótulos e estereótipos. É o galã, eternamente galã, a boazinha, eternamente boazinha. E, se depender de alguns colegas, mais interessados em falar da vida pessoal do que da carreira, a coisa só tende a piorar. “O Selton Mello diz que ator não é celebridade, que está havendo uma terrível confusão. Eu sempre digo que meus personagens são mais importantes que minha vida, eu procuro ter personalidade artística”, assinala. Por conta dessa banalização, Rachel volta e meia recebe e recusa convites para estrelar espetáculos com cheiro de caça-níquel e algum BBB no elenco. 

Ela, no entanto, confessa que também nutriu preconceitos pelo meio durante muitos anos. “Para quem fazia teatro com Antunes Filho, estudou na escola de Peter Brook, achava que ia me vender para o sistema. Mas é tacanho pensar assim, é permanecer numa gaiola artística, eu cresci muito como artista na tevê”. Hoje enxerga certa injustiça por parte de críticos que avaliam a novela como um produto de dramaturgia pobre. “A novela é tecida no calor da hora, o autor escreve vários capítulos diariamente, não dá para exigir que saia dali um texto do nível de Ibsen, que teve o tempo todo do mundo para criar”. Os autores de telenovela, assim, têm méritos de sobra. “É incrível como Gilberto Braga e Walcyr Carrasco, entre outros, conseguem mobilizar a atenção de um país inteiro mesmo dentro desse esquema radical e extenuante de trabalho.”

Em Caras & Bocas, Rachel construiu uma personagem que não precisou aparecer em trajes sumários ou apelar para clichês para colher elogios. E encarou com tenacidade o desafio de ficar careca em rede nacional. Mas a atriz, de rosto bonito e corpo bem feito, sofreu um bocado quando se viu enfeada sem cabelos. “Eu chorei muito porque me achava esquisita, desprotegida, não queria sair do meu hotel, mas o que aliviou foi a repercussão positiva que gerou”. Ela se refere às várias pessoas portadoras de câncer que se aproximaram nesses meses todos com palavras de conforto. Numa estréia teatral em São Paulo, Rachel apareceu com uma florzinha na cabeça raspada e foi bastante assediada. “Mulheres curadas ou se curando de câncer vieram me abraçar, contar suas histórias de luta, coragem e superação. Como sou emotiva, eu me derretia.”

Foi a avó de Rachel a grande inspiradora para que seguisse na profissão de atriz. “Eu tinha 12 anos quando ela me levou para assistir O Mistério de Irma Vap e o meu mundo mudou de vez a partir dali”, conta. Não parou mais. Fez musicais (Gota D´Água), dramas (Closer), tragédias (Rei Lear), comédias (O Pior de São Paulo), stand-up (Confissões de Acompanhantes), além de estudar interpretação na Inglaterra, na prestigiada e concorrida escola Cygnet Theater School, de Peter Brook.

De tudo um pouco. Também desenvolveu outras frentes de trabalho, como antídoto para o caso da carreira não vingar. Aprendeu idiomas, cursou gastronomia, “adoro cozinhar comida francesa e italiana”, sobreviveu fazendo dança do ventre. “Infelizmente é uma atividade com má fama, cheguei a receber uma nota de 100 dólares junto com cartão de visitas, o que me deixou ofendida por ter sido vista como garota de programa”, lembra-se. Certa vez caiu em depressão, logo após finalizar Zazá. “Desabei porque tive um começo de carreira acelerado, fiz o CPT do Antunes, fui para o Exterior, voltei para a televisão, aí, na hora que acabou a novela, não sabia mais quem eu era e se havia tomado o rumo certo.”

Rachel é movida a eletricidade. Mantém um blog descontraído na internet, cava tempo para ler histórias em quadrinhos, “eu curto bastante o quadrinista inglês Neil Gaiman, hábil em misturar mitologia e realidade”, e solta a voz nas horas vagas na banda de rock eletrônico Mad Hatter. A atriz canta e compõe também para publicidade. É dela a letra de um comercial do absorvente Íntimus, que mostra uma mulher caminhando enquanto os homens a acompanham com o olhar.

Atualmente trabalha com Tejo Damasceno, músico do coletivo Instituto, e em breve será vista no filme Carro de Paulista, de Ricardo Pinto e Silva. No teatro, produziu o elogiado Anatomia Frozen, peça que fala de abuso sexual infantil, e eventualmente exercita-se no stand-up comedy com o espetáculo de sua autoria Garota de Programa. Recentemente apresentou o solo cômico em uma festa fechada. “Foi surreal. Estava a Xuxa, a esposa do presidente de Angola e eu falando um monte de besteiras.”

A cereja do bolo é sua estréia neste ano como dramaturga com a peça Ishtar, montagem que reunirá os amigos Walter Breda, Rubens Caribé e Rosi Campos. Trata-se de uma comédia sobre uma virgem de 50 anos que quer se libertar desse carma. “É uma brincadeira sobre sexualidade depois dos cinqüenta anos”, define. Para a atriz, a arte existe para fazer refletir, emocionar, rir, provocar catarse. “Agora só falta eu ser acrobata e bailarina”, brinca Rachel, fiel discípula de um lema de Paulo Autran, que um dia lhe ensinou que todo artista tem de ser completo.

(Foto da página inicial: Crispino)

Edgar Olimpio de Souza

 

 

Genitália sem retoques

São pênis e vaginas de tudo quanto é tamanho, cor e forma, fotografados de maneira natural, sem apelo erótico. No Banco Mundial da Genitália, idealizado por três jovens amigos dispostos a contrariar a ditadura da perfeição física, não importa se os órgãos sexuais são atraentes, belos e excitantes. Vale o fato de que estão ali, expostos na vitrine, despidos de qualquer tipo de artifício ou maquiagem, como se costuma observar na nudez veiculada pela indústria da publicidade ou pelo entretenimento adulto.

As imagens das partes íntimas frontais são colhidas em festas e eventos culturais descolados, em uma tenda especial armada no local, e não se exige nada além do interesse do participante em se deixar fotografar desnudo da cintura para baixo. O processo é rápido e indolor. No dia seguinte, as fotos irão figurar no site do referido banco. Mas, atenção: a identidade dos donos das genitálias é mantida rigorosamente em segredo. Sequer há divisões por faixa etária, nacionalidade, dimensão, gênero. Tudo é embaralhado porque a proposta artística é celebrar a diversidade do corpo humano.

O projeto do escritor João Kowacs, 24, da videomaker Caroline Barrueco, 26, e da fotógrafa Luiza Só, 25, não disfarça a intenção de desmistificar a ilusão de que existe um modelo correto de genitália. “Estamos submetidos a um padrão estético que não existe na vida real”, acredita Kowacs. “A imagem do nu hoje na mídia é refém de um conceito reducionista da beleza, ditado pela minoria. Não vemos mais genitálias normais, com suas óbvias imperfeições”, emenda Caroline.

Na internet desde julho do ano passado, o arquivo disponibiliza no momento algo em torno de quinhentas fotografias, das quais 60% são retratos de pênis. A supremacia masculina teria uma explicação, segundo os criadores: os homens parecem buscar um sentimento de autoafirmação ao se exporem, enquanto as mulheres se descobrem mais envergonhadas no ato de se despirem.   

Ato de resistência. Um dos efeitos colaterais da imposição de um modelo dionisíaco de beleza é, na avaliação de Caroline, a insegurança que acomete os amantes na hora do sexo, especialmente as mulheres. “Por acreditarem que não têm um corpo compatível com o padrão vigente, muitas delas só conseguem transar à meia luz”, afirma. “Quem disse que é preciso exibir um corpo maravilhoso para fazer amor?”, questiona ela, que critica o modismo atual das cirurgias plásticas nos lábios vaginais e o uso escancarado do photoshop (software que edita imagens) para corrigir “falhas” na silhueta das modelos das revistas masculinas.  

Durante o trabalho, mesmo com o aviso antecipado de que não se trata de material pornográfico, eles já se depararam com situações inusitadas. “Alguns homens querem ser fotografados com o membro ereto e chegam a perguntar se vai haver algum tipo de manipulação para auxiliá-los na empreitada”, diverte-se Kowacs. Outros ingressam na cabine sem a mínima noção do projeto e, ao tomarem ciência, surtam. Tem gente que, para se sentir mais à vontade, pede para que o fotógrafo também se dispa. “Como tirar a roupa é um momento íntimo, alguns esperam a nossa cumplicidade”, diz Caroline. Há ainda aqueles que querem fotografar outras partes do corpo, como a bunda, ou enfeitar seus órgãos sexuais com adereços e penduricalhos. Se no início essa iniciativa era desestimulada, com o tempo passou a ser aceita. Isso originou um banco B de imagens “rejeitadas”, hoje com cerca de cinqüenta fotos.

O próximo passo é inserir um link para que os voluntários enviem as fotos de suas genitálias. “Já temos na vitrine pênis e vaginas da Espanha, Alemanha, México, Portugal e França”, festeja Kowacs. Por causa dessa brincadeira, que ganhou proporções inesperadas, eles são convidados ao menos para uma festa semanal. O assédio teria aumentado, na percepção deles, porque o Banco Mundial da Genitália não transforma pênis e vaginas em produtos efêmeros de consumo. Funciona como um ato de resistência, uma questão ética. “Queremos que as pessoas se sintam à vontade diante de seu corpo e do corpo dos outros”, reforça o escritor. “Estamos dando nossa contribuição para dissolver o tabu de que uma genitália ´não normal´tem de ser escondida.”

Anote aí:

Banco Mundial da Genitália: www.genitalia.me

Sax na Paulista

Ele já andou com guerrilheiros na Colômbia, treinou nas selvas como soldado do Exército brasileiro, foi professor particular de flauta e hoje toca saxofone nas ruas paulistanas. De temperamento calmo e afável, bate ponto toda terça-feira na calçada em frente ao Conjunto Nacional, tradicional condomínio na esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta. Em meio ao público que se aglomera no local para apreciar sua arte, ele desembrulha repertório baseado em jazz, música clássica e MPB. Ao fim da performance, alguns espectadores, com entusiasmo visível, depositam notas de dois, cinco e até dez reais na caixa que guarda o instrumento e é deixada estrategicamente aberta sobre o chão. Outros puxam papo ou o cumprimentam.

É assim, há mais de duas décadas, que o saxofonista e flautista Emerson Pinzindim, 49 anos, ganha seu sustento. O sobrenome, aliás, é uma homenagem a Alfredo da Rocha Viana Filho, o Pixinguinha (1897-1973), considerado um dos maiores compositores da música popular brasileira, autor dos clássicos chorinhos Carinhoso e Lamentos. Se não tem o singular talento do mestre inspirador, o que não é demérito algum, nesse caso, Pinzindim transpira paixão pelo ofício e demonstra virtuosismo na execução do sax e da flauta.  

Sua vida poderia render um bom livro de aventuras. Aos nove anos, no colégio onde estudava, aprendeu corneta de fanfarra e não parou mais. Foi amor à primeira vista, quase interrompido não fosse uma atitude atrevida que assumiu às vésperas de cumprir o serviço militar obrigatório. Por uma questão ideológica, ele simplesmente comunicou à sua mãe que desistira de se alistar. “Na época, plena ditadura militar no País, ou se era de esquerda ou de direita e o Exército partilhava da segunda opção, além de ser elitista e racista”, justifica. Como não vislumbrava alcançar o posto de general por acreditar na discriminação contra pretos e pobres, pediu para que sua mãe providenciasse um passaporte. Havia decidido peregrinar pela América do Sul.

Com documento em mãos, apanhou uma mochila, acomodou as roupas e duas flautas e embarcou no mítico Trem da Morte. A rota, de 640 quilômetros, liga o vilarejo boliviano de Puerto Quijarro, na divisa com Corumbá (MS), à cidade de Santa Cruz de la Sierra, no centro da Bolívia. Até hoje Pinzindim se lembra dos percalços que vivenciou ao longo das extenuantes dezoito horas de viagem. O trem passou por diversos trechos perigosos, balançou em pontes precárias e não poucas vezes descarrilou. “Eu via de tudo nos vagões: cabrito, galinha, vaca, tartaruga, traficantes, cocaína, gente esquisita”, diverte-se hoje. “Muitos eram sacoleiros vizinhos que voltavam das compras no Brasil. Na Colômbia, o papel higiênico era brasileiro.”

Tiros na praça. Nos países que visitou, Pinzindim sobrevivia executando flauta doce – a transversal havia sido furtada ainda em solo brasileiro – e vendendo artesanato. Ambas as atividades na rua. A rica experiência, especialmente a de mostrar o seu talento musical para nacionalidades distintas, o marcou profundamente. Notou que a música, exercitada livremente em espaços públicos, podia funcionar como instrumento político, uma arte transformadora. No Peru, por exemplo, conheceu mineiros que interpretavam cancioneiro andino no caminho para o trabalho. “Eles se reuniam em grupos para tocar, dentro dos ônibus, e os passageiros retribuíam com moedas.”

Nessas viagens, Pinzindim descobriu que ter nascido no Brasil era um poderoso cartão de visitas. “Eles gostavam muito de brasileiros, percebi que dava prestígio e facilitava na hora de fazer amizades e se hospedar. Eu me sentia disputado”, ri. Com o glamour de falar português, abrigou-se em diversos tipos de lares, a maioria de famílias simples, e chegou a dormir em uma casa pertencente a jovens guerrilheiros. Certa noite, foi acordado às pressas e teve que fugir do local porque policiais baixariam ali em poucos minutos.

Pela primeira vez, sentiu na pele as agruras de quem atua na clandestinidade. Os tais guerrilheiros militavam no M19, movimento criado nos anos 1970 na Colômbia por jovens da classe média urbana. O núcleo que o hospedou havia seqüestrado um microônibus e o conduzira para a Universidade Nacional. Em determinada ocasião, a praça Che Guevara, ocupada pelos rebeldes, transformou-se em praça de guerra com o súbito desembarque da polícia nacional.

Ele estava no olho do furacão também. “Um policial gritou para a gente se abaixar e ameaçou meter bala em quem ficasse de pé. Eles chegaram agressivos, manuseando as metralhadoras assim”, explica, imitando a ação com a flauta transversal. “Nunca tinha presenciado um combate de perto. Vi gente levando tiro, arremessando bomba. Uns 250 policiais morreram nesse dia.”

Direito de tocar. Refeito do susto, retomou a romaria e foi explorar comunidades na cordilheira dos Andes. Já exausto da peregrinação por cinco países – ele gastou sola também pelo Equador, Bolívia e Venezuela -, retornou ao Brasil pela Guiana, situada ao norte. Com 21 anos, trazia na bagagem o aprendizado da língua espanhola, a sabedoria da rua, a sensação de que sua vida esteve por um fio no episódio do confronto entre guerrilheiros e policiais.  

No Maranhão, ingressou no Exército na expectativa de tocar flauta na banda militar. Ledo engano. Acabou deslocado para a selva, ocupando o seu tempo em treinamentos para combate de guerrilhas urbanas. Expulso da unidade por incompatibilidade entre o que queria e o que foi oferecido, começou a trabalhar na Polícia Militar e, na sequência, como segurança de uma companhia, já em São Paulo – nesse último emprego, chegou a levar tiros durante uma tentativa de assalto.

A retomada da trajetória musical se deu quando viu uma flauta sobre a mesa da gerente de uma empresa, sediada na Avenida Angélica. O instrumento era um presente de aniversário dela para a filha. Com a maior cara de pau do mundo, pediu para tirar um som. Não deu outra. Na semana seguinte, virou professor de música na escola da menina. Mas, apesar da boa remuneração, não tinha tempo para tocar e pediu demissão. Preferiu estudar em casa.

Como a situação financeira apertou, decidiu mostrar o seu dom no vão livre do MASP – Museu de Arte de São Paulo. O início foi difícil, ganhava quase nada, pensou em desistir, mas aos poucos dominou o jogo e passou a ser reconhecido. Dali para a passagem subterrânea da Rua da Consolação e a galeria interna do Conjunto Nacional, a poucos metros da entrada da Livraria Cultura, foi um pulinho. Hoje está estabelecido na porta do Conjunto Nacional e em outros pontos da capital paulista com bom fluxo de pedestres.

Nos últimos tempos, Pinzindim se engajou na luta pelos direitos de quem desfruta de logradouros públicos para apresentar a sua obra. No ano passado, criou a Associação dos Artistas de Rua e levou à Câmara Municipal de São Paulo um projeto de lei que permite aos músicos comercializarem seus CDs na rua. O texto já passou por todas as comissões e seguirá os trâmites previstos na casa. Com dois álbuns gravados, Pinzindim não pode expor e vender o seu trabalho na calçada. “Se aprovada, a lei vai garantir mais uma fonte de renda para uma classe que atua à margem do mercado formal”, assinala. Afinal, ninguém vive só de romantismo e idealismo, mesmo na rua.     

­­­­­­­­­­­­­­Texto e fotos de Karin Salomão (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

Aluna de Jornalismo da USP e participante do projeto Projeto Repórter do Futuro

 

 

Ele está entre nós

Parece até que ele não morreu em 16 de agosto 1977, vítima de colapso fulminante associado a uma disfunção cardíaca, porque o homem continua vendendo discos como nunca e fazendo outros nomes famosos ainda vivos comerem poeira. Elvis Aaron Presley vendeu 700 milhões de discos em sua carreira, iniciada em 1954 na pequena gravadora Sun Records, e outros tantos depois de sua morte física, totalizando quase 1,5 bilhão de cópias. É como se um em cada cinco habitantes do planeta tivesse um álbum do Rei do Rock.

De acordo com a lista anual da revista Forbes de artistas que mais faturaram depois de morrer, os herdeiros de Elvis Presley receberam US$ 55 milhões apenas em 2011, com discos, produtos licenciados e ingressos para Graceland, a mansão onde viveu por duas décadas em Memphis, no Tennessee, que hoje funciona como museu e Meca dos seus seguidores. E o mais incrível: a legião de admiradores continua a crescer, mesmo 35 anos depois de sua despedida, especialmente no Brasil.

São fãs-clubes, covers, colecionadores, comunidades no facebook, casais que selam matrimônio em Las Vegas, cidade onde o ídolo mais se apresentou e casou com Priscilla Presley em 1967, fora gente que viaja todo ano para Graceland. Pessoas aficcionadas como o ator Alexandre Borges, 46 anos, o polígamo Cadinho da recente novela Avenida Brasil, que costuma decorar os camarins de teatro com referências ao artista pop, como um baralho estampado. “Ele sempre foi uma figura forte, de existência curta, mas intensa”, avalia Borges.

Dois grandes eventos ligados ao roqueiro, aliás, movimentaram a agenda cultural do País nas últimas semanas e ajudaram a manter a lenda viva. Por conta do estrondoso sucesso, The Elvis Experience, uma exposição que reúne uma penca de artigos raros e pessoais do mito, prorrogou temporada até dezembro próximo. Em outubro, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo sediaram a megaprodução Elvis Presley in Concert, que o trouxe de volta, num telão, acompanhado ao vivo pela banda original. Quem viu, amou.

Tudo do Rei. Autoproclamado o maior admirador de Elvis Presley no Brasil, o assistente social aposentado Walteir Terciani (foto à direita, ao lado de Priscilla Presley), 66, desde 1980 desembarca todo agosto em Memphis para participar da chamada Elvis Week. Lá ele assiste shows que celebram o personagem, bate perna por Graceland, visita o hospital construído em seu nome, dá uma esticada até Tupelo (Mississipi), onde Elvis nasceu, e engrossa uma vigília à luz de velas no aniversário de morte do artista.

Uma de suas maiores relíquias é um miniposter autografado pelo cantor, conquistado às duras penas, depois de enviar-lhe cartas diárias durante meses implorando por uma dedicatória. “Nessas viagens, encontro amigos do mundo inteiro, choramos juntos, é uma grande família”, afirma ele, que preside o fã-clube Gang’ Elvis, fundado em 1966 em São Paulo e hoje com 1.800 associados.

Maluca pelo ícone pop, a curitibana Renate Úrsula Lampe dirige o fã-clube Elvis Presley´s Kingdom e organizou em agosto passado mais uma festiva excursão até Memphis. “A primeira vez que fui para lá teve o mesmo sabor de uma criança que vê o Papai Noel de perto”, compara ela, que tatuou a imagem do músico no pé e reservou um cômodo na sua casa para reverenciá-lo. Os cinqüenta viajantes desembolsaram R$ 4 mil cada um para, durante onze dias, peregrinarem pela região, incluindo visita à cópia em cera do artista no Museu Madame Tussaud.

Outro adorador é o psicólogo Marcelo Neves (foto à esquerda, ao lado de Vivian), 41, mentor do fã-clube paulistano Elvis Triunfal, que reúne 1.200 membros com carteirinha. Ele mantém um site sempre atualizado com mil acessos diários, que virou referência entre os elvismaníacos por conta de seu conteúdo enciclopédico. Há desde uma cronologia histórica do artista, que começa com o nascimento de sua avó paterna, Minie Mae, em 1888, e continua até hoje, incluindo a cobertura de eventos de Elvis no País e a sua discografia completa, além da edição de um fanzine trimestral e a realização de reuniões beneficentes. Sua mulher, Vivian Ondir, 31, divide a direção do projeto. “Não consideramos um trabalho, fazemos por amor”, conta ele.

Viu ao vivo. Autor do livro Elvis – Mito e Realidade, que está em sua quarta edição e desconstrói teses mirabolantes como a de que Elvis teria forjado a própria morte e se refugiado em uma ilha, o ex-dentista e agora músico Maurício Camargo Brito viu um show do ídolo ao vivo, em 1976. Ficou petrificado. “É difícil descrever a sensação, foi um sonho”, conta ele, amigo do roqueiro Raul Seixas, outro alucinado pela estrela pop, que costumava freqüentar a casa de Brito e interpretar Elvis enquanto o anfitrião dedilhava o piano.

Ao menos uma vez por mês, o espaço cultural Elvis Arts, na capital paulista, vira sede de um animado encontro de apaixonados pelo mito, que surgem ali ostentando camisetas com imagens do ícone pop. Nesse ambiente temático, eles dão uma canja no karaokelsvis, curtem pocket-shows, assistem a filmes relacionados e trocam figurinhas.  “Ele é tudo, a vida toda respirei Elvis, cheguei a visitar a sua mansão e levar um fio do carpete de recordação”, revela o cantor Ângelo Máximo, que nos anos 1970 interpretava versões em português do cancioneiro do artista e está prestes a lançar um álbum em sua homenagem, Elvis não Morreu.

A anfitriã do local, a artista plástica Berenice Dib (foto acima, ao lado de Ângelo Máximo), casou-se com Jacob Meyer Neto em 1999 em uma capela de Las Vegas e foram abençoados por um cover de Elvis. “Ele citou trechos de músicas, foi arrepiante”, recorda-se ela, que chegou a pintar uma tela com o retrato do roqueiro e ganhou elogios de gente próxima ao ídolo quando a expôs em Memphis. Já o engenheiro Luciano dos Santos, 37, e a arquiteta Patrícia Durso, 34, se uniram há quatro anos em São Paulo e surpreenderam os convidados. “Na festa, entrou um sósia do Elvis Presley e teve um senhor que quase infartou ao vê-lo cantar”, relembra.

Neymar? Marilyn? Elvis! E nem adianta achar que o fanatismo é coisa de gente mais velha, das viúvas do rockabilly. Eduardo Machado (foto à esquerda, com o pai, Laerte), 7 anos, o Elvisinho, desfia canções do mito como gente grande e costuma se exibir em aniversários e encontros dos fãs, metido em camisa bufante de gola alta. Em sua casa, coleciona miniaturas de carros inspirados nos modelos pilotados pelo artista. “Às vezes, levando-o para a escola, eu quero ouvir noticiário e ele me pede para tocar as músicas dele”, conta o pai, o músico e editor de vídeo Laerte Machado, 40, que também o venera. Machado guarda com carinho um vídeo caseiro de 1959 recheado de imagens pouco vistas do Rei passeando por Paris, na época em que servia o Exército americano na Europa. 

Na agência de sósias paulistana O Gordo e o Magro, são dezessete imitadores do rei do rock para sete Neymar e duas Marilyn Monroe, entre outras personalidades, requisitados para eventos com cachês de R$ 800 a R$ 4 mil. “Toda semana tem gente me pedindo um Elvis. Recentemente, um deles viajou para Portugal e outro foi recrutado para um cruzeiro marítimo”, conta a proprietária Nilce Costomski.

Segurança em uma empresa, Alex Alexandre Elvis, 40, gosta de aparecer nos encontros dos elvismaníacos vestido de jumpsuit, o macacão que o artista trajava nos seus shows, sem contar acessórios como óculos, anel e corrente. Eventualmente é chamado para entoar em festas Kiss me Quick, It´s Now or never e Hound Dog, entre outros hits. “A música dele toca direto no coração”, acredita. Nesses trabalhos, o que fatura supera o seu salário mensal. Sua maior glória, exulta, foi ter sido reconhecido na rua por alguns fãs e até dar autógrafos.

O fascínio pela figura mítica contagiou o publicitário e ilustrador Leandro Spett (foto à direita), 36, que tem cerca de 500 vinis, CDs, álbuns, gravações de shows e compilações raras que adquiriu no Brasil e no exterior. “Todo colecionador de Elvis precisa ter discos do mundo inteiro, até em russo, japonês e romeno”, brinca ele, que em uma excursão para Israel, a caminho do aeroporto, implorou para o motorista do ônibus desviar o caminho para uma visita-relâmpago ao restaurante Elvis Inn, localizado dentro de um posto de gasolina. “Sou tão louco que já desembolsei US$ 800 por uma caixa de trinta CDs com todas as gravações dele. Só existem mil dessas no mundo”, orgulha-se. 

Aqui entre nós. No Brasil, imitadores de Elvis Presley multiplicam-se. Seja pela paixão pura e simples ou como uma forma divertida de garantir algum dinheiro – os profissionais chegam a cobrar até R$ 10 mil por performance. Vestem réplicas e acessórios oficiais, cultivam costeletas e topetes e se apresentam com banda ou playback em eventos sociais, corporativos, casas noturnas e teatros. Eles sustentam a idéia de que prestam um tributo, e não uma mera imitação.

É o caso de Renato Carlini, 36 anos, que chegou a cantar duas vezes em frente à mansão de Graceland. “Tudo o que ele fez, do visual à música e ao comportamento, foi diferente”, afirma ele, cover desde 1997. Em 2010, Carlini se apresentou no programa do Faustão, num concurso de imitadores. “Na minha vez, rebolei tanto que rasgou o fundilho da minha calça. Pela primeira vez o Elvis Presley saiu de costas de um palco”, diverte-se.

A fidelidade do microempresário Júlio César Mantovani (foto à esquerda), 41, se estende ao seu meio de transporte. Ele costuma viajar com sua banda a bordo de um Chevrolet 1953 Belair, o mesmo modelo pilotado pelo mito. No palco desde 1986, prefere se caracterizar como o Elvis ator, atividade a que o roqueiro se dedicou mais em meados da década de 1960. “Eu sou o único cover com o visual dos filmes: calça, paletó ou jaqueta, sem costeletas”, aponta.

Edson Galhardi (foto à direita), 43, que trabalhava no comércio de material de construção antes de virar cover, em 1985, faz um estilo mais “low profile”. “Evito ser Elvis no dia a dia, não uso costeleta e deixo o cabelo desalinhado”, avisa. Cinco anos atrás, ele voltou para a sua cidade natal, Maringá (PR), e engatou um show para celebrar o aniversário de trinta  anos da morte de Elvis. “Lotei um teatro de mil lugares, com uma banda de dezoito músicos”, orgulha-se.

Assim como o ídolo, o ex-caminhoneiro Álvaro Martins Alonso, 32, o Elvinho, trocou a vida solitária nas estradas pelos holofotes, em 2001. Ele confessa se emocionar com os presentes que recebe do público, como echarpes e ursinhos de pelúcia. “O fã acha que está entregando ao próprio Elvis”, acredita ele, que pinta o cabelo loiro de preto. “Transformei o quarto de casa em um camarim temático. Três paredes são voltadas ao Elvis e a quarta dedicada à minha carreira”, conta.

Na rua, quando o abordam, Ronnie Packer, 46, costuma brincar que “Elvis não morreu, apenas envelheceu”. “Eu interpreto todas as suas músicas no mesmo tom”, garante ele, que encarna o personagem desde 1984.

Em um mercado competitivo, os sósias estão fazendo o que podem para se destacar. Neste ano, o ex-projetista industrial, Helder Moreira (foto à esquerda), 39, montou um grandioso show com banda de nove músicos, dezesseis bailarinas e 36 figurinos. Ele não se considera cover, mas alguém que faz uma releitura de Elvis Presley. O repertório clássico está lá, mas com ousadias, como a inserção de trechos da Aquarela do Brasil na canção Viva Las Vegas. “É uma nova maneira de se relacionar com a sua música”, justifica ele, que também ministra palestras com base nas canções idealizadas pelo ídolo e, vestido de Elvis ou de terno e gravata, realiza cerimônias de casamento personalizadas. “Uma vez encontrei o Pelé numa festa e ele, no meio do alvoroço, se voltou para mim e disse que me conhecia. Foi inesquecível”, revela.

O fenômeno da elvismania não surpreende o psicólogo Alexandre Rivero, 56. Na sua ótica, a adoração ao herói serve de inspiração para transpor as barreiras do dia a dia. “Elvis teve uma infância humilde, virou artista, conquistou reconhecimento, lançou modas, influenciou os costumes. Nós precisamos consumir um herói. Na infância, ele funciona para a criança enfrentar o mundo adulto. Na adolescência, para romper barreiras. Para o adulto, ele encarna a possibilidade de suplantar as adversidades da vida”, ensina.

Nas ruas, nas casas, nos encontros de amigos, nos batizados e festas de aniversário. O Rei é onipresente. Sem falar que volta e meia há um homônimo fazendo campanha política ou um Elvis Presley da Silva dá o ar da graça na lista de aprovados de alguma faculdade. Fato é que ele não está mais entre nós, mas eles estão por aí. Cantando, requebrando, casando pessoas ou simplesmente curtindo um som que, a julgar pelos números, não vai sair jamais de moda. Elvis está mais vivo que nunca.

 

Herança bendita

 

John Lennon: “Só existia uma pessoa que os Beatles queriam conhecer nos EUA: Elvis!"

Mick Jagger: “Ninguém, mas ninguém, é igual ou será igual. Elvis era e é supremo”

Frank Sinatra: “Eu sou apenas um cantor, mas Elvis era a materialização de toda a cultura americana. A vida não seria a mesma sem ele”

Bono Vox: “Rock´n´roll sempre foi Elvis, não somente porque ele era Elvis, mas porque ele era a estrela maior”

Erasmo Carlos: “Eu fui apresentado ao Roberto Carlos porque eu tinha a letra de Hound Dog, que ele estava atrás. No início eu imitava as roupas e o estilo de Elvis. Ele foi um cara que influenciou o meu trabalho”

Raul Seixas (foto à direita) homenageou o artista em 1976 com Can´t help falling in Love (1961). Eu nasci há dez mil anos atrás (1976), parceria com Paulo Coelho, foi inspirada na música I was born about ten thousand years ago (1970). 

Jerry Adriani lançou em 1990 o álbum Elvis Vive, tributo com quinze versões de canções de Elvis Presley em português, entre elas, Hotel Inferno (Heartbreak Hotel), Me beija assim (Kiss me quick) e Vira lata (Hound dog).

Caetano Veloso releu no cd A Foreign Sound (2004)o clássico Love me Tender (1956), canção com maior número de versões e regravações por brasileiros.   

 

(Reportagem de Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Matéria publicada na edição de setembro da Revista Gol )

A melhor entrevista do ano

O título desta matéria é uma provocação, mas há uma explicação para isso. Se há uma coisa que o cantor e compositor maranhense Zeca Baleiro, 46 anos, não curte são as famosas listas com os melhores nisso e naquilo. “Essas eleições da mídia viraram um fetiche, fico preocupado quando vejo meu nome nelas”, revela ele, que no ano passado lançou o seu mais recente álbum, o elogiado O Disco do Ano, com doze faixas (onze inéditas) e a assinatura de quinze produtores. Os tais rankings que trata com desdém só não o incomodam mais porque a grande mídia, avalia, deixou de influenciar o julgamento das pessoas. Hoje as pessoas estariam mais sensíveis à internet e às redes sociais, que assumiram o papel das comadres fofoqueiras. “Todo mundo tem um blog e pode escrever o que quiser”, justifica.    

Versátil, ele circula com desenvoltura tanto pelo rock quanto pelo samba, baião, reggae ou pagode. Por isso, não gosta de ser rotulado, por exemplo, de neotropicalista, como se deu no início da carreira. “Rótulo é uma camisa-de-força”, acredita ele, também avesso à crítica musical especializada, “meio leviana e sem informação suficiente”. Nesta entrevista, Baleiro fala da banalização das letras das canções, da pertinência de um adolescente ler Machado de Assis na atualidade e sugere um debate: “Dostoievski é mais importante do que um game?”. Após colocar o disco na praça e ter produzido o álbum de retorno do “ex-brega e agora cult” Odair José, ele traça planos. Um deles é montar no próximo ano o seu segundo texto teatral, em torno da obra de Nelson Rodrigues, autor que considera genial. “Ele é o nosso Shakespeare.”  

Por Edgar Olimpio de Souza

 

O seu mais recente álbum, O Disco do Ano, estampa um título provocativo. É claramente uma ironia às listas e relações que se vive fazendo aos montes por aí?

É um conceito, remete à mania atual dos rankings, das eleições da mídia. Eu uso a ironia como arma para cutucar esse fetiche. Qual o critério para se montar uma relação dos melhores nisso e naquilo? Se algum disco foi eleito o melhor do ano, deve ter sido mesmo. Mas não sejamos ingênuos, há conchavos. Fico preocupado quando vejo meu nome nessas listinhas. O título soa uma provocação. A última coisa que quero é não causar nada. Prefiro que odeiem a que gostem mais ou menos. Passei um bom tempo sem gravar material inédito e no ano passado lancei este álbum, com músicas novas. Meus discos, aliás, seguem cronologias malucas. O desafio foi criar surpresas, evitar fórmulas repetitivas, inserir nuances sonoras. Apesar de ter convidado muitos produtores, correndo o risco de virar um produto frankenstein, consegui uma unidade.

Você dá bola para a crítica?

Muitas vezes fui incompreendido, o que acho ótimo. Se fosse o contrário, seria frustrante. No início da carreira, a crítica te impacta. Se ela é positiva, você fica deslumbrado. Do contrário, te abala. Se ela é maledicente, significa que o crítico não vai com a sua cara. Ao produzir uma obra, você se expõe. A imprensa vai entendê-la? Um crítico resenhou num jornal carioca que a canção Meu Amigo Enok, que emula a banda Gang 90, da década de 1980, é a melhor do disco atual. Mas eu a compus de brincadeira. No Brasil, a crítica especializada é meio leviana e pouco fundamentada. Falta informação. Antes, ter um disco elogiado na Folha de S. Paulo, em O Globo e na Veja influenciava o julgamento das pessoas. Hoje, esse poder se diluiu por conta da internet e das redes sociais. Todo mundo tem um blog e pode escrever o que quiser.

O Caetano Veloso revelou em uma entrevista de que não gostava de um de seus maiores sucessos, Lenha...

Mamãe no Face, uma das músicas do Disco do Ano, brinca com o episódio. “Mamãe / Eu fiz o disco do ano / E até mesmo Caetano / Parece que aprovou...”. Na ocasião eu comentei que ele era uma comadre linguaruda porque falava demais. O Caetano adora emitir certificados de qualidade à produção alheia. Virou uma espécie de juiz da música brasileira. Mas o que eu disse foi uma brincadeira. Tenho carinho por ele. 

No início, você foi muito incensado apenas por ter sido uma novidade?

A mídia é muito novidadeira e não foi diferente comigo. Logo me rotularam de neotropicalista. O que significava isso? Queriam criar um fato e propagá-lo. Até achava elegante e não era de todo mentiroso. No entanto, não existe nada puro. Sou filho tanto da MPB quanto do rock. Agora me livrei desse rótulo. Outra coisa: eu nasci na era da indústria cultural. Para a minha geração, produto e arte estão mesclados. O que faço não é só arte, mas entretenimento também. Não é algo superior aos mortais. É um tanto descartável, com prazo de validade. Nos tempos urgentes de hoje, um disco lançado dois anos atrás já está datado. O mesmo pode suceder com um artista. Para sobreviver, é preciso entender isso.

Colar etiqueta num artista pode destruir sua carreira?

Claro, porque os rótulos são reducionistas, funcionam como camisa-de-força. A indústria e a imprensa precisam dele, mas o artista não. A partir do momento em que você se deixa rotular, vira escravo. E o maior bem de um criador é a sua independência, sua liberdade. Nos anos 1970, o Walter Franco e o Jards Macalé foram classificados de artistas malditos. Naquela época de contracultura, digamos, até era legal. Hoje, no entanto, virou uma maldição para eles. Um artista pode desarmar a armadilha abrindo-se para a diversidade musical. Apesar da origem e geração diferentes, eu curto o som do Chorão, do grupo Charlie Brown Jr. É um cantor e compositor pop que passeia fácil pelo universo do hip hop. A banda ficou grata por eu ter gravado Proibida Pra Mim. O Chorão me contou que ninguém da MPB havia dado moral para ele até então.  

No caso do veterano Odair José, cujo último disco você produziu, o rótulo de brega o havia alijado do cenário musical?

Eu o considero um gênio popular, um cara que não sente medo de cantar o que vive,  sem rodeios e firulas. Um artista singular. Enquanto a Jovem Guarda falava de calhambeques, Odair José transitava pelo submundo. É um lorde interiorano, educadíssimo, pede a vez para falar. Um cara de outro tempo. Mas grudaram nele o rótulo de brega. A gente se conheceu durante a minha participação no álbum Eu Vou Tirar Você Desse Lugar, tributo feito à sua obra. Fiquei quatro anos tentando convencê-lo a gravar um disco com músicas novas. Ele alegava que não adiantava nada pensar em canções inéditas se o público vivia pedindo sempre os mesmos sucessos. Finalmente ele topou e lançamos Praça Tiradentes (foto ao lado) no ano passado, gravado nos meus estúdios com minha banda. Ele começa a ter o seu lugar merecido na MPB. Agora virou cult. 

Em 2004, Chico Buarque afirmou que a canção havia acabado, o que gerou uma grande polêmica. Ele estava certo?

A canção é uma expressão humana, como a fala e a dança, só vai acabar quando a vida humana se extinguir. Essa frase do Chico foi mal interpretada e se criou uma falsa polêmica em torno dela. Ele quis se referir ao fim de uma era da canção e não ao fim da canção propriamente dita. Eu posso até entender que ela não tenha mais a mesma importância na atualidade. Na minha adolescência, a gente citava versos musicais no boteco. Isso acabou. Houve um empobrecimento cultural que afetou tudo. Pela sua efemeridade, daqui a seis meses uma música será esquecida. Bem diferente daqueles tempos em que um disco censurado do Chico Buarque era ansiosamente aguardado. 

Vivemos a época da banalização das letras das canções?

O que me incomoda é a superexposição, a maneira com que a cultura massificada e descartável é imposta ao grande público e aceita por ele. O pior é que esse massacre midiático acontece no mundo todo, basta ter artistas e estilos comercialmente viáveis. Quando se instaura um gênero de sucesso, vira uma monocultura. À margem da grande mídia, no entanto, existem artistas no Brasil procurando fazer um trabalho original e com conteúdo. Na função de pai, no entanto, fico querendo que meus filhos ouçam de tudo, inclusive o que se julga lixo cultural. Para criar um filtro, desenvolver o discernimento. Se você ouvir só coisas elitistas, você vai se tornar um elitista da cultura.

A pirataria musical é um problema grave? 

Em si, não. E não vejo como coibi-la porque a ferramenta para essa prática ilícita vai continuar existindo. Brasileiro gosta de música e tem o hábito de comprá-la, ainda mais se for muito fácil e barato adquiri-la. É como guiar alcoolizado: a gente sabe que é ruim e ilegal, mas dirige. Conheci gente que comprou CD pirata, gostou e depois adquiriu o original. Por falar nisso, muita gente acha que os CDs morrerão. Claro que as coisas mudam, evoluem, porém eles não irão acabar. Talvez a produção diminua. Nos anos 1970, meu pai chegava em casa com um disco e aquilo virava um evento. Hoje, meus filhos não têm tempo nem disposição espiritual para isso. 

Em algum momento da vida, pensou em chutar tudo para cima?

Hoje eu acordei assim. Todo mundo tem esse dia de ficar de saco cheio de plantar orgânico no sul de Minas, de dar autógrafo num CD. Algumas coisas, inclusive, viram maldição porque você tenta largá-las e não consegue. Pegar estrada, por exemplo. Sou muito chamado para aniversários no interior. Volta e meia durmo em motel, sozinho, é bom frisar, e só tem caju para comer. Esse prazer rock and roll de botar o pé na estrada e beber cerveja no fim do dia é ilusório. Procuro estabelecer metas, desafios, me reinventar. Quero abrir uma escolinha de futebol. Acompanhei a Copa América na Argentina em 2011. Foi uma loucura ver aquela porcaria de seleção brasileira jogar. Adoro o universo do futebol. Numa final Santos x Corinthians, cheguei a fazer coro contra o Ronaldo Fenômeno: ´Ei, você aí, deixou a Cicarelli pra pegar um travesti´.

A cultura das redes sociais já entrou no seu dia a dia?

Pela natureza do meu trabalho, sou dependente da internet. Eu tenho perfis ativos no Facebook e no Twitter. Uso tais ferramentas para divulgar meus projetos e tem dado bons resultados. Eu resisti durante algum tempo a ingressar no mundo das redes sociais porque minha vida já é uma rede social intensa. Sou uma figura pública que expõe imagem e pensamento. Não podemos brigar contra a cultura de nosso tempo. Essa tecnologia acabou promovendo uma mudança sensível nas relações interpessoais. Para os adolescentes, e tem gente que a aciona a cada dez minutos, todo dia tem fofoca. As redes sociais assumiram hoje o papel das comadres que ficavam nas janelas fazendo intrigas e jogando conversa fora. Os papos no bar ficaram chatos. Uma dúvida não gera mais discussões intermináveis. Basta pesquisar no Google. 

Na sua opinião, os artistas hoje estão mais preocupados em mostrar suas casas do que falar de seus trabalhos?

Artistas de verdade falam de trabalho. Os de fachada são reféns da cultura da celebridade. A futilidade desfruta de bastante espaço na atualidade. Muitas vezes você vai ser entrevistado por um repórter de um grande jornal e ele faz perguntas típicas de uma revista Caras ou Contigo. Fica a impressão de que todo mundo gosta de banalidades. Num consultório de dentista, não leio Dostoievski. Fico me perguntando se nos tempos de hoje este autor tem mais importância do que um game e seus estímulos mais imediatos e tangíveis. É uma tese para se pensar. Faz sentido meu filho adolescente ler Machado de Assis hoje? Sou um velho de 46 anos e me aflige observar que o mundo está se transformando. Tal percepção gera um sentimento terrível de perda.  

A política é um assunto do seu dia a dia?

Tanto a política quanto os políticos estão desacreditados. É tão passional quanto o futebol. Ando meio desacreditado. Com a maturidade a gente observa que as transformações sociais não partem dos políticos, mas das organizações civis. Quando somos jovens, a gente tem a ilusão de que basta ter vontade política para mudar a realidade. Não é bem assim. Políticos como o Eduardo Suplicy e o Fernando Gabeira, por exemplo, são anulados porque também estão à mercê dos financiamentos e lobbies diversos. A Dilma não faz nada sozinha sem passar por um Sarney. Eu acredito no desejo político dos cidadãos, daqueles preocupados em tornar o planeta mais habitável e menos inóspito. A política perdeu relevância no mundo moderno.

Você escreveu uma peça teatral, A Paixão Segundo Nelson, com previsão de ser montada no próximo ano. O teatro é uma nova trincheira de atuação?

Eu já havia escrito um musical infantil encenado em 2010, Quem Tem Medo de Curupira?, que permaneceu seis meses em cartaz. Fiquei entusiasmado com a brincadeira. Comecei no teatro, no Maranhão, compondo trilhas para espetáculos infantis na década de 1980. A peça atual tem como ponto de partida alguns livros do dramaturgo Nelson Rodrigues (foto ao lado), como A Vida Como Ela É e A Sombra das Chuteiras Imortais. É uma colagem de textos, com atmosfera musical. Fiz questão de preservar toda a essência rodrigueana. A ação acontece em uma emissora de rádio fictícia dos anos 1950, A Voz do Rio, com seus programas esportivos, atrações femininas, radionovelas e musicais.       

O que o atrai em Nelson Rodrigues?

Os textos ácidos, as opiniões ousadas, os aforismos provocadores, a filosofia de padaria, o vocabulário único, sempre genial. Ele é nosso William Shakespeare.

 

(Foto de abertura: Gal Oppido)

 

Veja clipe da música Calma Aí, Coração

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A voz das mulheres de vida fácil

A chamada profissão mais antiga do mundo tem um jornal no Brasil chamado Beijo da rua, que chega gratuitamente a dezessete estados, é distribuído em boates, casas de massagem, áreas de meretrício e zonas portuárias e sobrevive sem anúncio, em razão do preconceito. Fundado em dezembro de 1988 e produzido na ONG carioca Davida, recebe aporte financeiro do Fundo Brasil de Direitos Humanos, apoio com prazo de validade até abril desse ano, e mantém parceria com a Rede Brasileira de Prostitutas, um comboio de mais de vinte associações de prostitutas que lutam pelo direito, cidadania, prevenção e saúde de quem vive do trabalho sexual. Bimestral, a publicação de doze páginas, tiragem de 7.500 exemplares e versão online (www.beijodarua.com.br) é, provavelmente, a única do gênero no mundo.

De perfil combativo, o veículo serve de voz das profissionais do sexo e escancara sem inibição sua vocação. O próximo número, por exemplo, será uma edição especial com 36 páginas e cheio de artigos polêmicos que abordarão um tema crítico para as mulheres da vida: a “limpeza urbana” associada a grandes eventos internacionais, como a Copa de 2014 e as Olímpiadas de 2016, que carregam com eles discursos alarmistas sobre tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, potencializando a repressão sobre esse tipo de comércio.

“Na Alemanha e na África do Sul, que abrigaram as duas últimas Copas, circulou o número mágico de que quarenta mil mulheres estrangeiras seriam levadas à força aos países para se prostituir. No entanto, nada disso se comprovou. Pelo contrário, as prostitutas identificaram estabilidade ou até queda nos programas, porque as despesas dos torcedores são bastante altas e muitos deles ainda estavam com suas próprias mulheres e famílias. E os homens desacompanhados estavam interessados mesmo era no futebol. Por que seria diferente no Brasil?, questionao editor do periódico Flavio Lenz, que esteve presente no I Encontro Nacional das Prostitutas, em 1987, no Rio de Janeiro, de onde saiu a proposta de criação de um veículo de comunicação que representasse a comunidade. “Naquela época a prostituição era discutida por médicos, psicólogos, assistentes sociais, sociólogos e outros acadêmicos, mas nunca por quem realmente vivia da profissão”, assinala ele.

Defesa das meretrizes. Ao longo de sua existência, o jornal passou pela fase do espanto generalizado das pessoas, sobreviveu à frustrada tentativa de venda em bancas, durante curto período chegou a captar alguma publicidade e nos últimos anos consolidou-se como símbolo da luta da categoria pela conscientização e regulamentação da atividade. Nesses 24 anos, o Beijo da rua trouxe notícias do setor, gerou matérias de serviço, publicou colunas e artigos assinados por quem é do ramo e cobriu eventos ligados à profissão. Em suas páginas, o ofício é tratado com dignidade e sem nenhum tipo de ranço. “Mesmo as fotos são mais discretas e comportadas comparadas às da Playboy”, brinca Lenz. Outro foco da publicação é servir de bunker das causas e reivindicações do movimento.

Em 1997, o veículo estampou a revolta da classe, que derrubou o atabalhoado projeto de cinco ONGs de rodar kombis pelas áreas de meretrício da Baixada Fluminense para coletar sangue das profissionais. “Era uma idéia que só piorava o estigma porque não oferecia o mesmo teste anti-HIV nas portas das empresas, por exemplo”, lembra o editor. “Além disso, há vários centros gratuitos de teste e aconselhamento”. Lucinha Araújo, mãe de Cazuza, e o ex-deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) chegaram a engrossar o cordão de defesa das meretrizes. Em 2003, a publicação abraçou uma campanha contra a Igreja Católica. Dias antes um bispo colombiano afirmara publicamente que todo preservativo continha orifícios por onde vazava o vírus da Aids. A edição não perdoou: imprimiu na capa a foto de uma camisinha com a frase “Pecado é não usar”.

Assuntos explosivos, aliás, costumam rechear o periódico. Em julho de 2002 (foto ao lado) a chamada da primeira página era uma pergunta provocativa: “Você já gozou?”. A reportagem destrinchava por meio de entrevistas, histórias e depoimentos o que fazia do sexo pago um bom ou mau programa, segundo clientela e profissionais. Cliente ruim é o sujeito que não paga o combinado ou quem não quer colocar preservativo? A boa prostituta é aquela que se apaixona?

Já em agosto do ano passado, a manchete “Pecado não é crime” repercutiu a decisão de um juiz fluminense de permitir o funcionamento de uma casa de prostituição em São Gonçalo (RJ), o que é vedado no Código Penal. André Luiz Nicolitt argumentou que “o moderno direito penal não pode considerar crime condutas que mais se aproximam do pecado, tampouco condutas socialmente aceitas”, acrescentando ainda não ter verificado “exploração sexual de criança ou adolescente nem aliciamento de trabalhadoras”. Na sentença, o juiz cita a ONG Davida e a grife Daspu (marca de roupas criada em 2005 para gerar visibilidade e recursos para a organização), “que lutam para o reconhecimento e melhoramento das condições de trabalho destas profissionais, o que encontra eco em princípios fundamentais da República, como a livre iniciativa e os valores sociais do trabalho”. A profissão mais antiga do mundo ganhou com essa decisão um aliado, amplificando a voz e a batalha das prostitutas pela regulamentação do seu trabalho. Hoje, o termo “profissionais do sexo” está incluído na Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho.

 

Crítica do espetáculo Filha, Mãe, Avó e Puta – uma Entrevista

A idealizadora do jornal Beijo da rua, da ONG Davida e da irreverente grife Daspu é a ex-prostituta Gabriela Leite, 60 anos, mundialmente reconhecida como uma das maiores lideranças em campanhas de luta pelos direitos humanos e de combate a Aids entre as mulheres que trabalham no ramo sexual. Sua história de vida incomum pode ser vista na singela peça Filha, Mãe, Avó e Puta – uma Entrevista, dirigida por Guilherme Leme, versão teatral para o livro homônimo escrito por ela. Na montagem, Gabriela é interpretada pela atriz Alexia Dechamps, que relata sua trajetória para um jornalista vivido pelo ator Louri Santos. Nascida uma família classe média paulistana, ela abandonou no final dos anos 1960 o trabalho de secretária e os cursos de Filosofia e Sociologia na Universidade de São Paulo para se dedicar à prostituição. Na década de 1970 mudou-se para Belo Horizonte e, após passagem pela capital mineira, desembarcou em 1982 no Rio de Janeiro, instalando-se na rua remanescente dazona do mangue, conhecida como Vila Mimosa. Foi ali, ainda como prostituta, que iniciou o trabalho de organização e conscientização da categoria, impulso exercitado desde o início da carreira em São Paulo, quando chegou a participar de uma passeata ao lado de artistas contra um delegado que sumia com prostitutas.

Sem resvalar na militância ou abrir-se para a rememoração fácil de episódios sexuais, mas sublinhando a prostituição como estilo de vida, o espetáculo extrai seu interesse dos inusitados relatos da protagonista, flagrada na idade atual. Convencional, linear e estruturada como se fosse um talk show, a montagem vale-se do trabalho dos intérpretes. Ambos não chegam a brilhar no palco, mas são convincentes em seus papéis. Mais importante que a performance, no entanto, é a história de viés humanista, com doses de drama e humor, que vai se configurando. Se o jornalista, em suas intervenções, recheia o enredo com dados e informações relevantes sobre a entrevistada, cabe a esta articular o discurso mais afetivo e de hálito folhetinesco. Mesmo que o espetáculo se ressinta às vezes de mais espontaneidade, em especial nos momentos em que a atriz busca emular gestos e tiques da retratada, a encenação acaba seduzindo pela riqueza do material exposto. No emocional desfecho, a personagem confessa o projeto de morar em uma cidadezinha do interior, mergulhada nos prazeres da culinária, ao lado do companheiro de vida, o jornalista Flávio Lenz.    

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )                                                       

(Foto: Janete Longo)

 

Avaliação: Bom

 

Filha, Mãe, Avó e Puta – uma Entrevista

Texto: Gabriela Leite                                                                                                                               

Adaptação: Marcia Zanelatto                                                                                                                                     

Direção: Guilherme Leite                                                                                                                               

Elenco: Alexia Dechamps e Louri Santos                                                                                                     

Estreou: 28/02/2012                                                                                                                                        

Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Álvares Penteado, 112, Centro. Fone: 3113-3651).  Terça a quinta, 20h. Ingresso: R$ 6. Até 19 de abril.

 

Veja cenas do espetáculo:

 

 

 

 

 

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