EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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3ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo

O evento, que aconteceu de 4 a 13 de março, reuniu oito espetáculos internacionais e dois brasileiros. Quatro montagens foram analisadas por este crítico:

 

(A)polônia

Indigesto em alguns momentos, excessivo em outros, mas desconcertante a maior parte do tempo. O diretor polonês Krzysztof Warlikowski propõe investigar a ideia do sacrifício que orienta a natureza humana e percorre a trajetória da humanidade. Para levar esta reflexão ao palco, ele se apropria de dois enredos da tragédia grega e de uma história real contemporânea. Aqui, estão entrelaçadas a trilogia Oresteia, de Ésquilo, Alceste, de Eurípedes, além da saga contemporânea de Apolônia Marczyńska.

A difícil montagem estabelece uma ligação conceitual entre sacrifícios místicos e um sacrifício da era moderna. Um sentido de suplício que une três mulheres, vítimas voluntárias ou forçosas de guerras, acordos infames e destino. Filha mais velha de Agamemnon e Clitemnestra, a áulica Ifigênia é enganada pelo pai e oferecida em martírio. Alceste concorda em morrer no lugar do marido Admeto, justamente no momento mais feliz da vida dele – ela chega a fazer elogios sobre os direitos dos animais durante a sua última ceia antes da morte. A terceira, Apolônia, é uma polonesa que deu a vida para salvar pelo menos 25 judeus durante a Segunda Guerra Mundial, aos escondê-los em sua casa.

A encenação de ares épicos cruza códigos e linguagens do cinema, teatro e concerto. Para dar materialidade a essa veemente meditação sobre penitências autoimpostas, o encenador promove uma miscelânea de estilos e gêneros. O que se vê é um amálgama de temas dramáticos com canções de rock executadas ao vivo, teatro de fantoches, discursos políticos, interrogatórios, projeção de imagens e atores seguidos de perto por uma câmera. Fábula, parábola, reportagens, cinema e novas mídias. Ingredientes trabalhados com graus de sátira e paródia, ambigüidades e culto às performances.

Uma estrutura que permite ainda a inserção de uma figura surreal de Heracles e a inclusão de textos como As Benevolentes, de Jonathan Littel, que serve ao falatório de Agamemnon, e A Vida dos Animais, conferência da romancista australiana Elizabeth Costello, personagem-título criada por J. M. Coetze – sua provocativa preleção resgata um conto de Kafka para abordar a crueldade com que são tratados os animais hoje em dia, e finaliza o raciocínio alertando que o Holocausto se renova a cada dia. Esta viagem pela ruína da história da humanidade transcorre em meio a uma cenografia crua e estilizada, que comporta até uma sala móvel. Pelo amplo espaço circulam atores de técnica irrepreensível, a quem são oferecidos vários momentos solos de intenso brilho.  

Atento e irrequieto, o diretor levanta mais perguntas do que respostas sobre a essência profunda do sacrifício, o direito de alguém decidir sobre a vida dos outros, o direito que temos de escolher nossas autoflagelações, culpas compartilhadas, as responsabilidades. Temas que, indiretamente, explicam a Polônia de antes e de agora. Nada como o universo da tragédia grega para reverberar tais questões, em seu mergulho nos conflitos que surgem entre o indivíduo e o poder que ele próprio criou. No instigante olhar de Warlikowski, milênios depois o homem ainda se deixa governar pela lógica da destruição.

(Edgar Olimpio de Souza)

(Foto Stefan Okolowicz)

 

Ça ira

Nenhum dos célebres revolucionários está presente em cena, como Robespierre, Saint-Just e Danton, apenas o monarca Luís XVI. Nesta montagem, pilotada pelo autor e diretor francês Joel Pommerat, em colaboração com a Compagnie Louis Brouillard, a intenção não é a personalização. O propósito é iluminar o pensamento político e mergulhar o público no âmago das discussões políticas e filosóficas que atiçaram a Revolução Francesa e fizeram eclodir o liberalismo e a democracia moderna, regada a princípios de liberdade, fraternidade e igualdade.

Trata-se de uma montagem poderosa e vulcânica, que o espectador acompanha de maneira compenetrada, mesmo submetido a quase cinco horas de encenação, distribuída ao longo de três atos. A prolongada jornada e a verborragia não servem de barreira para a compreensão do que está em jogo. Estruturada em rígidas classes sociais, a sociedade francesa da segunda metade do século 18 era composta pelo clero e a nobreza, isentos do pagamento de impostos e com poderes adquiridos para exercer cargos públicos, além do chamado Terceiro Estado, um segmento encorpado por comerciantes, camponeses, artesãos e profissionais liberais. Tributada e sem acesso a pensões governamentais, esta parcela da população revelava-se à época firmemente disposta a combater o absolutismo monárquico, os privilégios da aristocracia e da igreja e exigir um novo sistema de direitos para os cidadãos. O estopim para o recrudescimento do movimento reivindicatório ganhou força a partir de mais um pronunciamento do primeiro ministro francês, que defendia o aumento das receitas do Estado via cobrança de mais tributos. Do alto de seu poder, Luís XVI adquiria cada vez mais o perfil de uma figura flácida, consumida pela falta de ardor para salvaguardar a monarquia.

As peças do tabuleiro estão dadas. Pommerat escancara os mecanismos que regem a política, a efervescência dos intermináveis debates, os impasses construídos e as diferentes perspectivas ideológicas dos homens do poder. Na representação, os discursos tipicamente conservadores são proferidos pelos personagens que circulam à direita do palco e os de teor progressista pontificam ao lado contrário. É a famosa divisão esquerda-direita que a Revolução Francesa legou à cultura política contemporânea.  O espetáculo desnuda esse mundo tingido pela distinção de classes, regalias de uns e discriminação de outros, que, aos poucos, vai se esfarelando. A representação é prodigiosa, evolui de forma ágil e articulada, quase sem fôlego, fustigada por falas cortantes e situações de tensão à flor da pele.

Palco e platéia viram um único lugar, configurando-se uma assembléia, com a ruptura intencional da quarta parede. Alguns atores se levantam das poltronas da sala para falar ou para subir ao palco, outros permanecem nos corredores. Convenções teatrais são solenemente violadas. Nesse parlamento ficcional, aplausos, vaias e insultos rasgam a atmosfera. Por vezes, o coral polifônico de conservadores, moderados ou radicais descamba para agressões físicas e a tentativa de se impor pelo grito.

Daí não ser difícil o exercício de enxergar um vaso comunicante entre os episódios de 1789 expostos na peça e o mundo de hoje, sacudido há pouco por primaveras revolucionárias na Europa e África. Esperto, Pommerat evita martelar os paralelismos entre passado e presente - ironicamente, ele faz um personagem tirar selfie com o rei Luís XVI.  Nesta montagem fascinante e aterrorizante, o encenador lança um olhar inquieto sobre o homem e seus anseios, dúvidas, vaidades e contradições. Mais especificamente, sobre a natureza humana e sua eterna disputa pelo poder.

(Edgar Olimpio de Souza)

(Foto: Elisabeth Carecchio)

 

Cinderela

Uma releitura contemporânea de um dos personagens mais conhecidos dos contos de fadas. Aqui, o autor e diretor francês Joel Pommerat transforma o enredo criado pelos Irmãos Grimm em uma história de contornos psicanalíticos e atmosfera sombria. A protagonista é uma moça abatida pelo falecimento da mãe, inconformada por não ter compreendido as últimas palavras sussurradas por ela ainda no leito de morte. No entanto, está convencida de que a genitora lhe pediu para que pensasse nela permanentemente, como uma tentativa de eternizá-la no mundo dos vivos. Por conta disso, um alarme soa a cada cinco minutos para relembrá-la da mãe morta. No conto original, a figura materna era rapidamente proscrita.

Na atrevida revisão de Pommerat, uma determinada e enlutada Cinderela precisa lidar com seus sentimentos de tristeza e culpa e aprender a se virar em um ambiente nada fantasioso, bem diferente do universo mágico das narrativas infantis. Em sua aventura, não pode contar com o pai, criatura apática e frágil, tampouco com a patética madrasta e duas meninas desagradáveis. Estamos diante de um doloroso rito de passagem, momento em que ela busca conquistar autonomia, autoconfiança e independência em meio às inseguranças naturais da idade. É uma convenção típica de contos de fadas, mas Pommerat a reveste com ironias, sarcasmos e dose de cinismo. Ao mesmo tempo em que expõe a tragédia da infância, mostra que no domínio adulto os dramas da vida continuam. Eventualmente a cena é cortada pela presença de um narrador, que se comunica em linguagem de sinais e gestos e funciona como elemento de transição entre a realidade e o sonho.

Pommerat domina toda a linguagem teatral, valendo-se de uma cenografia simples e belos efeitos visuais, de tons oníricos, extraindo nuances e espessuras dos diversos personagens. Convincente, o elenco se desdobra em vários papéis. O público é surpreendido pela transfiguração do conto original. Cinderela, aqui chamada de Sandra, não se revolta, por exemplo, em assumir tarefas domésticas e dormir num quarto sem janelas. Nem se abala ao receber o apelido de Cinzeiro e ser visitada por uma fada com sérias dificuldades em promover feitiços. O encenador desmonta qualquer forma de idealismo. A jornada da heroína não é idílica. Até um número de dança, um dueto envolvendo ela e o príncipe, ganha o sentido da exaltação do corpo e não do amor. O espetáculo transpira uma poesia áspera, severa, quase melancólica. Simultaneamente, promove uma incômoda reconfiguração da fábula atenta à realidade atual.

(Edgar Olimpio de Souza)

(Foto Cici Olsson)

 

Still Life (Natureza-Morta)

Um dos pilares da dança contemporânea grega, Dimitris Papaioannou desenvolve no palco uma alegoria do absurdo. No espetáculo, de beleza geométrica e imagens conceituais, personagens empreendem luta humana incansável e irracional. O mecanismo de repetição e de imitação, retratada por meio de ações ilógicas e disparatadas, lembra algumas criaturas de Samuel Beckett, perdidas em tarefas insensatas. O ponto de partida da montagem é uma recriação contemporânea do mito de Sísifo, o herói condenado pelos deuses a repetir sempre a mesma missão - empurrar uma pedra até o topo de uma montanha e, lá chegando, observá-la rolar montanha abaixo até o ponto inicial, invalidando todo o esforço realizado. Na montagem, a vida humana é retratada como um amontoado de seres aprisionados em uma reiteração infinita. Tão igual que parece nunca mudar. Como uma natureza morta.

Sob uma bolha que emula a lua, os personagens repetem estas desesperadas ações contínuas. Um homem carrega sofregamente nas costas um muro de pedras em decomposição. Com o objetivo de atravessá-la, ele a perfura em seu centro, enquanto outra pessoa, postada atrás dessa muralha, desliza braços e pernas pela mesma abertura. Forma-se um jogo de equilíbrios e desequilíbrios. Tal operação produz uma figura grotesca e surreal, composta por membros de dois atores. Em sequência posterior, um homem sacode um painel de plástico flexível que está à frente de uma mulher – o procedimento distorce e deforma a imagem feminina. Mais adiante, um grupo se envolve na exaustiva empreitada de arrancar fitas coladas no chão. Por fim, a bolha que parece se desgrudar do teto é açoitada por golpes de pás. Por vezes, um personagem caminha pelos corredores do teatro observando as ações que acontecem no palco.

Tudo isso transcorre em movimentos lentos e contemplativos, embalados em atmosfera sufocante, de grandes efeitos dramáticos e poéticos. Camadas de significados são desembrulhadas e cabe ao público o papel de construir mentalmente uma narrativa. Uma das chaves para compreender o espetáculo passa por uma leitura política. Papaioannou materializa uma visão sombria do capitalismo, em especial, da grave situação a qual a Grécia está inserida. Ou talvez ele queira exibir seres que foram expulsos do paraíso. Quem sabe ainda, uma reflexão desconfortável sobre a paradoxal condição humana. A do homem que, influenciado pela religião ou sistema capitalista de produção, segue sua vida sem um sentido próprio. O diretor transforma o banal em poesia.   

(Edgar Olimpio de Souza)

(Foto Julian Mommert)

Consertando Frank

Em princípio, o que parece ser uma típica sessão de terapia logo se desfaz. O suposto paciente Frank é, na verdade, um jornalista que finge estar precisando de ajuda porque anda incomodado com sua identidade sexual. Cansado de escrever sobre assuntos desimportantes, ele quer enveredar pela reportagem investigativa. Vislumbra a oportunidade de assinar a matéria da sua vida nesses encontros com o psicólogo Arthur Apsey, conhecido por ter criado um método terapêutico de reversão da homossexualidade. Quem persuadiu o repórter a assumir o disfarce é o seu namorado, também terapeuta, que o treinou para não levantar suspeitas. Jonathan Baldwin armou a cilada porque está firmemente disposto a destruir a reputação do colega. Ele se tornou ativista gay, tem recebido pacientes egressos do tratamento da nova celebridade e quer expô-lo como charlatão.  

A grande sacada do texto do dramaturgo americano Ken Hanes, em montagem pontiaguda de Marco Antônio Pâmio, não é abordar o tema da restituição da heterossexualidade. Aliás, esta proposta bizarra eventualmente freqüenta a mídia por conta de projetos de leis dessa natureza e do proselitismo em torno da opção sexual empunhado por certas correntes religiosas. O motor da discussão aqui é o poder da manipulação e o seu condão de erodir crenças e minar a confiança pessoal. Tanto que o autor nem se preocupa em fornecer muitas explicações sobre a suposta cura gay.

O texto esfrega um inteligente e instigante jogo mental entre os três personagens, pincelado por tintas dramáticas. A tensão não se origina da ação, mas do conflito de personalidades e dos diálogos. Não demora e o espectador atento irá perceber a lógica cruel que move a história, a de que Frank não passa de um peão nas mãos de dois psicólogos hábeis na arte do controle. Sem habilidade para mentir, indefeso e debilitado emocionalmente, ele começa a desacreditar de si mesmo, questionar o seu projeto profissional, duvidar de seu relacionamento amoroso, balançar sobre sua sexualidade e identidade. “Ele nunca te disse que roubar meus clientes é seu passatempo preferido?”, cutuca Apsey, capaz de explorar sutilmente a confusão do jornalista, cada vez mais sem chão e flagrado em mentiras e enganos. Aos poucos, e na iminência de explodir, o repórter se torna realmente um paciente e não mais alguém disfarçado, implodindo os planos do namorado. Em certo momento, Baldwin alerta Frank que Apsey é tão ardiloso que pode envenenar a sua mente a ponto de induzi-lo até a esquecer que tem um pênis e o que gosta de fazer com ele.

A sugestiva e detalhista direção de Pâmio instaura dinamismo a uma montagem apoiada em palavras e não na movimentação física. Tudo acontece em apenas dois espaços, o consultório e o quarto do casal. Como as espertas e precisas marcações funcionam plenamente, a coreografia de movimentos soa natural e evita que o espetáculo se torne maçante. O controle de qualidade do diretor é elevado. O trio de atores nunca sai do palco, como previsto no texto, o que adiciona níveis de ansiedade e nervosismo ao enredo. As mudanças de ambiente e do registro de emoções se dão por meio da linguagem corporal, das expressões faciais, de pontuais mexidas nos objetos cênicos. As idas e vindas de um local para outro são executadas com maestria, de modo que uma conversa de Frank e seu namorado, por exemplo, se torne parte do diálogo entre o jornalista e Apsey. Da mesma forma que Baldwin, sem estar fisicamente presente nas sessões, se encontra simbolicamente ali transmitindo instruções ao companheiro ou reagindo frente às maquinações do rival.

O vocabulário estético exercitado acaba sendo um estímulo para o trabalho do elenco, que atua em perfeita harmonia. Henrique Schafer explora seus amplos recursos técnicos, emprestando máscara corrosiva e um incômodo sorriso ao discreto e matreiro terapeuta Apsey. No papel do desorientado Frank, o ator Chico Carvalho é uma fonte de energia no palco. Além de dominar suas cenas, ele projeta um desempenho intenso e permeado de matizes. Rubens Caribé interpreta Baldwin com segurança, dando credibilidade a um personagem vaidoso e hipócrita. Basicamente, a peça desnuda o exercício tirânico da manipulação, escancara a arrogância e a impostura do ser humano e mostra como as identidades são construídas a partir do olhar do outro. O texto sublinha que é pouco sábio subestimar a ascendência das palavras, muitas vezes mais letais que uma terapia de choque.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Heloísa Bortz)

 

Avaliação: Ótimo

 

Consertando Frank

Texto: Ken Hanes

Direção: Marco Antônio Pâmio

Elenco: Henrique Schafer, Rubens Caribé e Chico Carvalho

Estreou: 07/03/2015

Teatro Mube (Rua Alemanha 221, Jardim Europa Fone: 2386-8194). Sábado, 19h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 50. Até 13 de março.

 

 

Tudo no Seu Tempo

Na dramaturgia de Alan Ayckbourn, nada é o que parece ser. Nesta engenhosa trama escrita em 1994, o dramaturgo inglês brinca com o fetiche de que podemos alterar o destino, reescrever o passado, até mesmo reverter assassinatos, como no caso aqui. Assinada por Eduardo Muniz, a montagem se vale do registro da comédia policial para ensejar uma reflexão sobre a passagem do tempo, as memórias residuais, de como a nossa vida poderia ter seguido outro rumo se tivéssemos a oportunidade de corrigir alguns acontecimentos.  

A ação começa no futuro, em 2036, com a chegada de uma dominatrix à suíte de um hotel refinado, onde um velho, adoentado e corrupto magnata está hospedado. Na contramão do que se imagina, Rubens (Joca Andreazza) não contratou os serviços de Kelly (Cynthia Falabella) para vivenciar experiências sadomasoquistas. Sua intenção é a de que a garota assine, como testemunha, uma confissão que ele havia redigido. O explosivo documento relata suas falcatruas comerciais e revela como suas duas primeiras esposas foram assassinadas ao seu mando. Estamos diante de uma situação absolutamente inusitada, agravada pela presença ameaçadora do capanga Juliano (Gustavo Trestini), com a clara intenção de fazer a garota de programa sumir também. Apavorada, ela consegue escapar pela porta de uma sala adjacente e, surpreendentemente, acaba no mesmo quarto, mas em 2016, agora ocupado pela segunda mulher do empresário. Em estado de choque, tenta avisá-la do risco que ela corre de ser morta. Pelo mesmo dispositivo mágico, e transbordando para a mesma suíte, Wanda (Fernanda Couto) retorna vinte anos antes, em 1996, para entregar conselho semelhante à sua antecessora, Jéssica (Bete Correia), que se encontra em plena noite de núpcias com o mau-caráter Rubens.

Fica-se sabendo que nem todos são transportados e tampouco para a mesma época. O mote do trânsito entre presente, passado e futuro faz eclodir uma série de embaraços embalada em ritmo acelerado de suspense. Por meio desse artifício, Ayckbourn tece homenagem carinhosa ao cinema noir, com suas mulheres fortes, ao clássico Psicose, de Alfred Hitchcock, ao materializar em cena o espectro da mãe de um dos personagens, e à ficção científica juvenil De Volta ao Futuro, de Robert Zemeckis, notabilizada por tratar do tema da viagem no tempo. Sem aprofundar-se, o autor chega a produzir um irônico comentário político, ao retratar 2036 como um tempo marcado por uma guerra civil – ruídos de bombas e tiros são ouvidos do lado externo do hotel. 

A direção se safa com méritos da tarefa de atribuir consistência ao jogo, dividido em três períodos distintos. As situações são encadeadas sem atropelos e o thriller policial cômico adquire tessitura conforme a ação avança. Mesmo com duração um pouco além do desejável, Muniz nunca deixa que a pulsação do ritmo se afrouxe. A encenação é dinâmica o suficiente para que o espectador mergulhe no que transcorre no palco e acompanhe com interesse todas as voltas e reviravoltas. Tudo parece muito natural, até mesmo o fato de que a decoração interna da suíte permanece inalterada ao longo de quatro décadas. É uma direção com marcações simples, sem excessos, que privilegia a proposta do faz de conta, sublinha as mudanças comportamentais dos personagens e funciona como um típico vaudeville.

Na função de protagonistas, as três atrizes entregam performances sinceras e trabalham no registro espirituoso. São criaturas femininas de vida radicalmente opostas que, de repente, se tornam dependentes uma das outras. Por interesse mútuo, elas se unem para ludibriar o psicopata e salvar-se, evitando suas sinas terríveis. Cynthia Falabella mostra-se convincente e emana afabilidade na pele da atraente e vulnerável prostituta, que chega a perder a inocência do início e se tornar comovente conforme a proximidade do desfecho. Com persuasiva presença cênica, Fernanda Couto incorpora Wanda, típica burguesa impaciente, que também adquire contornos de heroína após sentir na pele o pânico da morte anunciada. Ela é responsável por uma das frases mais hilárias do espetáculo, ao afirmar que nenhuma mulher em sã consciência deseja revisitar sua lua de mel. Na composição da doce e gentil Jéssica, a atriz Bete Correa imprime credibilidade a uma figura que descobre, perplexa, a demolição de suas expectativas amorosas. 

O conjunto masculino desembala rendimento seguro. Ator firme e virtuoso, Joca Andreazza interpreta Rubens, o homem de negócios com má consciência. Júlio, o sinistro jagunço, é vivido sem estereótipo por Gustavo Trestini. O desnorteado segurança Haroldo, que envelhece com o sonho de comprar um iate, ganha corpo na interpretação trovejante de Edu Guimarães. Com entradas pontuais, o ator transforma o funcionário do hotel em um sujeito adorável. Em cena desconcertante, ele flagra uma situação que lembra uma bizarra atividade sexual. A equipe técnica se encaixa na proposta da encenação. Luz e figurinos de Alice Alves são adequadose o cenário imóvel de Chris Aizner busca demarcar as diferenças temporais recorrendo a pequenas intervenções. A trilha sonora de Daniel Maia pontua o suspense, sem intrometer-se em demasia.

Trata-se de uma peça em que as artimanhas da trama disfarçam certo acanhamento emocional observado nos personagens. Um entrave, diga-se, que não obscurece um texto concebido para entreter a partir da curiosidade despertada por um enredo insólito e fantástico. Diferentemente de outras obras de sua autoria, Ayckbourn foge das comédias realistas suburbanas e da abordagem pessimista da raça humana. O dramaturgo investe em uma intriga sem lógica alguma, ancorada por mulheres decididas e homens inescrupulosos ou tolos. Bastante teatral, é uma fábula que sugere que alterar o passado pode até não mudar a história, mas cria uma deliciosa realidade paralela.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Lígia Jardim)

 

Avaliação: Bom

 

Tudo no Seu Tempo

Texto: Alan Ayckbourn

Direção: Eduardo Muniz

Elenco: Cynthia Falabella, Joca Andreazza, Fernanda Couto, Gustavo Trestini, Bete Correia e Edu Guimarães.

Estreou: 24/01/2016

Teatro Jaraguá (Rua Martins Fontes, 71, Bela Vista. Fone: 3255-4380). Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 50. Até 20 de março.

Dez Encontros

Fulano dorme com sicrana, que deita com beltrano e assim por diante, até que a última pessoa transa com a primeira, unindo as pontas da ciranda sexual. Cercada de controvérsias em sua estréia em 1921, La Ronde, peça do médico e dramaturgo austríaco Arthur Schnitzler (1862-1931), tecia um retrato cínico do amor como uma corrida de revezamento erótico em uma decadente Viena. À solidão e o vazio dos compromissos amorosos somava-se ainda o tráfego da sífilis entre os parceiros da roda. Não bastasse, ainda vazava um comentário social nada condescendente sobre as parasitárias castas vienenses daquele período.

Se o texto de Schnitzler incomodou o público da ocasião, esta livre versão do autor inglês David Hare, escrita em 1997, não tem o condão de provocar polêmica. A releitura perdeu contundência por conta das revoluções sexuais e sociais que varreram especialmente a segunda metade do século passado. Mesmo com a atualização de alguns personagens - o soldado virou motorista de táxi, por exemplo –, a manutenção de parte dos diálogos originais e a adição de novas falas, Hare trava na dificuldade de transcender a dinâmica dos novos tempos. Soa até incomum quando alguém, em certa passagem, discursa sobre a existência de dois tipos de mulheres, num rasgo de machismo primário.    

A peça, que recebeu montagem de título dúbio assinada por Isser Korik, dá vida a homens e mulheres que interagem por meio de seus relacionamentos afetivos. Ninguém é fiel. Algumas relações são fugazes, outras estão prosperando ou desmoronando, todas exalam níveis variados de tensão. Os encontros não oferecem grandes surpresas dramáticas, acontecem em diversos lugares e posições e culminam com a percepção de que a satisfação é uma recompensa tão efêmera quanto ilusória - parece ser mais fácil se despir do que se desnudar emocionalmente. Há um toque espirituoso na voz em off que relata a duração de cada ato sexual. Elementar paródia de que o sexo, na hedonista sociedade de hoje, não passaria de uma atividade mecânica e não necessariamente agradável.

Com uma estrutura dramatúrgica rígida, com apenas dois atores que precisam dar conta de todos os personagens, a montagem se aprisiona ao fluxo lento e repetitivo do texto. Até porque a ação física é substituída pela overdose de diálogos. Eles e elas conversam bastante e o que dizem têm mais importância do que o que fazem. A direção enfrenta o desafio de lidar com dez quadros completamente diferentes, as trocas necessárias de figurinos e adereços e as mudanças de mobiliário, efetuadas pelos contrarregras em cenas teatralizadas. Muitos ambientes previstos requerem cenografia compatível – um banco na rua, onde uma prostituta aborda um motorista de táxi, o quarto, no qual político e sua esposa discutem a experiência real do casamento, um camarim de teatro, espaço em que a atriz recebe o amante magnata. Trata-se de um conjunto de embaraços e inevitabilidades que acaba por interferir na fluidez da trama, refém de uma espécie de gangorra dramática de permanentes começos e recomeços. O diretor não cruza a linha convencional e opta por respeitar a previsível narrativa do autor.

André Garolli e Tania Khalill exibem entrosamento no palco e incorporam com entusiasmo as múltiplas figuras do jogo. Ambos deslizam confortavelmente a personalidade, o caráter e a dicção de seus personagens. A atriz mostra agilidade, nunca se esbalda no exibicionismo ou revela pruridos por conta dos trajes justíssimos em várias sequências. Projeta veia cômica quando, na pele da modelo, confessa ao amante que não sabe bem o que ele está fazendo para estimulá-la sexualmente. O ator compõe com vivacidade homens pilhados em atitudes insensatas. Um deles, um afetado dramaturgo, está aturdido pela descoberta de que sua companheira na cama não tem a menor ideia de quem ele seja. Em outra cena bem humorada, o personagem da vez abusa de comprimidos e chega a alterar o seu comportamento. 

Cotejado ao de Schnitzler, o relativo desbotamento do texto de Hare não elimina o fato de que este funciona como recorte de uma época em que o prazer sexual é quase uma utopia, uma busca fadada à desilusão. Uma caçada sem vitória porque quanto mais sexo se faz, mais sozinho e confuso se fica. Nessa peça, talvez um dos momentos mais nevrálgicos reside num diálogo em que um amante desfia ao outro: "Você acha que qualquer um de nós é sempre uma só pessoa? Com uma pessoa somos uma pessoa, e com outra nós somos outra". Se o espetáculo sopra certa monotonia, vale por iluminar a desumanização que cerca os encontros sexuais em uma sociedade que transformou a intimidade física em mercadoria de consumo. Aqui, mais do que exalar poder, o sexo indica fragilidade.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Bom

 

Dez Encontros

Texto: David Hare

Direção: Isser Korik

Elenco: André Garolli e Tania Khalill

Estreou: 09/01/2015

Teatro Folha (Pátio Higienópolis. Avenida Higienópolis, 618, Higienópolis. Fone: 3823-2323). Quarta e quinta, 21h. Ingresso: R$ 20. Em cartaz até 31 de março.   

Oleanna

Uma estudante, que empreendeu esforços para conquistar vaga na universidade, sente dificuldades para assimilar as aulas. Por conta disso, corre o risco de ser reprovada e ter de abandonar os estudos. Como precisa desesperadamente passar de ano, ela se dirige à sala do professor de uma disciplina na qual vai mal para confrontá-lo pela nota baixa recebida no último trabalho. Ele fica visivelmente contrariado com a inoportuna visita. A partir daí começa uma conversa anárquica, que será truncada por telefonemas cada vez mais inadiáveis porque o docente anda preocupado com a sua iminente promoção e a nova casa que está negociando. Com alguma relutância, decide ajudá-la.

Trata-se da primeira das três cenas que compõem o enredo, todas ambientadas no mesmo local em tempos distintos. Estamos no início de uma peça do dramaturgo americano David Mamet, montada pela companhia Epigenia, sob direção de Gustavo Paso. O título faz referência a uma canção folclórica norueguesa sobre uma utópica comunidade do século XIX fundada pelo violinista norueguês Ole Bull e a sua mulher Anna - daí o nome Oleanna. Projetada para ser um paraíso campestre, a terra revelou-se inadequada para a agricultura e o sonho do santuário evaporou-se.

O que o autor deixa entrever é a correspondência invertida que existiria entre esta idealizada comunidade no passado e a sociedade individualista de hoje, onde as pessoas preferem telefonar para seus advogados no lugar de arriscarem uma comunicação humana. Ou seja, aquilo que se mirou não foi o que efetivamente se alcançou. É nesse mundo de utopias despedaçadas e comunicabilidade seccionada que o autor buscou oxigênio para criar a trama, inspirada em uma história real ocorrida em solo americano. No caso, a confusão envolvendo o juiz Clarence Thomas que, indicado para integrar a Corte Suprema americana pelo então presidente da República, George Bush, acabou acusado de assédio sexual pela ex-aluna Anita Hill.

Mamet coloca em cena o mestre e a pupila em uma luta verbal sem pausas, riscada por tensão sexual. Com diálogos rápidos, abundantes em emoção e raciocínio, aos poucos o encontro entre os dois personagens ganha feições de um violento confronto de ideias sobre a função do ensino, o lugar do indivíduo na coletividade, as relações entre os sexos e os limites da liberdade de cada um. Constrói-se uma longa conversa, moldada pelo entendimento de que nos tempos atuais toda interlocução é potencialmente temerária. A discussão adquire mais toxicidade ainda porque eles estão mergulhados em suas próprias neuroses e empenhados em suas agendas pessoais, a ponto de um não ouvir o que o outro está dizendo. Basicamente, eles não pensam antes de falar.

O texto desdobra duas verdades em fricção na arena. Por meio das palavras, professor e aluna travam um perigoso exercício de disputa pelo poder, ambos se revezando nas posições de controle e coação. A situação é agravada pelo fato de que ele se comprometeu a dar-lhe nota dez se ela se dispusesse a ter aulas fora do expediente, numa transgressão aos limites das habituais regras universitárias.

A linguagem é dura, crua e ríspida. Daí não ser tão estranho assim que o jogo de insinuações e acusações descambe para a violência verbal e finalmente física.  O progressivo colapso físico e psicológico do educador será acompanhado da lenta transformação da aparente figura inofensiva e débil da educanda. De forma tortuosa, ela irá acusá-lo de assédio sexual. A dúvida sobre o real comportamento de cada um, aquilo que não se vê por trás das máscaras, é um dos pontos de interesse do espetáculo. Ele estaria cercando sexualmente sua aluna ou puramente tentando assisti-la? Ela procura seriamente ajuda ou deseja comprometê-lo por nutrir algum tipo de ressentimento?

O diretor Gustavo Paso conduz o drama exposto mantendo incandescente a sua temperatura emocional. O ritmo da encenação é veloz, em que pese a pouca movimentação cênica. Simples e elegante, a encenação cristaliza marcações que facilitam a troca de posições dos atores no palco. O papel de professor é interpretado em duas versões, a masculina e a feminina. O encenador pretendeu descaracterizar as relações de dominação como uma questão de gênero. Uma concepção que funciona satisfatoriamente e potencializa a teatralidade, na medida em que promove uma leitura mais abrangente da natureza humana. Há ainda uma terceira opção, que junta ator (*Marcos Breda) e atriz (Miwa Yanagizawa) como mestres, os dois simbolizando a instituição de ensino como antagonista da aluna.

Em atuação convincente, irrigada por certa afetação e estudada afabilidade, Breda desenha com nitidez o comportamento impreciso do professor, um sujeito que desvia o olhar do interlocutor, cultiva noção de superioridade e exerce um tipo imponente de paternalismo. Repentinamente surpreendido pela reviravolta dos acontecimentos, que o faz perder o comando da situação, se afogará na indignação, rancor e repulsa. No mesmo papel, que nesta segunda leitura virou uma professora homossexual, Miwa Yanagizawa inocula aspereza maior à personagem, tornando-a menos acessível e mais impaciente. Sua empáfia também irá soçobrar em meio às transformações em curso.

Luciana Fávero expressa com naturalidade, no início, a atitude hesitante da aluna que, aos poucos, em transição cheia de semitons, evolui para uma conduta perversa e extorsiva. A atriz desata um desempenho vigoroso, que não escapa para a caricatura e produz desconforto pela forma como a estudante deturpa o sentido do que o mestre diz.

Mais do que evocar questões oportunas acerca do sistema educativo, tratar das distorções e exageros da cultura do politicamente correto, abordar o explosivo tema do assédio sexual, dissecar a ética e, até mesmo, reproduzir veladamente uma luta de classes, a peça é essencialmente um tratado a respeito da comunicação, da manipulação das palavras e as motivações impuras por trás dos discursos. Mamet escancara uma tragédia sobre o poder e a linguagem que se usa para subjugar ou eliminar o outro.

* Nessa atual temporada substituído pelo ator Fernando Vieira.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )   

(Foto Monica Vilela)

 

Avaliação: Ótimo

 

Oleanna

Texto: David Mamet

Direção: Gustavo Paso

Elenco: Luciana Fávero, Marcos Breda (dias 26, 27 e 28/06) e Miwa Yanagizawa (dias 19, 20 e 21/06). Com os dois atores juntos: 3, 4 e 5/07

Estreou: 30/05/2015

Teatro Eva Herz (Livraria Cultura. Avenida Paulista, 2.073. Fone: 3170-4059). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. R$ 50. Até 13 de dezembro.

 

Tribos

A família classe média retratada neste texto da dramaturga inglesa Nina Raine enfrenta sérios problemas de comunicação. O pai, Christopher, está pouco disposto a ouvir os outros. Beth, a mãe, parece só ter ouvidos para o romance que anda escrevendo. A filha, Ruth, não encontra sua voz como artista. Seu irmão, Daniel, ouve vozes que ninguém mais pode ouvir. O caçula Billy é surdo desde o nascimento e foi educado na arte da leitura labial. O que reina nesse ambiente é a pura cacofonia. No estridente e ruidoso jantar em torno de uma enorme mesa, que abre o espetáculo, ironias, insultos, cobranças e até amabilidades compõem o cardápio. O passatempo velado parece ser discutir à beira da explosão, um se sobrepondo ao outro, todos falando ao mesmo tempo. O público, que sente dificuldades em acompanhar aquela anarquia verbal, parece ansiar por momentos de silêncio, algum tipo de trégua.

O perfil disfuncional desse núcleo familiar, na eficiente e equilibrada montagem assinada pelo diretor Ulysses Cruz, é apresentado como um pequeno universo onde o diálogo é rarefeito, a linguagem é uma arma e se luta ferozmente por atenção. Ouvir e ser ouvido acabam se tornando um esforço doloroso para todos os personagens, uma prática literalmente vilipendiada. Não à toa alguém chega a perguntar por que ali ninguém fala sem gritar.  O provocativo e inteligente texto de Nina Raine é um olhar implacável, comovente e bem humorado sobre as diferentes formas de não ouvir além da surdez como, por exemplo, interpretar mal o que o interlocutor diz, escolher o que se quer ouvir ou se revelar surdo às necessidades dos outros. A peça pode ser vista também como uma poderosa metáfora para a natureza corrompida dos laços afetivos e familiares.

Basta observar o comportamento do clã doméstico. Christopher, ex-acadêmico que adora exibir suas virtudes intelectuais, é um sujeito intolerante que denigre constantemente sua esposa. Com forte presença cênica, o ator Antonio Fagundes imprime ao personagem decibéis de teimosia exasperante ao insistir que Billy deve ser tratado exatamente como qualquer outra pessoa normal e não como um deficiente. Em sua ótica, se o filho aprendesse a linguagem de sinais equivaleria a uma admissão de derrota. Amparada em performance convincente, Eliete Cigarini insufla Beth com a determinação de uma escritora que, mesmo atormentada por bloqueio criativo, não desiste de escrever um romance policial. O tema é a dissolução de uma família com disfunção notória e ela ainda não definiu ainda quem cometeu o assassinato.    

Os três filhos moram em casa e não trabalham. Na pele da evasiva Ruth, a atriz Maíra Dvorek desenha essa aspirante à cantora de ópera, que se apresenta em bares e pubs, como uma mulher perdida, sem planos claros, fracassada até no amor. Com veracidade, Guilherme Magon incorpora Daniel, um estudante de pós-graduação empenhado em desenvolver tese sobre as limitações da linguagem. Recuperando-se de um amor falido, ele é flagelado pela gagueira e por alucinações auditivas. Atento à sensibilidade exigida pelo papel, Bruno Fagundes dá vida ao surdo Billy, o filho quieto e excluído criado como se não tivesse tal deficiência. Ele luta para ganhar independência, identidade e uma voz. Cansou de ser tratado como eterna criança e quer ser visto como o adulto que se tornou. É um desafio difícil porque o ator, além de projetar camadas de emoção, precisa se comunicar usando, de forma desengonçada, as palavras que aprendeu sem ouvi-las.

A trama é impulsionada quando Billy conhece Sylvia, que tem pais surdos e está prestes a perder por completo a audição. Arieta Correa interpreta essa figura de presença ameaçadora, que irá adestrá-lo na linguagem dos surdos, atear um barril de pólvora de ressentimentos e ciúmes e desconstruir a arquitetura de comunicação vigente naquela casa. Seu desempenho intenso é temperado com nacos de sutileza – a personagem está dividida entre o novo romance e a agonia de lidar com a transição entre a palavra falada e a linguagem de sinais, o que a fará perder, por exemplo, a condição de desfrutar música clássica, uma de suas paixões.   

Ousado, mordaz e emprenhado de polêmicas politicamente incorretas, o espetáculo fisga o espectador pelo fino equilíbrio entre o sutil e o selvagem, o caos e a serenidade. A frugal direção, na contramão de malabarismos cênicos, articula com precisão os diversos jogos dramáticos. Nenhum aspecto é supervalorizado, todos têm a mesma importância na trama. A montagem se vale de um elenco sintonizado às complexidades de um texto que evolui à mercê das variações emocionais, algumas vezes desconcertantes, dos personagens. Para amplificar os sentidos, e esclarecer determinados diálogos, são utilizadas projeções de falas ao fundo palco, como legendas de um filme, para criar a sensação de como é viver nesse estado, gerar um subtexto ou traduzir pensamentos. A cenografia de Lu Bueno, configurada por um piano de caudas, mesa e cadeiras refinadas, a iluminação de Domingos Quintiliano e os figurinos de Alexandre Herchcovitch valorizam o estilo conciso e regulado da encenação. A música de André Abujamra pontua as idiossincrasias dos personagens.

Trata-se de um espetáculo que, por conter conflitos individuais devastadores, produz riso amargo. Não deixa de ser incômodo acompanhar, por exemplo, os contrastes e paradoxos manipulados pela autora – enquanto Sylvia se encontra na iminência de perder a voz, Billy está finalmente encontrando a sua, Christopher quer impor a sua voz e Daniel não consegue silenciar as vozes que o aturdem. Ainda que o texto apresse os passos para o desfecho, as entrelinhas garantem o seu interesse permanente. No mundo de hoje, efetivamente, existem pessoas que não querem ouvir. Ou que não conseguem ajustar sua própria voz com a de outro, tanto no âmbito da intimidade quanto na esfera social. A peça demarca que, muitas vezes, o significado não está no que é falado, mas naquilo que não está dito.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto: Jairo Goldflus)

 

Avaliação: Ótimo

 

Tribos

Texto: Nina Raine

Direção: Ulysses Cruz

Elenco: Antonio Fagundes, Bruno Fagundes, Arieta Correa, Guilherme Magon, Maíra Dvorek e Eliete Cigarini.

Estreou: 14/09/2013

Teatro Tuca (Rua Monte Alegre, 1024, Perdizes. Fone: 3670-8455). Sexta e sábado, 21h30h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 50 a R$ 80. Até 13 de dezembro.

Urinal, O Musical

No sentido inverso dos musicais de fisionomia convencional encenados nos últimos anos nos palcos paulistanos, que são bem executados, bom ressaltar, aqui o espírito é francamente underground. Para começar, a obra assinada por Zé Henrique de Paula ocupa um espaço acanhado, diferente dos amplos teatros que costumam abrigar as grandes produções do gênero. Engajada, a trama de título extravagante examina um assunto contemporâneo e oferece perspectivas aprofundadas de leitura. Os autores americanos Mark Hollmann e Greg Kotis poliram uma linguagem que subverte, com ironia sutil, padrões popularizados por alguns dos principais clássicos da Broadway – a montagem original deste texto estreou em Nova York, em 2001, e faturou três cobiçados prêmios Tony. Além disso, o elenco do Núcleo Experimental não foi garimpado em testes e audições, como de praxe em trabalhos assim. Se está longe de brilhar na hora de cantar, o grupo exibe, no entanto, suficiente domínio técnico para dar conta da empreitada.  A conseqüência é um espetáculo atraente, que magnetiza o público com enredo inteligente, repertório musical envolvente e interpretações solares.  

A ação transcorre em um futuro totalitário, em uma cidade indefinida assolada há duas décadas por uma seca de proporções devastadoras. A escassez de água obrigou a extinção dos banheiros privados e agora a população precisa pagar para fazer suas necessidades fisiológicas em instalações sanitárias públicas. Os tais equipamentos de uso compartilhado são administrados pela Companhia da Boa Urina, cujo presidente é o cruel e corrupto Patrãozinho.

As regras devem ser seguidas à risca. Quem não tem dinheiro para usufruir das instalações e tenta burlar a lei é enviado para Urinal, uma misteriosa e temível colônia penal. A perspectiva do exílio forçado não passa de uma estratégica ferramenta de poder e constrangimento para manter as pessoas pobres constantemente com medo. Com razão, aliás, porque quem para lá é encaminhado não costuma mais retornar. Como acontece com o Velho Bonitão. Sem grana para se aliviar na imunda Conveniência número 9, e após mal sucedida tentativa de trapaça, ele urina na rua, é preso e acaba banido da comunidade.

Somado à recente aprovação, num senado corrompido, da majoração de preços para a utilização dos mictórios, o episódio deflagra uma rebelião popular contra a opressão. O movimento é pilotado por Bonitão, filho do infrator, que comanda uma massa heterogênea de tipos que deseja fazer xixi de graça. Os rebeldes chegam a seqüestrar Luz, filha de Patrãozinho, garota que está mantendo romance justamente com o líder da insurreição.

A história evolui deixando entrever temas como ganância, corrupção e pulsões revolucionárias, desfiando um comentário agudo sobre o lado negro do capitalismo. A comicidade aflora nas coreografias em grupo ou duetos, na maneira como os personagens zombam de si, na demolição de certos arquétipos teatrais. Os números com música parodiam produções como Hair, Chicago e Os Miseráveis, com seus vocais  dramáticos, passos bregas, interpretações intencionalmente harmoniosas típicas de musicais dos anos 1940. Na sequência em que estoura o romance entre Bonitão e Luz, comicamente eles colocam os seus ouvidos no peito um do outro. Até um coro gospel ganha vida no palco, o que cria um ruído irônico pelo seu caráter sagrado em um ambiente cheio de pecados. Outra subversão é a brincadeira brechtiana de escalar dois personagens para comentar os eventos, numa quebra de quarta parede que tem o intuito de estimular um olhar objetivo sobre a narrativa.  

Todo esse arsenal de referências, que inclui ainda A Ópera dos Três Vinténs, de Brecht e Kurt Weill, não embaça a singularidade da peça, habilmente construída e com luz própria. Zé Henrique de Paula faz a encenação deslizar agilmente e o ritmo inquieto nunca deixa dispersar a atenção. A direção instaura ainda um desenho dinâmico de marcações que, em certos momentos, parece exalar o hálito das histórias em quadrinhos. Com espaços, escadas e níveis, um mosaico que tanto reproduz o escritório da corporação, o alto de um prédio como becos e ruas, a cenografia busca inspiração nos cabarés alemães da primeira metade do século XX e sua atmosfera de submundo.

A vigorosa trupe tem a oportunidade de explorar várias dicções vocais, animar uma eclética mistura de estilos musicais, passeando pelo jazz, gospel, balada, rap e balé, e encarnar personagens únicos e engraçados. Roney Facchini incorpora um Patrãozinho cínico e severo. Na pele de Luz, Bruna Guerin destila a meiguice de uma mocinha ingênua. Gerson Steves transforma o senador em uma figura covarde e pusilânime. Bonitão, na interpretação de Caio Salay, é um insurgente de encanto juvenil. Nábia Vilella marca forte presença como a serviçal Penélope. O Policial encarnado por Daniel Costa (*) é divertidamente petulante e presunçoso. Luciana Ramanzini mostra tiques cômicos na composição da espevitada Garotinha. Os dois últimos também funcionam como narradores que dão as boas vindas e não se furtam a revelar que o musical não terá final feliz. Os demais intérpretes cumprem satisfatoriamente diversos papéis importantes.  

Bizarra, sarcástica e moderna, a peça desdobra um ponto de vista sobre a sociedade que estamos construindo. O horizonte vislumbrado soa terrível. Se as pessoas buscam o direito de urinar sempre que quiserem e do jeito que preferirem, corporações capitalistas não perdem o apetite predador de controlar e aproveitar todas as atividades, até mesmo as funções fisiológicas humanas. Em diálogo elucidativo, um personagem diz ao outro que o público não acorrerá em massa ao teatro para assistir este musical. Certamente porque, no fundo, ele quer ignorar o fato de que seu modo de vida, a seguir nessa toada, irá se tornar inevitavelmente insustentável.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto: Ronaldo Gutierrez)

(*) Na atual temporada substituído por Zé Henrique de Paula. 

 

Avaliação: Ótimo

 

Urinal, O Musical

Texto: Mark Hollmann e Greg Kotis

Direção: Zé Henrique de Paula

Elenco: Bruna Guerin, Caio Salay, Daniel Costa, Gerson Steves, Nábia Vilella, Roney Facchini e outros.

Estreou: 03/04/2015

Teatro Porto Seguro (Alameda Barão de Piracicaba, 740, Barra Funda. Fone: 3223-2090). Quarta e quinta, 21h. Ingresso: R$ 50 a R$ 80. Até 21 de abril.

APCA 2016: melhores do teatro do 2º semestre

Em encontro realizado na última segunda-feira (21), os críticos de teatro da APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte (*) avaliaram a produção teatral do segundo semestre desse ano e fizeram uma pré-seleção dos melhores no período.

 

Foram discutidas também indicações para o Prêmio Especial de Teatro e para o Grande Prêmio da Crítica.

 

No dia 30 desse mês acontecerá a votação final, quando serão escolhidos os vencedores de 2016 em sete categorias.

 

Abaixo, os indicados por categoria:

 

 

 

AUTOR

Jô Bilac(Fluxorama)

Newton Moreno (Um Berço de Pedra)

Vinicius Calderoni (Os Arqueólogos)

 

 

ATOR

Flávio Bauraqui (Cartola – O Mundo é um Moinho)

Leonardo Fernandes (Cachorro Enterrado Vivo)

Ney Piacentini (Espelhos)

 

 

ATRIZ

Cristina Cavalcanti (Um Berço de Pedra)

Juliana Galdino(Leite Derramado) 

Laila Garin (Gota D’água [A Seco] )

 

 

DIRETOR

Duda Maia(Auê

Kiko Marques (Sínthia(foto ao lado)

William Pereira (Um Berço de Pedra)

 

 

 

ESPETÁCULO

O Grande Sucesso

Os Arqueólogos

Um Berço de Pedra

 

 

*Críticos participantes: Edgar Olimpio de Souza, Evaristo Martins de Azevedo, Gabriela Mellão, José Cetra, Kyra Piscitelli, Maria Eugênia de Menezes, Miguel Arcanjo Prado e Vinicio Angelici.

 

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