EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Tudo no Seu Tempo

Na dramaturgia de Alan Ayckbourn, nada é o que parece ser. Nesta engenhosa trama escrita em 1994, o dramaturgo inglês brinca com o fetiche de que podemos alterar o destino, reescrever o passado, até mesmo reverter assassinatos, como no caso aqui. Assinada por Eduardo Muniz, a montagem se vale do registro da comédia policial para ensejar uma reflexão sobre a passagem do tempo, as memórias residuais, de como a nossa vida poderia ter seguido outro rumo se tivéssemos a oportunidade de corrigir alguns acontecimentos.  

A ação começa no futuro, em 2036, com a chegada de uma dominatrix à suíte de um hotel refinado, onde um velho, adoentado e corrupto magnata está hospedado. Na contramão do que se imagina, Rubens (Joca Andreazza) não contratou os serviços de Kelly (Cynthia Falabella) para vivenciar experiências sadomasoquistas. Sua intenção é a de que a garota assine, como testemunha, uma confissão que ele havia redigido. O explosivo documento relata suas falcatruas comerciais e revela como suas duas primeiras esposas foram assassinadas ao seu mando. Estamos diante de uma situação absolutamente inusitada, agravada pela presença ameaçadora do capanga Juliano (Gustavo Trestini), com a clara intenção de fazer a garota de programa sumir também. Apavorada, ela consegue escapar pela porta de uma sala adjacente e, surpreendentemente, acaba no mesmo quarto, mas em 2016, agora ocupado pela segunda mulher do empresário. Em estado de choque, tenta avisá-la do risco que ela corre de ser morta. Pelo mesmo dispositivo mágico, e transbordando para a mesma suíte, Wanda (Fernanda Couto) retorna vinte anos antes, em 1996, para entregar conselho semelhante à sua antecessora, Jéssica (Bete Correia), que se encontra em plena noite de núpcias com o mau-caráter Rubens.

Fica-se sabendo que nem todos são transportados e tampouco para a mesma época. O mote do trânsito entre presente, passado e futuro faz eclodir uma série de embaraços embalada em ritmo acelerado de suspense. Por meio desse artifício, Ayckbourn tece homenagem carinhosa ao cinema noir, com suas mulheres fortes, ao clássico Psicose, de Alfred Hitchcock, ao materializar em cena o espectro da mãe de um dos personagens, e à ficção científica juvenil De Volta ao Futuro, de Robert Zemeckis, notabilizada por tratar do tema da viagem no tempo. Sem aprofundar-se, o autor chega a produzir um irônico comentário político, ao retratar 2036 como um tempo marcado por uma guerra civil – ruídos de bombas e tiros são ouvidos do lado externo do hotel. 

A direção se safa com méritos da tarefa de atribuir consistência ao jogo, dividido em três períodos distintos. As situações são encadeadas sem atropelos e o thriller policial cômico adquire tessitura conforme a ação avança. Mesmo com duração um pouco além do desejável, Muniz nunca deixa que a pulsação do ritmo se afrouxe. A encenação é dinâmica o suficiente para que o espectador mergulhe no que transcorre no palco e acompanhe com interesse todas as voltas e reviravoltas. Tudo parece muito natural, até mesmo o fato de que a decoração interna da suíte permanece inalterada ao longo de quatro décadas. É uma direção com marcações simples, sem excessos, que privilegia a proposta do faz de conta, sublinha as mudanças comportamentais dos personagens e funciona como um típico vaudeville.

Na função de protagonistas, as três atrizes entregam performances sinceras e trabalham no registro espirituoso. São criaturas femininas de vida radicalmente opostas que, de repente, se tornam dependentes uma das outras. Por interesse mútuo, elas se unem para ludibriar o psicopata e salvar-se, evitando suas sinas terríveis. Cynthia Falabella mostra-se convincente e emana afabilidade na pele da atraente e vulnerável prostituta, que chega a perder a inocência do início e se tornar comovente conforme a proximidade do desfecho. Com persuasiva presença cênica, Fernanda Couto incorpora Wanda, típica burguesa impaciente, que também adquire contornos de heroína após sentir na pele o pânico da morte anunciada. Ela é responsável por uma das frases mais hilárias do espetáculo, ao afirmar que nenhuma mulher em sã consciência deseja revisitar sua lua de mel. Na composição da doce e gentil Jéssica, a atriz Bete Correa imprime credibilidade a uma figura que descobre, perplexa, a demolição de suas expectativas amorosas. 

O conjunto masculino desembala rendimento seguro. Ator firme e virtuoso, Joca Andreazza interpreta Rubens, o homem de negócios com má consciência. Júlio, o sinistro jagunço, é vivido sem estereótipo por Gustavo Trestini. O desnorteado segurança Haroldo, que envelhece com o sonho de comprar um iate, ganha corpo na interpretação trovejante de Edu Guimarães. Com entradas pontuais, o ator transforma o funcionário do hotel em um sujeito adorável. Em cena desconcertante, ele flagra uma situação que lembra uma bizarra atividade sexual. A equipe técnica se encaixa na proposta da encenação. Luz e figurinos de Alice Alves são adequadose o cenário imóvel de Chris Aizner busca demarcar as diferenças temporais recorrendo a pequenas intervenções. A trilha sonora de Daniel Maia pontua o suspense, sem intrometer-se em demasia.

Trata-se de uma peça em que as artimanhas da trama disfarçam certo acanhamento emocional observado nos personagens. Um entrave, diga-se, que não obscurece um texto concebido para entreter a partir da curiosidade despertada por um enredo insólito e fantástico. Diferentemente de outras obras de sua autoria, Ayckbourn foge das comédias realistas suburbanas e da abordagem pessimista da raça humana. O dramaturgo investe em uma intriga sem lógica alguma, ancorada por mulheres decididas e homens inescrupulosos ou tolos. Bastante teatral, é uma fábula que sugere que alterar o passado pode até não mudar a história, mas cria uma deliciosa realidade paralela.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Lígia Jardim)

 

Avaliação: Bom

 

Tudo no Seu Tempo

Texto: Alan Ayckbourn

Direção: Eduardo Muniz

Elenco: Cynthia Falabella, Joca Andreazza, Fernanda Couto, Gustavo Trestini, Bete Correia e Edu Guimarães.

Estreou: 24/01/2016

Teatro Jaraguá (Rua Martins Fontes, 71, Bela Vista. Fone: 3255-4380). Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 50. Até 20 de março.

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