EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Diário de um louco

Se alguém perguntar ao engenheiro aposentado José Cetra Filho, 71 anos, o que ele fará nesses próximos dias, a resposta será simples e direta: “ir ao teatro”.

Então irá retirar do bolso uma folha de papel, que contém uma grade rabiscada com toda a sua programação teatral da semana.

Assim tem sido a sua rotina nas últimas cinco décadas, desde quando adentrou o Teatro Oficina em 1964 e se deslumbrou ao assistir Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki, direção de Zé Celso Martinez Corrêa. 

“A poucos metros de mim estavam Eugênio Kusnet, Etty Fraser, Raul Cortez, Célia Helena, Renato Borghi e Miriam Mehler, atores gigantes que eu mal conhecia”, rememora.

“Eles interpretavam personagens russas, num trabalho que fazia alusão à complicada realidade política brasileira, nos instantes iniciais da ditadura militar.”

Em suas rigorosas contas, sem chances para o chute, ele calcula ter saído de casa, até dezembro do ano passado, um total de 2.906 vezes para ir a uma apresentação teatral.

Detalhe: no momento em que você lê esta reportagem, ele certamente deixou para trás a marca de três mil montagens teatrais assistidas.  

Mais do que crítico, que integra a prestigiada Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), Cetra prefere se enxergar como um espectador apaixonado pelas artes cênicas.

Ou seja, na hora de escrever no seu blog pessoal (www.palcopaulistano.blogspot.com.br), não se prende ao rigor analítico dos historiadores nem comunga da alardeada neutralidade dos críticos especializados.

Sua relação com o teatro é cimentada pela emoção genuína, sem pré-conceitos, e consolidada pelas recordações do que viveu e vivenciou no curso dessa trajetória.

Casa tomada. Por sinal, a paixão aconteceu aos onze anos de idade, ao folhear uma revista chamada Teatro Brasileiro e se deparar com o clássico texto Woyzeck, de Buchner.

O impacto foi tão grande que chegou a criar uma encenação imaginária no quintal da sua residência, para estranhamento de sua mãe.

“Eu reservei para mim o papel principal, fiz a direção, elaborei os cenários e batizei o local de Teatro Zezinho”, recorda-se este paulistano, nascido no bairro da Água Branca, numa casa próxima ao atual Sesc Pompeia.

Passo seguinte e lá estava ele fazendo teatro no colégio em que estudava, estreando na pele de um personagem gago capaz de se expressar apenas pelo canto.

Picado pela mosca azul, passou a marcar presença na platéia dos teatros de Arena e Popular do Sesi.

Foi nessa época que começou a cultivar a mania, nunca mais perdida, de guardar os programas das peças, canhotos dos ingressos e as críticas publicadas na imprensa do que assistia, além de rascunhar as suas próprias observações.  

Diligentemente organizado em incontável número de pastas, seu arquivo abriga até objetos cênicos, como pedrinhas que compunham o cenário de Os Sete Afluentes do Rio Ota (2003), peça dirigida por Monique Gardenberg.

Por conta disso, volta e meia ele recebe em seu endereço alunos, pesquisadores, professores em busca de informações sobre o teatro paulistano.

Ovo no sebo. Quem escarafuncha seu singular acervo descobre relíquias como, por exemplo, o programa de O Balcão (1970), lendária mise-en-scène de Victor Garcia para o texto de Jean Genet.

“A encenação era tão fascinante que se tornou atração turística de São Paulo”, pontua sobre o evento, que trazia no elenco pesos-pesados como Sérgio Mamberti, Dionísio de Azevedo e Ruth Escobar.

Outra preciosidade armazenada é o impresso de O Ovo, espetáculo que inaugurou em 1964 o Teatro Aliança Francesa.

Parentêses: tendo posteriormente perdido este exemplar, por um desses acasos encontrou outro (ou seria o mesmo?) à venda num sebo da cidade, ao qual pagou dois reais no dia 13 de janeiro de 2011.

Claro que conteúdo teatral tão vasto e meticuloso chamou a atenção da Editora Giostri, responsável por uma série de lançamentos dedicados à dramaturgia nacional.

Ela propôs uma versão literária da dissertação acadêmica que Cetra finalizara em 2012, sobre sua odisséia pela cena teatral paulistana.

Daí surgiu o livro O Teatro Paulistano de 1964 a 2014 – Memórias de um Espectador, que documenta parte significativa da produção teatral de São Paulo no decorrer desse período.

Pelas suas 234 páginas são relacionadas 230 peças, objetos de breves ou extensos comentários e impressões de acordo com o sentimento experimentado ao vê-las.  

No prefácio, Alexandre Mate, professor e pesquisador de teatro, anota que “de cena em cena, Cetra nos apresenta geografia, instituições, nomes e apreensões emocionais, o que nos faz conhecer logradouros, nomes de pessoas, espaços e circunstâncias.”

Panelaço no Oficina. O autor não se limitou a registrar apenas o que testemunhou em cima dos palcos.

Também menciona situações inusitadas presenciadas nas portas e saguões dos teatros.

Como a de ver sempre degustando um saquinho de pipocas a mãe da atriz Ruth Escobar, uma enérgica senhora portuguesa que organizava as filas e o fluxo do público às sessões produzidas pela filha.

Houve uma vez em que brigou com a bilheteira de O Rei da Vela (1967), que não queria conceder ingresso especial aos estudantes, entre os quais ele.

A querela resultou num panelaço em frente ao Teatro Oficina.

“O ambiente estava tenso até que o Zé Celso apareceu e, num gesto demagógico, porque possivelmente partira dele o pedido para a suspensão do desconto, disponibilizou meia entrada, sob os aplausos da estudantada”, diverte-se Cetra, hoje Mestre em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Unesp.

Mais um curioso episódio se deu no show político Opinião (1965), com uma ainda novata Maria Bethânia como estrela, em substituição à Nara Leão, a protagonista na versão carioca.

Ao pisar o hall do Teatro Ruth Escobar, observou um rapaz magrelo e de cabelo comprido sentado na escadaria.

“Eu não sabia que aquele sujeito tímido e meio bicho grilo era o irmão dela, Caetano Veloso, prestes a estourar na MPB”, revela.

Dez vezes no Cais. Com tantas peças na bagagem, algumas conquistaram para sempre seu coração.

De uma lista das 28 melhores da sua vida, identificadas com asteriscos no livro, destaca cinco: Arena Conta Zumbi (1965), Apareceu a Margarida (1974), Paraiso Zona Norte (1989), Cacilda! (1998) e Cais ou Da Indiferença das Embarcações (2013).

Arena Conta Zumbi fez minha cabeça girar com as mil possibilidades de não só lutar pela liberdade como alterar o rumo das coisas.”

“Até hoje me lembro da voz, as inflexões, os gestos e as expressões de Marília Pêra em Apareceu a Margarida (foto à direita), potente metáfora sobre o regime militar brasileiro.”

“Não me esqueço em Paraiso Zona Norte da entrada da atriz Flávia Pucci, como Zulmira, quase flutuando, com um chapéu estranho, um guarda chuva aberto, o rosto muito maquiado de branco, o gestual descontínuo.”

“Em Cacilda!, Zé Celso apresentou fatos da vida da grande  Cacilda Becker, numa mistura alucinante de personagens e pessoas reais.”

 “Cais (foto abaixo), de Kiko Marques, é a primeira grande obra prima do teatro brasileiro deste século.”

Esta última, por sinal, ele assistiu dez vezes, seu recorde pessoal.

“Ao longo da existência da montagem acompanhei a atriz Virgínia Buckowski grávida de oito meses, sua ausência temporária do elenco e o retorno, já com a pequenina Anita no bastidor, pela primeira vez num teatro.”

Loucura e amnésia. O que mudou no universo teatral de São Paulo nesse meio século?

Na esfera comportamental, ele percebe que o público está mais mal educado.

Se antes eram as velhinhas resmungonas, hoje são aqueles que não desligam o celular ou que permanecem o tempo inteiro navegando na internet durante a representação.

“Para mim, o teatro é um lugar sagrado que não pode ser violado e vilipendiado”, ensina.

Esteticamente, constatou rupturas.

Até meados da década de 1970, era uma corrente artística combativa, rica em ideias, centro de convergência da oposição ao regime militar aqui instalado.

Depois do fim do autoritarismo, certa apatia criativa pautou o cenário teatral.

“Diziam que muitas obras sairiam das gavetas, mas poucas foram encenadas e o que ganhou vida não resultou grande coisa”, avalia.

Foi com o movimento Arte Contra a Barbárie, promovido por grupos teatrais, que a arte renasceu com força a partir do ano 2.000.

“Nossa produção cênica tem qualidade, com pesquisa de linguagem, companhias de fôlego, diretores ousados e bons dramaturgos”, mensura.

“Além disso, a revitalização do gênero musical fomentou a formação de atores que sabem cantar, interpretar e dançar.”

Como espectador, acredita ter aprimorado o seu olhar.

“Eu encarava o teatro de forma romântica e conseguia acompanhar numa boa a temporada”, conta.

Hoje, maduro e tarimbado, se considera mais crítico e exigente.

“E aflito por não conseguir dar conta da nossa superlotada agenda teatral”, emenda, rindo.

“Se antigamente eram quinze espetáculos simultaneamente em cartaz que ocupavam poucas salas numa mesma região, hoje são dezenas ao mesmo tempo e espalhados pela capital inteira”, compara.

No último capítulo, Cetra descreve como se surpreendeu recentemente ao perceber que alguns programas de peças estavam fora do lugar original na estante, sem que alguém tivesse tido acesso ao seu sistematizado arquivo.

Se não tinha sido a filha, a faxineira ou, quem sabe, um ladrão amante de dramas, comédias e tragédias, estaria ele com amnésia ou enveredado pela loucura?

O desfecho da crônica é outra saborosa iguaria oferecida aos leitores.

    

Abreu: "O teatro anda muito simplório"

O dramaturgo e roteirista de cinema e televisão Luís Alberto de Abreu é uma espécie de professor que transforma seus ouvintes e que gosta de aprender com os seus alunos. Um de seus segredos, aliás, é justamente prestar atenção nas histórias que colhe em casa, no trem, no ônibus, no bar, no caminho, em qualquer lugar. “Eu adoro pesquisar, ler, contar e ouvir histórias”, costuma dizer ele, que estreou profissionalmente em 1980 com a peça Foi Bom, Meu Bem?. Quando fica comovido, emocionado com alguma imagem, ali nasce algo que depois se traduz em um enredo, uma peça, um filme, um livro.

Aos 58 anos e três décadas de carreira, já escreveu mais de sessenta peças teatrais. No repertório, a antológica Bella Ciao (1982), a instigante O Livro de Jó (1995), encenada num hospital pelo Teatro da Vertigem, e a premiada Auto da Paixão e da Alegria (2002), recriação da morte e ressurreição de Cristo sob a perspectiva da cultura popular. Como roteirista de cinema brilhou com os filmes Maria (1985), Kenoma (1998) e Narradores de Javé (2000). Na telinha, foi autor das elogiadas minisséries globais Hoje é Dia de Maria (2005) e A Pedra do Reino (2006). “Se há um elemento comum e fundamental a todas essas linguagens artísticas, é o ritmo, o pulso e a vitalidade de cada uma”, ensina ele, que organizou e coordenou o núcleo de dramaturgia da Escola Livre de Teatro de Santo André, em São Paulo, referência na área. Nesta entrevista, Abreu explica seu método de criação, disseca os gêneros dramático e cômico,  esmiúça o controvertido processo colaborativo e cutuca o teatro feito hoje em dia.   

 

Rodrigo Antunes Corrêa (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

 

Você queria drama, mas acabou fisgado pela comédia. De onde vem sua paixão pelo cômico?

Não sei, talvez tenha vindo da minha própria formação. Eu nasci em São Bernardo do Campo e convivi com nordestinos, que são muito engraçados e têm um tipo de humor medieval, de praça, de festa. Vem daí meu gosto pelo humor. Embora eu faça também e goste muito de trabalhar o drama, o humor é mais prazeroso.

 

Quais são as suas influências teóricas?

As influências teóricas vieram a posteriori: Aristóteles, Zeami, Herbert Read, Walter Benjamin, Bakhtin e muitos outros. Em princípio, quem me influenciou mesmo foram dramaturgos. Entre os brasileiros, Suassuna, Jorge Andrade, Plinio Marcos e Arthur Azevedo. Depois, os gregos. E diversos outros como Shakespeare, Molière, Brecht, Peter Weiss, Beckett e Heiner Müller.

 

Como se dá o seu processo de criação?

Eu procuro sempre uma imagem. Quando escrevi Guerra Santa, por exemplo, que é uma Divina Comédia ambientada no mundo contemporâneo, a imagem que me veio era a de um sujeito que tentava controlar o braço e não conseguia. A partir disso criei o personagem Dante, um revolucionário, um guerrilheiro da virada dos anos 1970 para 80. Ele se nega a se incorporar ao sistema, se torna bandido e luta contra a injustiça. Uma coisa meio Sendero Luminoso.

 

Um personagem subversivo...

É um revolucionário numa época em que a revolução talvez não fizesse tanto sentido. Ele chega a matar um professor, seu antigo mentor. O Dante “perdeu” o braço, que já comandava o seu próprio ser. Então, se ele tinha que assassinar, assassinava. Trata-se de uma inversão total da Divina Comédia. A imagem pode ser a mais esquisita possível, mas eu tenho de processá-la. A peça ou o texto começa a nascer desse processo.

 

Começar um texto é mais difícil do que desenvolvê-lo?

No início eu não traço por inteiro o perfil do personagem. Ele vai se construindo aos poucos. Se eu elaboro muito bem o enredo, eu prefiro deixar o personagem meio solto e fico observando como ele se vira naquelas ações e naquele destino que desenhei para ele. Às vezes estou querendo escrever um drama e ele toma o rumo do cômico.          

 

Comédia e drama têm estruturas semelhantes?

O tecido do gênero sério é a tragédia, o próprio drama e o melodrama. De certa forma, a referência é o sofrimento humano. O que foge disso é comédia. Uma das características da comédia é a hipérbole, aquilo que é exagerado, transcende o raciocínio previsível e vale-se da repetição. Ela se faz fundamentalmente pelo personagem. Se o gênero sério requer um enredo muito bem elaborado, com unidade de ação, a comédia subverte o padrão narrativo. Só precisa de um tipo, de um caráter tolo, de um defeito físico ou moral para produzir o riso. Por definição, é inconseqüente, feita para destruir e ser reconstruída. Ela degrada tudo, todos e qualquer instituição.

 

E a tragicomédia?

Às vezes a comédia inclui o próprio drama. Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, embute a tragédia dentro de uma visão cômica. A trajetória do protagonista é duríssima, a gente ri muito e se emociona com um velho que em princípio é maluco. Aos poucos, no entanto, vamos compreendendo que há um sentido humano naquelas viagens, na sua busca. Ele vive um amor utópico que, no fundo, existe. Tudo isso é vazado por um personagem cômico. Na Grécia antiga, os gêneros não se misturavam: ou era comédia ou tragédia. Shakespeare foi criticado porque mesclava ambos os gêneros.

 

Acha que essa mistura de gêneros é praticada hoje em dia?

A visão do mundo não é só trágica ou cômica. As duas podem conviver e serem complementares. Por que temos de adotar uma visão absolutamente trágica da vida?Gosto dos autores que buscam a multiplicidade e ignoram as divisões. A arte não pode ser compartimentada numa caixinha. Uma das coisas legais da arte contemporânea é o entrelaçamento dos gêneros. O teatro Nô, por exemplo, equilibra música, dança, poesia e narrativa teatral. A obra de arte contemporânea não tem limites. O crítico e teórico de teatro, Anatol Rosenfeld, afirmava que não existe gênero puro.

 

Sua produção é basicamente cômica?

Nem sempre. Eu fiz um projeto chamado Comédia Popular Brasileira, ao lado da Fraternal Cia. de Artes e Malas-Artes, dirigida por Ednaldo Freire (foto ao lado). Foi um processo de pesquisa que durou doze anos e rendeu a encenação de catorze peças. Começamos com a ComédiaDell´Arte, estabelecendo conexões com a nossa cultura. Passamos depois para os heróis da cultura universal e entramos nos Autos Populares. O percurso buscou refletir essa fragmentação contemporânea, o próprio fracionamento da produção teatral.

 

A comédia tem de ser transgressiva para funcionar?

Seo gênero respeitar status e hierarquias, ele implode. A comédia é infratora por si só, sua função é questionar o status quo, violar a norma. Molière, por exemplo, foi censurado várias vezes porque incomodava a classe dominante da sua época. Se ela é assimilada pelo poder acaba perdendo a sua característica básica. Não existe humor a favor, só contra. Desde os gregos é assim. Aristófanes criticava juízes, políticos, aristocratas, sexo, tudo o que era instituído.  

 

Por que o melodrama faz tanto sucesso?

É bem característico que nossa época tenha especial predileção pelo melodrama. É um gênero que retrata fielmente a perplexidade da maioria de nós diante de um mundo que não mais conhecemos. Um mundo complexo, caótico, violento e inimigo, do qual nos afastamos para o aparente porto seguro de nossa casa e dos nossos sentimentos. É diferente do drama ou da tragédia, nos quais os personagens investem em direção ao mundo para transformá-lo em algo possível de ser ordenado e habitado.

 

Há muita diferença entre escrever para o teatro, cinema e televisão?

Há consideráveis diferenças entre os três veículos. São estéticas muito diferentes. Teatro é uma linguagem quase ritual, participativa, que para mim tem como cerne a experiência. O dramático pressupõe essa experiência, como eu entendo.  Entre o cinema e a televisão as diferenças são menos nítidas, especialmente no que diz respeito ao que tenho feito em televisão, que são minisséries. Na tevê trabalho fundamentalmente o cinema como linguagem, ou seja, fundamentalmente a composição das imagens, diálogos enxutos, uma organização mais épica que dramática. Se há um elemento comum e fundamental a todas essas linguagens artísticas, é o ritmo, o pulso e a vitalidade de cada uma.

 

Muita gente considera a novela uma dramaturgia pobre. Você concorda com essa avaliação?

Não. Talvez se possa ter essa impressão porque a novela de televisão seja uma obra extensa, se tomarmos como referência o teatro ou o cinema. Admiro muito o autor de novelas que consegue manter vivo o interesse do público por seis a oito meses. Isso não se consegue senão com uma dramaturgia muito eficiente e elaborada. Em outras palavras, muito rica.  É evidente que existem dramaturgias em teatro e cinema incomparavelmente mais pobres do que muitas de nossas boas novelas.

 

Faltam bons roteiristas no cinema nacional, como apontam muitos críticos e especialistas?

Em todo mundo faltam bons roteiristas se levarmos em conta a produção. Ou seja, se produz muito, mas a qualidade do roteiro não acompanha esse compasso de produção.  Temos que levar em consideração também que o cinema brasileiro só recentemente começou a reconhecer o roteiro como o desenho arquitetônico de um filme, algo imprescindível para a construção de um bom filme.  Creio que a tendência tem sido uma sensível melhora na qualidade dos roteiros e no número de bons roteiristas, o que deverá continuar daqui por diante.

   

Na sua opinião, o teatro feito atualmente tem priorizado mais a forma do que as idéias?

Parece que isso é geral e não restrito apenas ao teatro.  O fato é que há uma tendência forte na contemporaneidade em reduzir as enormes potencialidades das artes em simples veículos de entretenimento. Isso favorece muito à idéia de mercado que permeia o pensamento atual.  Nesse contexto, as idéias, a inovação e a complexidade do fato artístico se perdem.  O que temos visto atualmente, mais do que priorizar a forma, é a busca insana por uma moldura mais simplista, palatável e consumível de teatro. Um esforço que visa amesquinhar o texto, de substituir a forma artística complexa, cheia de idéias e potencialmente envolvente e explosiva.  O teatro anda muito simplório.

 

Hoje no teatro há uma tendência de muitas peças serem escritas em processo colaborativo, o que tem dividido as opiniões...

Muitos não gostam desse método, que tem como princípio romper qualquer hierarquia pré-estabelecida. O palco não é o reinado do ator, nem o texto é a arquitetura do espetáculo. Todos devem colocar experiência, conhecimento e talento a serviço da construção do espetáculo. É um processo derivado da chamada criação coletiva, que vigorava nos anos 1970 e tinha como principal característica a participação ampla de todos os integrantes do grupo na criação do espetáculo.

 

Qual é a diferença fundamental entre os dois métodos?  

A meu ver, a diferença básica é a introdução de um terceiro elemento no processo de criação: o dramaturgo.  Na criação coletiva, a relação criativa fundamental era entre os atores e o encenador. Havia na época poucos dramaturgos e eles estavam, em geral, muito satisfeitos com o status que desfrutavam como criador do texto e orientador da cena. Aos atores, encenador e outros criadores restavam seguir as instruções do autor.

 

Isso mudou...

Os anos 1970 buscaram modificar essa relação. O dramaturgo, quando tenta na década de 1990 se aproximar da construção da cena, percebe a necessidade de se estabelecer um novo equilíbrio. Isso vai alterar o método de criação, que recebeu o nome de processo colaborativo. No entanto, os princípios que norteiam o processo colaborativo são fundamentalmente os mesmos da criação coletiva.

 

Acha que o processo colaborativo consegue evitar o senso comum?

É preciso conciliar a ausência de hierarquias com a distribuição de papéis, além de abrir mão de pequenas e grandes vaidades pessoais. Tudo isso para estabelecer um acordo entre os criadores, que não é um acordo de cavalheiros. É um acordo tenso, precário, sujeito, muitas vezes, a constantes reavaliações durante o percurso.

 

O que tem feito ultimamente?

Estreei no ano passado um espetáculo chamado Um Dia Ouvi a Lua, com direção de Eduardo Moreira, do Grupo Galpão. O texto é inspirado no teatro Nô e contêm elementos líricos e épicos. Desenvolvi também um trabalho baseado em Kafka e no Rilke, um livro de cada um deles, sobre a figura do pai. O resultado disso foi a montagem Os Nomes do Pai (foto ao lado), que não tinha uma única palavra, só ações e movimentos.

 

Como é a sua rotina quando não está trabalhando? 

Eu tenho quatro filhos, dois rapazes e duas meninas, e dois netos, que ocupam parte de meu tempo de lazer. Moro em Ribeirão Pires, a cinqüenta quilômetros da capital, com minha mulher e meus sogros. É muito bom ter velhos por perto porque despertam na gente o instinto de cuidar. Além disso, eles são muito divertidos e têm histórias para contar. Depois de todas essas tecnologias de comunicação, não preciso mais sair de casa para participar de reuniões. Sou caseiro, mas gosto bastante de viajar, de conhecer outros lugares. Mas nada de seguir em linha reta. A pergunta que sempre me faço é: aonde vai dar essa estrada?

 

 

 

APCA: os melhores do teatro em São Paulo

No movimentado cenário teatral paulistano, o ano de 2014 será marcado pelo sotaque musical. As produções musicais, em ritmo acelerado de consolidação nos palcos brasileiros, tiveram suas virtudes reconhecidas pelos jurados de teatro (*) da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Reunida na noite de segunda-feira (1), a comissão debateu bastante e divergiu saudavelmente. Ao final, diante de um leque multifacetado de opções, decidiu garimpar artistas, montagens e projetos que, além do mérito individual, contribuíram nesse ano para a valorização do tipo de teatro desenvolvido na cidade.   

Os prêmios se desdobraram em sete categorias. Cleto Baccic (O Homem de La Mancha) conquistou o título de melhor ator e Laila Garin (Elis, A Musical) sobressaiu como atriz. Ambos exibiram desempenhos pulsantes. Com linguagens e propostas obviamente distintas, O Homem de La Mancha (foto) e Pessoas Perfeitas foram considerados os espetáculos mais envolventes da temporada, superando por detalhes outros de igual quilate. Criterioso e autoral, Marco Antônio Pâmio brilhou na direção do clássico pirandelliano Assim é (se lhe parece). Pelo sensível trabalho empreendido na dramaturgia, Newton Moreno e Alessandro Toller se destacaram em O Grande Circo Místico. Dona de sólido currículo nas artes em geral, a experiente atriz Laura Cardoso arrebatou o grande prêmio da crítica. A memorável Mostra Internacional de Teatro (MITsp), que resgatou a efervescência dos festivais do gênero, abocanhou o prêmio especial da crítica. 

Abaixo, a relação dos vencedores da APCA:

 

Dramaturgo - Newton Moreno e Alessandro Toller (O Grande Circo Místico)

Atriz - Laila Garin (Elis, A Musical)

Ator - Cleto Baccic (O Homem de La Mancha)

Diretor - Marco Antônio Pâmio (Assim é (se lhe parece))

Espetáculo - O Homem de La Mancha e Pessoas Perfeitas (Cia Os Satyros)

Prêmio Especial - MITsp (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo)

Grande Prêmio da Crítica - Laura Cardoso (72 anos dedicados às artes) 

 

*Críticos que votaram: Afonso Gentil, Aguinaldo Ribeiro da Cunha, Carmelinda Guimarães, Edgar Olimpio de Souza, Evaristo Azevedo, José Cetra, Kyra Piscitelli, Márcio Aquiles, Maria Eugênia de Menezes, Michel Fernandes, Miguel Arcanjo Prado, Tellé Cardim e Vinicio Angelici.

 

 

 

Ricca: "Tem colegas que adoram ser atores de aluguel"

Marco Ricca é um profissional diferenciado. Dificilmente é visto em revistas de celebridades, exibindo-se em camarotes de carnaval ou expondo sua vida pessoal em programas de auditório. “Ser ator é um ofício como outro qualquer. O que faço fora dos palcos, dos sets de filmagem e dos estúdios de gravação não deveria interessar às pessoas”, justifica-se. “Mas, infelizmente, vivemos a era da sociedade midiática.”

Aos 47 anos, exibe sólido currículo teatral, pontuais participações em telenovelas e minisséries e incursões elogiosas pelo cinema. No momento, dirige em São Paulo a peça A Grande Volta, do autor belga Serge Kribus, em montagem estrelada por Fúlvio Stefanini e Rodrigo Lombardi. E dá os últimos retoques na agenda do filme Cabeça a Prêmio, que marca sua estréia como diretor de cinema. Adaptado do livro homônimo de Marçal Aquino, o longa estréia em circuito nacional no próximo dia 6 de agosto.

“Não estou me aposentando da interpretação, só buscando outros exercícios, querendo provar novas possibilidades dentro da carreira”, conta, ele que trabalhou como office-boy e chegou a ser professor de história antes de virar ator. Nesta entrevista, revela as razões que o levaram para a televisão, critica a mídia de celebridades e detalha sua estréia como diretor de cinema, além de abordar a peça, que seria encenada por Paulo Autran (1922-2007), declarar seu amor ao teatro e tecer algumas reflexões sobre a profissão. “Alguns atores gostam de envolver com a obra, observar e refletir a sociedade, enquanto outros só pensam no sustento, sem compromisso ideológico e estético com a arte.”   

 

Edgar Olimpio de Souza

  

A Grande Volta estava nos planos de Paulo Autran?

Era um projeto pessoal dele, desde 2001. O Paulo começou a traduzir o texto, mas o sucesso da montagem Visitando o Sr. Green, que ele protagonizava, foi adiando os planos. Agora a peça foi oferecida a mim como ator, mas fiquei com mais vontade de dirigir do que atuar. O Serge Kribus escreveu uma comédia dramática cheia de leituras e camadas psicológicas. O Fúlvio Stefanini, que faz um ator ultrapassado, chega sem avisar na casa do Rodrigo Lombardi, o filho publicitário recém-separado e em crise. A peça mostra como esse reencontro é difícil, de como pai e filho se parecem nos discursos, nos erros, nos medos, na loucura. No fundo, é uma história de amor, solidão, sonhos, balanços de vida, de uma profunda humanidade. Aliviada pelos toques de humor que o autor injeta.

 

Está se aposentando da carreira de ator?

Claro que não, estou apenas buscando outros tipos de exercícios. No teatro eu já me testei em todas as funções e no cinema estreei como cineasta há pouco. O fato de ter adorado assinar a direção de um longa-metragem e estar dirigindo esta peça não significa dizer que abandonei a interpretação. Só quero provar outras possibilidades dentro da carreira. Não desejo ser uma decepção ambulante. O filme, por exemplo, foi uma experiência maravilhosa, deu novo gás para atuar outra vez. Inclusive já pintaram convites para fazer cinema como ator. Estou com ânimo redobrado para dirigir, atuar, produzir, escrever. Tenho um monte de projetos em mente, os fantasmas estão começando a me perseguir.

 

O que te encantou em Cabeça a Prêmio?

Assim que saiu o livro do Marçal Aquino eu quis comprar os direitos de adaptação, que acabaram nas mãos do produtor Rodrigo Teixeira. Acho o Marçal um dos maiores escritores e roteiristas brasileiros. A trama é um mosaico de encontros e desencontros familiares e amorosos, que acontecem em um ambiente marcado por atividades ilícitas. É um filme que fala de seres humanos, das relações entre pai e filha, irmão e irmã, do que o amor é capaz de fazer e cometer, da desinformação que gera a tragédia. O tráfico de drogas, o contrabando, a contravenção, funcionam apenas como pano de fundo. O curioso é que o longa já começa com os personagens se afundando na lama. O livro tem estilo coral, são diversas histórias que não seguem uma ordem convencional. Na adaptação, decidimos desenvolver a trama de forma linear para poder verticalizar mais os personagens. No fundo, o que a gente mostra é a dor do ser humano.

 

Não deu vontade nem de uma aparição relâmpago, como o Hitchcock costumava fazer nos seus filmes?

Eu adoraria interpretar qualquer um dos personagens, mas não quis misturar as estações. Eu estava tão entretido na direção, que já ocupa um baita tempo, tão tomado pelo espírito da história, que não conseguia me ver na tela. Tinha que ter concentração total porque foi um trabalho diferente de tudo o que eu já tinha feito antes. Então aproveitei minha bagagem teatral para depurar as minúcias da interpretação do elenco.

 

Que lições você extraiu desse trabalho?

Numset de filmagem aprendi a importância de se delegar tarefas, de agregar as pessoas. Sem isso, você destrói o trabalho. Alguém falou para mim: ´Um filme a gente não acaba, abandona´. Eu também escrevi esse roteiro, com o Felipe Braga. É um processo diferente do que acontece num teatro. Uma peça muda dois anos depois, transfigurada pelo público. No cinema, em algum momento tem que rodar o último take. É cruel editar o material todo filmado. Tivemos que cortar muitas tramas paralelas.  Na montagem, virou outro filme.

 

E a distribuição do filme, não é outra novela?

De uns quinze anos para cá o Brasil produz aproximadamente setenta filmes por ano. É um número expressivo, mas continua sendo muito difícil arrumar dinheiro para filmar. Não bastasse toda a maratona de levantar a produção, filmar, montar, tem a distribuição, fazer com que o longa seja exibido em boas salas e visto por muita gente. Por isso costumo recomendar que, em se tratando de filme nacional, deve-se correr para assisti-lo antes que o tirem rapidamente de cartaz. 

 

Foi complicada a sua migração do teatro para a tevê?

Bem difícil. Eu sentia muitas dúvidas, demorei vários anos para aceitar os convites. Mas chegou um momento em que perdemos o Teatro Bixiga porque a proprietária elevou bastante o aluguel. Foi uma ruptura dolorida por conta da história que havíamos construído naquele espaço. Naquela época, vinte anos atrás, não existiam outras possibilidades de sobrevivência como hoje, com grupos de teatro, apoios culturais, leis de incentivo. A gente vivia da bilheteria, vendia cerveja no bar. A migração acabou sendo uma necessidade porque o teatro havia acabado para mim. Topei mudar de vida, descobrir novos eixos, mas nunca abandonei os palcos. 

 

O ator Luis Mello disse que foi para a televisão porque precisava comprar eletrodomésticos...

Ele disse que não se via envelhecendo bem lá no CPT (Centro de Pesquisas Teatrais), do Antunes Filho, que precisava viver com dignidade financeira. Não dá para achar que um profissional tem que ganhar pouco. O Luís não deixou de exercer o ofício dele de forma digna, só passou a ganhar um pouco mais. De certa forma a atitude dele, que gerou polêmica na época e um bate-boca interminável com o Antunes, serviu para demolir um preconceito, essas máximas da profissão. Na tevê eu conheci o Antônio Fagundes, os pequenos e grandes atores, os que estão nascendo e partindo. No Brasil, para sobreviver, ou o ator faz publicidade ou baile de debutante. A gente tem de saber roubar o que há de melhor em tudo. A minha casinha continua sendo o teatro.

 

Por que as novas gerações de atores preferem televisão a teatro?

Grosso modo, hoje a atividade é rentável, as escolas de teatro se proliferam, todo mundo quer ser ator. Os pais apóiam, virou profissão de classe média alta. Mas a tevê não é a única possibilidade de trabalho que existe. Acho que os atores, especialmente os da nova geração, não deveriam fazer apenas novelas, mas teatro também. Quando comecei na carreira, não havia esse glamour em torno do ator, nenhum pai queria que os filhos seguissem essa profissão. Bem diferente de agora. Volta e meia alguma mãe me aborda na rua querendo saber como encaminhar os filhos para a Globo.

 

Não percebe uma certa vulgarização na profissão? Muitos atores parecem mais preocupados em falar de namoros, mostrar a casa...

Infelizmente vivemos a era da sociedade midiática. Ator está sendo confundido com celebridade instantânea. É uma luta constante para se diferenciar os dois. Quero acreditar que, entre mortos e feridos, o público saiba a diferença. Há muitas revistas de celebridades e fofocas no mercado. Destacam mais a vida privada que o trabalho. Para mim, ser ator é um ofício como outro qualquer. O que faço fora dos palcos, dos sets de filmagem e dos estúdios de gravação não deveria interessar às pessoas. Mas esse tipo de mídia impinge o interesse pela futilidade e frivolidade.

 

Já se viu alvo dessa sociedade midiática?

Tive uma experiência horrível. Na época que montei Ricardo III, em 2006, coincidiu do Celso Frateschi encenar o mesmo texto, num teatro menor e com produção mais modesta. Aí a mídia criou uma discussão tola, contrapondo o espetáculo “riquinho” ao “pobrinho”. Na peça de Shakespeare há questões sobre todos os tipos de poder, inclusive midiático, e conspirações que passou batido. A reflexão profunda não aconteceu. A mídia se especializou no vazio e vendeu o nada. Uma crítica elaborada talvez não vendesse jornal.

 

Pelo jeito, aposta-se no nivelamento por baixo...

Quando apresentei Cabeça a Prêmio no Festival Internacional do Rio de Janeiro, no ano passado, o número de fotógrafos que apareceu na sessão foi impressionante. Virou um paredão que acabou atrapalhando a estréia. Eles não estavam ali para falar do longa-metragem, mas para registrar a roupa dos convidados, mostrar fulano com beltrano, correr atrás de alguma celebridade. É um fenômeno mundial.

 

Acha que na televisão o critério principal para selecionar um ator é a estética?

Tem coisas que são assim mesmo. Não dá para negar que a tevê brasileira gosta de beleza, assim como o cinema americano. É só observar quantos atores e atrizes bonitos trabalham em Hollywood. Os melhores personagens nas novelas, no entanto, não estão necessariamente nas mãos dos protagonistas. Veja a Bárbara Paz, que está arrebentando em Viver a Vida. No livro Cabeça a Prêmio, o personagem Miro é descrito como um fazendeiro gordo como um boi. Não podia chamar um galã esbelto para o papel. Daí porque escolhi o Fúlvio Stefanini.  

 

Ser chamado de ator global incomoda?

Já me chateou muito. Em Crime Delicado, um crítico da revista Veja escreveu que o diretor Beto Brant havia apelado para um ator global. Na ocasião eu trabalhava na Rede Globo. Não posso fazer nada se ele assiste mais tevê que cinema e teatro. Não cabe a mim educá-lo. No fundo, a intenção é usar a Globo de forma pejorativa e, por tabela, desqualificar o profissional. Trabalhar em jornal x, revista y invalida o trabalho de um jornalista? No cinema americano a gente não corre para ver o De Niro?. Por que não correr atrás do Antônio Fagundes para ver o que ele está fazendo? Certa vez me chamaram de galã global. Eu fiz poucas novelas, mais de 25 filmes e mais de trinta peças de teatro. Como eu já disse, não posso fazer nada se infelizmente as pessoas só assistem televisão e não vão ao cinema e ao teatro.

 

Mas um rótulo quando pega destrói a carreira...

O ator precisa saber encaminhar a sua carreira. Aquele que se presta a querer fazer sempre a mesma coisa corre o risco de cansar e virar caricatura. Tem colegas que fazem dessa profissão um sustento e adoram ser atores de aluguel. Outros preferem criar, se envolver, experimentar. O ator é o cara que observa o mundo e se utiliza dessa observação para compor os personagens ou criar uma obra. Ele reflete a sociedade. Já o intérprete é aquele que não tem compromisso ideológico e estético com a arte. Isso não significa que uma opção é melhor que a outra, que o ator é superior ao intérprete. São jeitos diferentes de encarar o ofício. Eu gosto e tento tomar conta da obra, escrever, dirigir, produzir. Não sei se sou um grande ator, um grande intérprete. Só sei que já fiz grandes personagens. 

 

Acha que a novela tem dramaturgia pobre?

Como se trata de um folhetim diário, a novela obedece a alguns procedimentos básicos. Se um telespectador perde dois capítulos, por exemplo, ele precisa ser lembrado do que está acontecendo. Se não for assim, ele deixa de acompanhar. Então é normal que uma novela tenha redundância, diálogos repetitivos, cenas a mais, certa superficialidade. Claro que isso empobrece a dramaturgia. Mas, mesmo dentro dessa limitação, há autores que merecem que a gente tire o chapéu. Escrever sozinho essa quantidade de texto todo dia, segurar a audiência, saber que não pode parar, é uma maluquice.

 

E no caso das minisséries?

Aí já é diferente. Há mais profundidade, consistência dramatúrgica, personagens mais verticais. A novela é um gênero que tem muita lenha ainda para queimar, mas a tendência é que desapareça aos poucos. Quando estreei na tevê, em 1993, Renascer alcançava 70 pontos no ibope. Hoje, se uma novela atinge 40 pontos, é espetacular.

(Foto da página inicial: Marcos Camargo / Filme Via Láctea - Produtora Girafa Filmes)

 

 

Falabella: "Não faço teste do sofá, mas da casa inteira"

O ator, dramaturgo, diretor, cineasta e escritor Miguel Falabella não pára. Aos 55 anos, ele continua uma máquina incessante de atividades, embora já tenha percebido que precisa estabelecer prioridades. Uma delas anuncia com semblante decidido: deseja parar de atuar na televisão para se dedicar mais à dramaturgia. Como ator, só em teatro. “Queira ou não, a vida cobra um balanço depois dos cinquenta”, justifica.

Na desgastante rotina de pegar a ponte-aérea Rio-São Paulo toda semana, ele grava em solo carioca o inusitado seriado global Pé na Cova, que escreve e protagoniza, e voa para o palco paulistano para encarnar um comerciante avarento no delicioso musical Alô, Dolly!. Em ambos os trabalhos, ele contracena com a amiga de longa data Marília Pêra, a quem compara ao craque futebolista Messi. “Ela foi a minha primeira diretora de teatro e me disse que eu tinha uma coisa diferente no palco”, orgulha-se.

Falabella ingressou na televisão em 1982, em um episódio do programa Caso Verdade. Daí não parou mais. Entre outros trabalhos, atuou na novela Sol de Verão, escreveu o folhetim Salsa e Merengue e foi autor e ator dos seriados cômicos Toma Lá, Dá Cá e Sai de Baixo, este prometido para voltar nos próximos meses como especial. No teatro também é ativo e empilha sucessos, como a peça A Partilha, que migrou para o cinema, onde ele também marca presença, e As Sereias da Zona Sul, da época do chamado teatro besteirol. Em todos, deixa suas digitais – humor afiado e personagens incomuns.  

Nesta entrevista, ele explica porque o País carece de autores de musicais com sotaque brasileiro, conta que já se habituou às críticas e se diverte com o fato de chamar para os seus projetos televisivos artistas não necessariamente bonitos, porém bastante talentosos. “Mas não posso me queixar, a Globo apóia os meus absurdos.”

 

Por Edgar Olimpio de Souza     

 

O seu ritmo de vida continua frenético?

Vivo num furacão. Gravo Pé na Cova de segunda a quarta no Rio, depois viajo para fazer Alô, Dolly! em São Paulo. Sou hiperativo, tenho excesso de trabalho, responsabilidades e pressão, mas não paro porque me dói ver as pessoas desempregadas. Então invento projeto para encaixar todo mundo. Artista vive na corda bamba. Eu fiz A Partilha e lembro que falei para a Susana Vieira e Arlete Salles para não ficarem preocupadas que o público viria. A peça fez sucesso, acabou no cinema e ganhou montagem em doze países. Em contrapartida, por causa do musical Godspell (2002) quase vendi meu apartamento em São Paulo. Se não deu, vamos fechar o pano e pronto. Sucesso e fracasso são acontecimentos naturais, depende do peso que damos a eles. Existem coisas mais importantes, como a relação com as pessoas, com a profissão, com a vida.

Sua relação com Marília Pêra, na televisão e no teatro, é a melhor possível...

Marília é talentosa, tem amor pelo teatro, parece que brota do palco. Contracenar com ela é um privilégio, gera intimidade cênica. É como compor uma música juntos, observar a respiração do parceiro. Sinto que entro em campo e ao meu lado está o Messi. Ela foi a minha primeira diretora, em 1978, quando estreei no teatro com A Menina e o Vento, de Maria Clara Machado. Éramos um grupo egresso do Tablado (N.R.: fundado em 1951 no Rio de Janeiro por Maria Clara Machado, celeiro de formação de atores). Na época eu morava em Botafogo com a minha tia, tocou o telefone e era Marília: “você tem uma coisa diferente no palco”. Só tínhamos realizado uma apresentação e eu fazia uma pontinha porque fui um dos últimos a entrar na montagem. Foi o aval de que eu precisava para prosseguir na profissão.

Foi por causa de Alô, Dolly! que você despertou para a carreira artística?

Quando eu tinha oito anos, minha avó me levou para ver essa peça. Eu morava na Ilha do Governador e ela gostava de levar os netos para assistir os grandes musicais montados na Praça Tiradentes, no centro do Rio. Era seu presente de aniversário. Vi o espetáculo, estrelado pela Bibi Ferreira e Paulo Fortes (foto ao lado), e fiquei alucinado pelo universo do teatro. A imagem da Bibi no trem nunca saiu da minha cabeça. Na volta para casa, tudo parecia mais colorido. Ali decidi que era aquilo que eu queria fazer para o resto da vida. Alô, Dolly! tem uma carga emocional muito forte para mim.  

O ator brasileiro está mais apto para trabalhar em musicais?

Tem muita gente boa hoje em dia, tecnicamente preparada para formar o ensemble de um musical. Mas já vou avisando: não faço teste do sofá, mas da casa inteira! (risos). A maior parte do grupo eu conheci nos testes. A Karin Hills, por exemplo, eu nem sabia que tinha sido vocalista do grupo Rouge. Vi aquela mulher subindo no palco na audição de Hairspray e não tive dúvidas. Vários jovens estão estreando aqui. As audições, aliás, são fundamentais. Eu nunca passei em uma, mas sempre achei muito importante fazê-las. Cantar é um aprendizado, a gente aprende constantemente, é a grande beleza do teatro. Há sempre uma descoberta, um novo encantamento.

Embora distantes do padrão Broadway, estamos melhorando...

A evolução dos musicais brasileiros é nítida, exibimos cada vez mais condições técnicas. Há mais de trinta anos que vou à Broadway. Chama a atenção como eles são pródigos em elogios, orgulhosos de si mesmos, ainda que alguns espetáculos não sejam aquela Brastemp. Precisamos avançar nisso. Aqui a gente gosta de falar mal dos vizinhos, elogia-se pouco. Seria bacana montar musicais originais e influenciar as gerações seguintes, passar a tocha. Aos poucos a gente vai mudar o panorama, aprender a se gostar, a se respeitar, a dar valor ao que é nosso. É um aprendizado que leva tempo. 

Por que se montam poucos musicais de autores nacionais?  

O País tem um problema sério de autoestima. Eu escrevi uma adaptação de Memórias de um Gigolô, clássico de Marcos Rey, um musical em homenagem à cidade de São Paulo. A trama acontece nos anos 1930, uma época bonita, a cidade explodindo, com o Brasil inteiro vindo para cá. Até agora, no entanto, não consegui patrocínio. Para musicais americanos, arranjar grana é mais fácil. O Nelson Rodrigues estava certo quando disse que o brasileiro é o narciso às avessas, cospe na própria imagem.

Você fica relaxado no camarim?

Que nada, eu faço putaria (risos). A Marília não gosta de saber quem está na sessão. Eu já não ligo. No intervalo, para fazer terrorismo, eu falo para ela: aquele sujeito da primeira poltrona está com cara esquisita. Ou: sabe quem está aí? A Bibi Ferreira, na fila B. O riso é combustível do espírito. Eu me divirto muito em cena também. E meu personagem é delicioso, um comerciante avarento e mal-humorado que contrata uma viúva casamenteira para lhe arranjar uma esposa na cidade grande. O público grita bastante no fim, parece que a gente botou uma máquina de dar choque nas poltronas (risos).

Mesmo falando de um assunto incômodo, a morte, o seriado Pé na Cova caiu no gosto popular...

A morte é o pano de fundo, porque o foco do programa (foto ao lado) está na família disfuncional. Eu gosto do avesso, minha avó me ensinou a olhar o mundo assim. Mostro um Brasil que a gente finge não ver. O meu papel é o de um homem atônito que não está preparado para a realidade de hoje. A Marília interpreta uma maquiadora de defuntos louca, alcoólatra, amoral. O público ama o seu personagem. Meus programas têm sempre um psicótico, um doido, um travesti. Sou excêntrico e pago um preço por isso. A presença do casal gay Tamanco e Odete Roitman, por exemplo, é uma forma de ativismo. Ou seja, não preciso sair portando bandeira na Parada Gay. Mas somos aborígenes. Na coletiva de lançamento do seriado, os jornalistas queriam saber se teria beijo gay. Pode?

Chegou a pensar que o programa não seria aceito pela Rede Globo?

Eu imaginava sim que eles poderiam recusar uma atração que fala da morte e reúne tipos excêntricos. Mas, toparam. Se duvidar, vamos até ter merchandising. Quem sabe, uma fábrica de caixão e velas? (risos) O elenco de apoio do programa não é especialmente bonito. Mas o seriado exala um certo charme porque as situações apresentadas são bizarras, o humor surge do grotesco. É o avesso do avesso, a coisa mais cruel que já fiz. Eles são desvalidos, não têm nada, nem falar direito eles sabem. Mas embora tenha crueldade, também há muito afeto. Pé na Cova é o Miguel da Ilha do Governador querendo espaço, um Miguel suburbano, que lembra o meu pai de chinelo.  

Sai de Baixo, que pode retornar como um especial, também fugia dos padrões?

Aquele programa tinha um diferencial, um tipo de transgressão nunca visto na televisão. Tudo tão inverossímil e maluco, uma farra. A gente inovou sem querer. Sai de Baixo (foto ao lado) foi um humorístico que entrou na história da televisão brasileira ao virar a narrativa de ponta cabeça. O público não amava o programa por acaso. As filas para assistir às gravações no Teatro Procópio Ferreira eram imensas.

A televisão comporta programas transgressores?

A tevê tem uma estética careta, precisa de anunciantes, vive de vender sabão em pó. Mas a gente bota a cabecinha (risos). Eles querem gente linda. A juventude e a beleza mascaram a ausência de preparo. Uma carinha linda pode ser boa de ver, mas não se sustenta sem talento acoplado. Eu costumo dizer que a coisa mais fácil do mundo é entrar na televisão, porque há uma necessidade de renovação, de rostinhos bonitos. O problema, no entanto, é conseguir permanecer lá durante anos.

Hoje a migração dos palcos para a telinha já não é mais novidade, o preconceito da classe teatral contra o veículo acabou...

Esse pessoal de teatro que vai para a televisão é um movimento novo que o público identifica, reconhece e avaliza. É talento genuíno do palco, uma gente que tem algo a dizer e mostrar. Se ninguém abre a porta para eles, eu abro. Uma hora a direção vai me dizer: “tem muita gente feia, velha, tira” (risos). Todas as vezes que apresento minhas novelas sou ironizado: “lá vem o Falabella com seus velhos” (risos). Mas não posso me queixar, porque a Globo sempre tem sido minha parceira e dá apoio aos meus maiores absurdos. 

Por que decidiu parar de atuar na telinha?

Conforme a idade vai avançando, é preciso criar prioridades. Cansei um pouco de trabalhar como ator na tevê. Perco muito tempo gravando e quero me dedicar mais a escrever, criar musicais inéditos para o teatro, tenho milhões de projetos. Gosto do meu escritório, do meu computador. Estou trabalhando agora em The Drowsy Chaperone, que vai se chamar A Madrinha Embriagada, para estrear no Teatro Popular do Sesi, com entrada gratuita. Mas não vou deixar de ser ator, terei sempre o teatro. 

Você dá bola para a crítica?

Já me habituei a ser alvo, sofri toda espécie de bullying de jornalistas. No Brasil, dar certo e fazer sucesso são coisas pejorativas. Parece que você fez pacto com o Diabo, que aprontou alguma coisa. Esse ranço ainda sobrevive. As críticas nunca me jogaram no chão, sou como o boneco João Bobo. Em todo setor e lugar tem alguém falando mal de alguém, criticando o trabalho do outro sem conhecê-lo. O segredo é deixar esse povo para trás e seguir em frente. Não tenho mais a ingenuidade do passado.

Estar na faixa etária dos cinqüenta anos assusta?

Assusta um pouco porque, queira ou não, a vida cobra um balanço nessa fase. O que fiz até aqui? É um momento em que você debruça sobre si mesmo. A partir dos cinqüenta a morte vira uma realidade. Com trinta não pensava nisso. A clareza da finitude o obriga a fazer escolhas mais seletivas. Procuro estar bem para a minha idade, sem ser refém de uma vaidade histérica. Tive a época de desfilar nu no carnaval, mas agora a brincadeira é outra, não dá para ficar agarrado ao mesmo galho. Eu quero ser sueco, aprender a morrer sereno.

(Foto de abertura: Divulgação Rede Globo)

 

A doce vida

O diretor de teatro Celso Nunes decidiu chutar o pau da barraca e hoje está morando em Salvador, após quinze anos exilado em Florianópolis. Cansado das horas roubadas no trânsito paulistano, do agito e do estresse da metrópole, ele foi em busca de uma reciclagem existencial. Um dos nomes mais importantes das artes cênicas do País, afirma não sentir nem um pingo de arrependimento da atitude que tomou. “As mudanças são necessárias para dar uma chacoalhada na gente”, justifica. Nunes só tem aparecido no eixo Rio-São Paulo para tocar projetos teatrais para os quais é convidado ou visitar amigos e familiares. Nos próximos meses deverá pilotar três trabalhos na Cidade Maravilhosa. “Ainda sou chamado porque tenho 46 anos de teatro nas costas.” 

 

No início deste ano, por exemplo, circulou alguns dias pela capital paulista para acompanhar como diretor o início da temporada da comédia Estranho Casal, de Neil Simon, recém-chegada de vitoriosa carreira nos palcos cariocas. O primeiro sinal de que alguma coisa havia mudado na sua visão de mundo aconteceu logo nas primeiras horas. Em caminhada pelo centro, ele se flagrou surpreendido ao observar o figurino extravagante de algumas pessoas, em contraste com a concretude da cidade. Notou que, por mais excêntrico e incomum que possa ser o visual de alguém, hoje em dianinguém parece se incomodar. Lembrou-se então da época em que trabalhava como office-boy, nos anos 1950, e testemunhou um episódio marcante na Rua Barão de Itapetininga.

 

Tudo começou quando percebeu um burburinho se formando em torno de um sujeito que desfilava de saiote pelas ruas do centro. Soube depois tratar-se do artista Flavio de Carvalho, personagem iconoclasta do modernismo brasileiro que tinha como um de seus esportes a irreverência. Naquele desfile incomum, ele queria afrontar as convenções sociais. “Virou um escândalo, chamavam-no de palhaço, doido, mulherzinha. Hoje em dia passaria batido, não soaria provocação, ninguém nem ligaria, talvez.No fundo no fundo, estou defasado para as extravagâncias da megalópole”, ri.

 

Pode parecer estranho que um diretor de reconhecido prestígio na cena teatral se espante com uma moça exibindo indiscreto tomara-que-caia numa tarde chuvosa, em meio a executivos engravatados e outras pessoas em trajes convencionais. Afinal, Nunes tem mestrado e doutorado em teatro, sólida formação cultural, curso de direção na Sorbonne, foi professor na Unicamp, ex-estagiário do reverenciado diretor polonês Jerzy Grotowski e acumula espetáculos marcantes no currículo. Por sinal, ele passeia com desenvoltura por diversos gêneros e dirigiu artistas famosos: Equus (com Paulo Autran), Escuta, Zé! (Marilena Ansaldi),As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (Fernanda Montenegro e Renata Sorrah), Honra (Regina Duarte e Marcos Caruso), K2 (Gabriel Braga Nunes) e Molly Sweeney (Júlia Lemmertz e Ednei Giovennazzi).

 

Na verdade, a estranheza logo cai por terra se observado um fato – o de que Florianópolis, antes, e Salvador, agora, forneceram-lhe outros parâmetros culturais. “Eu mudei completamente meu jeito de viver. Perdi algumas referências e ganhei outras, descobri que a vida oferece mil significados diferentes e que compete a cada um saber desfrutá-los”, explica. “Quando eu poderia imaginar que andaria descalço o dia inteiro e mergulharia no mar às três da madrugada?”, indaga-se, ressalvando que não virou ermitão por ter abandonado radicalmente o corre-corre de uma metrópole. O que buscou foi uma espécie de upgrade interior.  

 

Foi em meados dos anos 1990 que ele sentiu o estalo de que a desenfreada loucura de uma cidade grande estava confiscando-lhe parte da sua preciosa vida. O cálculo que fazia era uma simples matemática: três horas diárias paradas no trânsito equivaliam a um dia perdido por semana. Num mês, significavam quatro dias a menos. Num ano, um mês e meio subtraído. Desistiu. “Queria viver 365 dias por ano e não 320, parecia que eu definhava aos poucos dentro daquele mundo de latas”, recorda. 

 

Somaram-se à decisão de jogar tudo para o ar outros fatores. Um deles, a rotina de emendar espetáculos, média de quatro a cinco anuais, quase sem tempo para respirar. Para completar, vivia um período longo de lutos familiares. “Em algum momento eu acabaria transportando esses conflitos pessoais para o meu trabalho, com inversão dos pólos, correndo o risco de transformar comédia em drama ou vice-versa”, revela.

 

Silêncio e isolamento. A virada finalmente aconteceu quando a atriz Christiane Torloni o apresentou para um profissional de bioenergia que a havia curado de uma rouquidão durante a temporada bem sucedida de um espetáculo. Foi através dele que Nunes entrou em contato com o Rolfing, processo terapêutico de reintegração estrutural e de educação pelos movimentos. Estudando a relação da anatomia física com o comportamento, percebeu que carregava o padrão anatômico de alguém que exercia algum tipo de autoridade. “De fato, eu era chefe de departamento na Unicamp, chefe de família, diretor, professor, ou seja, estava sempre na posição de liderança de alguma coisa. Daí passei por um processo de descondicionamento.”

 

Estimulado pelos princípios do Rolfing, e definitivamente enfastiado da rotina da metrópole, transferiu-se de mala e cuia para a capital de Santa Catarina. Apesar de alguns amigos seus indicarem conhecidos que moravam na ilha, dispostos a ajudá-lo na adaptação, preferiu não recorrer a ninguém. Optou pelo silêncio e isolamento. O início foi difícil, mas arranjou-se. Comprou um barco, aprendeu os segredos da navegação e passou a se relacionar com freqüentadores do mundo náutico.

 

“É um desafio porque você chega sem conhecer ninguém e ninguém sabe nada de sua pessoa, ambos os lados estão desarmados”, explica. Em Florianópolis, sobreviveu da aposentadoria como professor, de oficinas e workshops teatrais, do consultório de Rolfing que abriu e dos convites para dirigir em São Paulo e Rio de Janeiro, além de eventualmente assinar produções locais - uma montagem do texto As Criadas, de Jean Genet, estreou há pouco na cidade. Apesar de totalmente adaptado ao ritmo caiçara, decidiu zerar outra vez, “descondicionar-se”, como prefere dizer, nesta nova etapa de vida em Salvador. 

 

“Agora eu quero investigar a relação do corpo com o comportamento e a emoção no candomblé. Como ´baixam´ as entidades espirituais? Como se recebe um orixá? São questões que me interessam hoje”, justifica ele, que comprou uma unidade num apart-hotel naquela cidade. “Como disse, não tenho medo das mudanças. Você olha tudo o que juntou e percebe que pouca coisa é essencial. O maior barato é deixar a possibilidade do desconhecido roçar em você. Entre o conforto de uma vida tranqüila e o desconforto do trabalho em si mesmo, prefiro o último”, confessa.

 

Com 68 anos de idade e quase meio século de carreira no teatro, Nunes acha que está no lucro. Atravessa a maturidade com a saúde em dia, comemorando o fato de não ter tido AVC, infarto, perda de dentes e ainda sentir ótima disposição sexual. “Imagina esse coração aqui, que pulsa oitenta vezes por minuto, quantas vezes já bateu? Sou um privilegiado”, acredita ele, que busca articular uma rotina com o mínimo de estresse possível. Diferentemente da maioria, não se deixa seduzir pelas ferramentas de comunicação – faz questão de não ter celular ou pendurar página no Orkut. Não é contra as facilidades tecnológicas e redes sociais, mas vê futilidade na forma como são usadas. 

 

“Antigamente a gente procurava um local protegido ao falar por telefone, hoje o celular expõe a sua vida a todos os que estão por perto. Outro dia, no ônibus, uma mulher falava pelo aparelho e todo mundo acompanhou a sua discussão com o marido”, conta. A chegada da internet, avalia, gerou uma espécie de preguiça mental. “Como toda a informação do mundo está ali disponível a qualquer momento, isso dá bastante tranqüilidade, o que não quer dizer que a pessoa vai consultar, pesquisar e estudar mais. É como a máquina de calcular, que pensa no seu lugar. Hoje muitos têm de pensar duas vezes para dizer de cabeça quanto é nove vezes sete”, compara.

 

Pompa e barbárie. Para quem viveu intensamente os anos 1960 e chegou a engrossar o movimento dos estudantes rebeldes em Paris, em 1968, ele enxerga que os tempos atuais distorceram vários conceitos daquela época. Se antes, por exemplo, cultuava-se a beleza, o negócio agora é celebrar o corpo esculpido em academias. E as mulheres, que conquistaram várias liberdades e entraram de vez no mercado de trabalho, atualmente vêem os homens como uma caixa preta desvendada. “A Xuxa, quando engravidou, instalou o modelo da produção independente e todos se chocaram. Hoje, é algo natural. Alguns valores sociais e morais se banalizaram e, na cultura,vivemos um processo de vulgarização dos cânones antigos.”

 

Isso não significa, pondera, olhar a realidade com tintas nostálgicas. “Não traço um script, não tenho um modelo a ser aplicado, gosto da maneira de pensar da gestalt ao tratar de expectativas. A quem interessaria um mundo que correspondesse aos meus anseios?”, questiona. “Não sou egocêntrico e prefiro os que me vêem como sou do que os que tentam ver em mim o que esperam que eu seja. Se, longe das expectativas recíprocas, houver entre as pessoas possibilidades de encontros, ótimo. Se não, não há nada a fazer. Aplique este raciocínio aos casamentos e ficará fácil entender porque muitos acabam.”

 

Cita a peça Estranho Casal como exemplo. “O autor Neil Simon radiografa um jogo de projeção mútua, um personagem tentando colonizar o outro”, explica ele, que foi casado com a atriz Regina Braga, com quem teve dois filhos, o ator Gabriel Braga Nunese a fisioterapeuta Nina Braga Nunes. A partir da separação, consumada na virada dos quarenta anos, Nunes viveu outros romances, apaixonou-se, mas decidiu não mais dividir o mesmo teto com alguém. Concluiu que qualquer outra experiência estaria aquém de seu casamento, mesmo porque havia decidido a não ter mais filhos e só isso, na sua opinião, já sinaliza a superioridade da sua primeira e única união conjugal.   

 

Na breve passagem por São Paulo, Nunes incomodou-se também com o apego dos paulistanos a alguns formalismos burgueses, uma certa pompaaté no simples ato de sair para jantar. Numa noite, “escoltado” por duas conhecidas amigas, foram a um badalado restaurante nos Jardins, embora ele preferisse um lugar mais simples. Final da história: mesmo com a casa quase vazia,o atendimento demorou, parte do pedido foi esquecida ea porção tinha pouco de “generosa”. Não bastasse, a mesa era pequena e as cadeiras imensas e fundas, o que os obrigou a sentarem-se na beira do assento. Para completar, aconta veio salgada. Para ele, a impressão é a de que muitos temem afirmar suas singularidades, escudando-se em comportamentos padronizados. 

 

Hospedado na ocasião num hotel próximo da Praça da República, Nunes também percebeu sinais eloqüentes de deterioração pública no centro da cidade: prédios fuliginosos epichados, sujeira espalhada, usuários de drogas perdidos pelas ruas. Chamou a sua atenção um cartaz com foto de um índio na mata, soltando flechas e um trator desmatando atrás dele. Constatou o retrato de uma estratificação social, os muros invisíveis que são erguidos e desenham os contrastes brutais da realidade brasileira.

 

A mídia, observa, teria alguma responsabilidade nessa realidade. “Por um lado ela criou uma cultura planetária interessante, mas de outro fomentou um comportamento de indiferença em relação ao outro”. Para Nunes, se alguém não é capaz de bloquear o celular durante as duas horas de um concerto, é porque a barbárie venceu. “No fundo, as pessoas fazem questão de agir como gados. Muitos se tatuam não por uma razão original, mas porque morrem de medo de não pertencerem a uma tribo.”  

Edgar Olimpio de Souza

     

Dos palcos para a telinha

Houve um tempo em que ator que pisava num palco dificilmente botava a carinha na telenovela. Eram duas trincheiras que praticamente não se bicavam. O primeiro rendia pouco dinheiro e fama restrita, mas conferia prestígio. O segundo remunerava bem e garantia popularidade, porém, a crítica especializada ignorava. Nos últimos anos, o preconceito de ambos os lados ruiu. Atores de sólida carreira no teatro, que já interpretaram grandes personagens da dramaturgia mundial, agora saltam naturalmente de um Godot para um cangaceiro, de um Shakespeare para Sílvio de Abreu.

Na inovadora Cordel Encantado, novela das seis da Rede Globo, alguns premiados intérpretes teatrais emprestam seus talentos à trama escrita por Thelma Guedes e Duca Rachid, mix de histórias da realeza européia e do cangaço brasileiro. Sãos os casos de Emílio de Mello, João Miguel, Mariana Lima, Domingos Montagner, Matheus Nachtergaele e Zé Celso.

Se estivéssemos nos anos 1980 e 90, eles certamente seriam discriminados pelos colegas de palco por terem se deixado seduzir por uma arte “menor”, apenas para “comprar eletrodomésticos”. Hoje, no entanto, esse debate soa datado. “Imagina, até a Fernanda Montenegro, a grande dama do teatro, faz novela”, ilustra Ricardo Waddington, 50, diretor de núcleo da emissora e supervisor geral de Cordel Encantado.

Quem agradece a diluição das fronteiras é o telespectador, brindado com performances de gala de quem se formou dentro do rigor técnico e densidade psicológica do teatro e agora leva toda essa preciosa bagagem para a telinha. Alguns roubam literalmente as cenas dos galãs e mocinhas conhecidos.

Sem exagero. “Eu continuo não gostando de novela, mas estou contribuindo para resgatar o calor do Chacrinha e mostrar que a arte também dá dinheiro, como provaram os geniais cineastas Rosselini, Pasolini e Fellini, que assinaram vários projetos para a televisão italiana”, provoca o ator, autor e diretor Zé Celso (foto ao lado), 74. Figura polêmica, ele revolucionou os palcos brasileiros com o lendário Teatro Oficina e encenações controvertidas, como O Rei da Vela (1967) e a monumental Os Sertões, com trinta horas de duração. Em sua estréia televisiva, encarna o profeta Amadeus. Em algumas  gravações, a diretora Amora Mautner chega a implorar para que ele não exage tanto na interpretação.

Pouco conhecida do grande público, mas queridinha no teatro, Mariana Lima, 38, tem história no palco. Passou pelo inquieto Teatro da Vertigem, de onde despontou o colega Matheus Nachtergaele, o Miguézim da novela, e arrepiou na pele de uma madame fútil na peça Pterodátilos, que lhe valeu o Prêmio Shell de melhor atriz. Ela, que já havia atuado em O Rei do Gado, de Benedito Ruy Barbosa, vive a Rainha Helena. “Não vejo conflito algum em pular de um para o outro. Ambos exigem talento, técnica e dedicação. A novela é uma obra requintada também”, acredita.

Ainda considerando-se novato na telinha, apesar de ter feito minisséries (Anos Rebeldes, por exemplo) e a novela Pátria Minha, de Gilberto Braga e Alcides Marinho, o ator Emílio de Mello, 45, faz coro. “Preconceito nunca é bem-vindo, trata-se de um trabalho como outro qualquer”, assinala o general Baldini, que até outro dia estava na badalada montagem In On It e atualmente assina a montagem Deus da Carnificina. “Não tenho vergonha de admitir que ainda não sei fazer tevê.”

Premiado pelos monólogos Bispo e , João Miguel (foto ao lado), 41, se diz encantado com o novo trabalho. “O texto tem consistência dramática, textura cinematográfica, fotografia especial e um elenco que reúne diferentes escolas e estilos de interpretação”, elogia ele, chamado para viver o vaidoso Belarmino. O personagem é braço direito do rei do cangaço Herculano, encarnado por outro bicho de teatro, Domingos Montagner, da circense Cia La Mínima, que também viveu um charmoso empresário no seriado Divã.

A máquina. Definitivamente, a migração do teatro para a televisão parece não causar mais traumas e atritos. O primeiro grande ator de teatro que resistiu, mas acabou cedendo, foi Paulo Autran. Sua estréia na novela Pai Herói (1979), de Janete Clair, foi tão comentada na época que mereceu ampla reportagem no Fantástico. Uma segunda “traição” teve como símbolo o ator Luís Melo, estrela da companhia do mago Antunes Filho. Bastou aceitar um papel em Cara e Coroa (1995), de Antônio Calmon, para provocar um terremoto na relação com o cultuado diretor do referencial CPT – Centro de Pesquisas Teatrais.

No início desta década, a peça A Máquina, de João Falcão, fez tanto sucesso no eixo Rio-São Paulo que seus protagonistas Wagner Moura, Vladimir Brichta e Lázaro Ramos foram cooptados pela Rede Globo e hoje passeiam com desenvoltura por novelas, minisséries e seriados. Brichta sua a camisa no seriado Tapas & Beijos e Ramos brilhou em Insensato Coração, de Gilberto Braga e Ricardo Linhares.

Como explica Mauro Alencar, 48, Doutor em Teledramaturgia pela USP – Universidade de São Paulo, a fronteira entre os veículos embaçou de vez. Peças são filmadas e passam na televisão, a internet transmite novelas, o teatro usa recursos de vídeo, o cinema incorpora técnicas televisivas. “Hoje o ator transita por todas as mídias. Não dá para falar em ator de novela, de cinema, de teatro. Ele é simplesmente ator", diz.

Marco Ricca (foto ao lado), 48, o vilão Samir Hayalla de O Astro, de Alcides Nogueira e Geraldo Carneiro, notou sua conta bancária melhorar quando topou o convite do diretor Luiz Fernando Carvalho para estrear em Renascer (1993), de Benedito Ruy Barbosa. No teatro, o que ganhava dava apenas para cobrir as despesas. Os colegas, os mesmos que hoje transitam sem culpas pela telinha, quase o crucificaram. “Às vezes é preferível fazer novelas que peças de viés televisivo ou publicidade”, desabafa ele, que já interpretou papéis shakespearianos de peso como Hamlet e Ricardo III. “O que importa é trabalhar com dignidade, o teatro não é reserva de mercado dos bons costumes.”

8 Assim como ele, Luís Melo nunca deixou de fazer teatro, onde se consagrou na década de 1990 com os espetáculos Trono de Sangue e Vereda da Salvação. No momento, ilumina o trambiqueiro Oséas em Morde e Assopra, de Walcyr Carrasco. “A televisão mudou, está investindo tempo e dinheiro em projetos mais ousados e de risco, por isso está absorvendo atores com o nosso perfil”, explica ele, que encenou recentemente o ótimo RockAntygona. Para Melo, ao recrutar intérpretes do nível de Emílio de Mello, Matheus Nachtergaele, João Miguel, Mariana Lima e Zé Celso, Cordel Encantado se rende à evidência de que o teatro brasileiro é um celeiro de grandes talentos.

Sucesso a qualquer preço. Quem não gosta nada dessa pulverização que encurta a distância entre as coxias do teatro e os estúdios de gravação é o encenador Antunes Filho (foto ao lado), 81. Ele até entende que os atores busquem uma remuneração mais atraente nas novelas, mas não se conforma quando eles passam a priorizar a publicidade ou levam a linguagem naturalista do folhetim eletrônico para os palcos. “Na televisão, o ator vira um funcionário com trejeitos de ator, se transforma na gracinha da vovó e da titia”, fustiga ele, que poupa Luís Melo, com quem reatou anos atrás. Nem Zé Celso escapa. “Ele gosta de brincar, leva a vida como se estivesse em um playground.”

O dramaturgo Luis Alberto de Abreu (Auto da Paixão e da Alegria / O Livro de Jó), 59, sempre sobreviveu de suas peças. Ao ir para a televisão, onde assinou as elogiadas minisséries Hoje É Dia de Maria (2005) e A Pedra do Reino (2006), não se sentiu vendendo a alma ao diabo. “Quem disse que a tevê é uma linguagem menor? Não é o veículo que determina o grau de alienação, mas o olhar de quem vê”, ensina.

Um dos mais renomados autores de telenovelas (Mulheres Apaixonadas), Manoel Carlos, 78, acha ocioso resgatar esse Fla x Flu que opõe uns e outros. “O que vai fazer a diferença é a qualidade de cada intérprete”, garante ele, que em suas obras costuma valorizar a presença de intérpretes com formação teatral. “Eles têm mais conhecimentos gerais, o que facilita o entendimento do processo”, justifica. A televisão só não garimpa mais gente no teatro porque, segundo o autor, muitos firmam compromissos de longo prazo no palco, o que os impedem de gravar até noite adentro quando necessário.

 

Cara e coroa

“O ritmo da tevê é mais agressivo, não tem reunião de elenco, exige-se resultado a qualquer custo. O teatro é um encontro, ensaio, preparação, estudo” (Marco Ricca)

“No teatro você dimensiona a sua sensibilidade, a concentração, a disponibilidade física, a voz, o corpo. A tevê é mais fechada, atrofia a expressão, se fala quase sussurrando” (Luis Melo)

“Não vejo diferenças na interpretação, essas divisões são reducionistas. Em ambos, o ator tem de transcender, excitar o público” (Zé Celso)

“Uma coisa é você interpretar para 400 pessoas ao vivo, outra é gravar no estúdio. O tamanho do gesto muda” (Mariana Lima, foto ao lado)

“No teatro eu domino todo o processo, o personagem estréia pronto. Na tevê, sou uma peça da engrenagem, o personagem vai se depurando ao longo de oito meses” (Emílio de Mello)

“Na tevê, sou instigado a construir um personagem de uma obra aberta. No teatro, mergulho na psicologia do personagem, na sua dimensão mais profunda” (João Miguel)

(Foto de abertura: novela Cordel Encantado / Divulgação TV Globo)


Edgar Olimpio de Souza

(Reportagem publicada originalmente na Revista da Gol)

O anti-herói da América

Faz cinco anos que o carioca Júlio Adrião percorre o Brasil e o Exterior com uma peça de Dario Fo que vira do avesso a epopéia do descobrimento das Américas. Em todas as praças o sucesso é arrebatador. Numa das apresentações chegou a ser chamado de punk por um entusiasmado adolescente. O curioso é que em A Descoberta das Américas não existe cenário, tampouco música ou vinhetas sonoras, desenho de luz ou troca de figurino. Nada do que se convencionou em uma montagem teatral.

Ele está literalmente sozinho em cena, mas nem parece. Isso porque o ator faz misérias usando seu corpo, voz, expressão e muita, mas muita, imaginação. Com naturalidade impressionante, interpreta índios e espanhóis, animais, Jesus e Madalena – o espectador tem a impressão de que está vendo tudo o que é sugerido. É uma performance tão arrebatadora que coleciona prêmios, aplausos efusivos do público e críticas favoráveis desde 2005, quando o espetáculo iniciou carreira e parece que, tão cedo, não irá se aposentar.

Nem deveria. O texto do dramaturgo italiano Dario Fo, escrito em 1992 para comemorar meio milênio do descobrimento do Novo Mundo, é uma versão transgressiva e transgressora das viagens de Cristóvão Colombo, que expõe as entranhas da formação da nossa identidade. Não há como não se seduzir pelas histórias mirabolantes que o ator vai desembrulhando no palco, como se fosse um contador de causos e histórias, na pele do malandro Johan Padan que embarca por engano em uma das caravelas do navegador e explorador europeu. Nas Américas, o anti-herói é escravizado por índios canibais, safa-se da morte certa fazendo milagres, vira líder venerado, forma um exército indígena e acaba caçando os espanhóis invasores.   

“O desafio atual é manter o grau de qualidade dentro de uma partitura que eu controlo desde as primeiras encenações, o que não quer dizer repetir, mas refiná-la”, diz o carioca Adrião, 49 anos, que já carimbou mais de quinhentas apresentações. “É como uma orquestra que toca uma sinfonia hoje para um público e amanhã já tem um outro à sua espera”, acrescenta. “E tenho que exercitar tudo tão bem como da primeira vez, sem perder o viço e a vitalidade. Não há espaço para algo mais ou menos.”

Ao longo desses anos a bordo do espetáculo,ele viveu experiências inusitadas. Em 2007, por exemplo, exibiu-se na Feira de Literatura de Passo Fundo sob uma lona com capacidade para mais de cinco mil  pessoas. Em se tratando de montagem intimista, o estilo show de rock foi um choque. Em contrapartida, também se apresentou para um único espectador pagante, no início da carreira do espetáculo. “Para dar idéia de casa cheia, espalhamos gente da produção pela platéia”, diverte-se.

A peça já foi encenada em todos os cantos do País e até desembarcou em Portugal, para onde retorna no final de maio para um tradicional festival na cidade do Porto. Na volta, percorrerá seis cidades brasileiras. Não está descartada ainda uma pequena turnê por Macau, Cabo Verde, Angola e Moçambique, países de língua portuguesa. Adrião chegou a montar uma versão na Itália, num festival local, com boa repercussão. “Já vi em DVD uma montagem com duas horas e meia estrelada pelo próprio Dario Fo, um mestre da palavra e do movimento, e olha que na época ele tinha 70 anos”, elogia. Hoje o dramaturgo tem 83.

Experiência internacional. Se o perfil do público varia, os elogios não. Certa vez, nos camarins, um espectador sapecou: “A montagem é tão louca que até esqueci que você estava dentro”. Em Niterói, um roqueiro levou a turma toda, que nunca tinha ido ao teatro. Ao final, um deles lascou: “Aí, tu é punk mesmo”. A intempestiva crítica de teatro carioca Bárbara Heliodora cravou: “O espetáculo preserva a ilusão da improvisação, parece que está sendo feito pela primeira vez, fala de um assunto como se tivesse acabado de lembrar.”

Adrião tem formação eclética. Cursou a prestigiada Casa de Artes de Laranjeira, trabalhou seis anos na Itália com o Teatro Potlach e outras companhias, integrou o trio cômico carioca Companhia do Público, dirigiu circo-teatro e ópera. A temporada européia foi fundamental para desenvolver habilidades em commedia dell´arte e teatro de rua. Foi uma experiência mais prática que acadêmica, de intenso treinamento físico, que serviu de âncora para montar A Descoberta das Américas. “A forma de contar a história surgiu a partir de exercícios de improvisação e a partir daí fui criando a partitura”, conta.

Há uma expectativa em torno do que o ator fará depois desse espetáculo, o que ele particularmente acha positivo porque não o estão aprisionando ao personagem. A ansiedade é em torno do teatro porque no cinema ele figura no elenco de dois filmes. Em Tropa de Elite 2, de José Padilha, fará nada menos que o governador do Rio de Janeiro. Em A Quente, de Juliana Reis, um plantonista no setor de emergência de um hospital. “Em algum momento vou largar A Descoberta das Américas e cair em outros projetos, mas a peça ainda está com a agenda lotada neste ano”, avisa. Um de seus sonhos é montar texto do poeta, contista e romancista Fausto Wolff (1940-2008), de escrita ácida, mas não teatral, um desafio para transpô-lo para a linguagem dos palcos.

Ator operário. Não são poucos os que estranham a ausência do ator em alguma novela ou minissérie na televisão, já que o discurso padrão na classe artística é a de que é impossível viver só de teatro. Não é o caso de Adrião, que garante sobreviver só do ofício. “O fato de ter o reconhecimento do público é um bom argumento na hora de acertar um cachê”, assinala. Na minissérie Amazônia, exibida pela Globo em 2007, ele chegou a fazer testes para interpretar um preceptor de Chico Mendes, um comunista foragido da Coluna Prestes. O Távora apareceu apenas em dois capítulos, mas era um sujeito importantíssimo porque foi responsável pela alfabetização de Chico Mendes.

“Não tenho nada contra a tevê, que é um excelente veículo para quando tenho tempo e saco”, brinca. “Também não critico quem faz novelas, talvez seja obrigatório mesmo para se ganhar dinheiro na profissão. Não acho que um ator tem de fazer de tudo. Tem gente que só prefere fazer cinema, outros querem apenas teatro, há quem privilegia televisão, qual o problema? Só não dá para ser ingênuo: atuar em telenovela significa também lidar com a mídia de celebridades, se transformar no alvo de qualquer coisa, para o bem e para o mal, perder a privacidade”, avalia ele. No ano passado, ele trabalhou em um docudrama na tevê inglesa sobre cidadãos americanos que se tornaram prisioneiros por tráfico de drogas. Foi escolhido por falar perfeitamente inglês.

Foi na virada dos 40 anos, quando montou A Descoberta das Américas, que Adrião conseguiu relativa autonomia profissional. Mas para chegar até aí, nada caiu do céu. O ator já fez muito o circuito do chamado teatro corporativo, exibindo-se em empresas e indústrias. “Já me apresentei em linhas de montagem e automotiva, junto aos operários, botava duas cadeiras no chão e mandava ver, durante meia hora eu teatralizava situações de segurança no trabalho”, lembra. “Foi enriquecedor porque se eles nunca tinham visto teatro, eu também nunca havia estado numa linha de montagem”, ressalta. “O fato é que esse tipo de trabalho me deu de comer e à minha família durante muito tempo. Como costumo dizer, tudo vale a pena, desde que você esteja a fim.”

(Fotos de Maria Elisa Franco)

 

Assista cena do espetáculo A Descoberta das Américas

 

 

 


 

 

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