EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Race

Incômodo, perturbador e cortante, o texto do dramaturgo norte americano David Mamet apresenta seres que golpeiam e sofrem contragolpes na mesma proporção. Não há alívio nas palavras vociferadas, nos embates cara a cara, nos choques interpessoais. Nada que surpreenda, porque o autor aporta em cena um assunto por demais espinhoso – o desconforto que comumente fustiga os brancos quando falam de negros ou se dirigem a eles. Ou seja, trata-se de uma peça que alavanca questões sobre a natureza universal da culpa e da vergonha. A adaptação brasileira, assinada por Gustavo Paso e encenada pela irrequieta companhia carioca Teatro Epigenia, potencializa a força da obra desembrulhando uma montagem febril, inteligente, cirúrgica.

Aqui, os diálogos são crus e reveladores do desespero, arrogância e do espírito dissimulado dos personagens. O público chega a se sentir inserido em um típico drama de tribunal. O cenário, no entanto, é um asséptico escritório de advocacia, aparentemente afortunado, pilotado por dois sócios useiros e vezeiros de jargões profissionais, o caucasiano Jack e o afrodescendente T.J., que se comportam menos como advogados e mais como homens de negócios. Há ainda uma assistente novata negra, a idealista Susan, recentemente admitida. A banca reluta em assumir um caso complicado, a defesa de Charles, um milionário branco acusado publicamente de estuprar uma jovem negra em um quarto de hotel, transgressão que ele refuta – segundo sua versão, ambos mantinham um relacionamento consensual e certamente aconteceu um mal entendido. 

A matéria, que envolve cor da pele, assédio e implicações variadas, é uma chaga aberta. O tratamento que Mamet concede ao tema avança além do território da racionalidade. A entrevista inicial de Jack e T.J. com seu potencial cliente é sacudida por frases hostis e insinuações que denotam a atitude um tanto amoral dos dois especialistas. Aborda-se o processo legal, que possivelmente não irá se apoiar na justiça, mas em um julgamento contaminado por preconceitos, suposições e condicionamentos históricos. Comentários sobre o papel indigno dos meios de comunicação também são entabulados ao longo da conversa. Sutilmente a política interna da casa ganha contornos. Ações escassamente transparentes ali desfechadas acabaram por gerar descobertas desagradáveis. Susan, por exemplo, que tem a aparência de uma mulher passiva e inexperiente, pode ter sido vítima de discriminação durante o processo de sua contratação.

Em meio ao ambiente formado de desconfianças, ataques e colisões, o trabalho precisa prosseguir. Um dos advogados propõe uma linha de atuação preliminarmente bem sacada. A suposta agredida relatou que seu vestido de lantejoulas vermelho foi rasgado durante o ato forçado. Porém, no relatório policial não há referência a esses enfeites que previsivelmente deveriam estar espalhados pelo chão.

O enredo ludibria o espectador, preocupado em saber se, de fato, o crime ocorreu e qual será a sentença do juiz. A inocência ou culpa do milionário, todavia, pouco interessa. A suposta barbaridade serve de pretexto para deflagrar outras reflexões e perspectivas: branco x negro, homem x mulher, patrão x funcionário, moralidade x amoralidade. Efetivamente, não se trata de um estudo restrito ao racismo e suas consequências. Retórico, o texto examina as artimanhas de dominação e da política sexual contemporânea, tece observações agudas sobre discriminação, mostra o lugar do indivíduo na sociedade e como a hipocrisia e o cinismo se infiltraram nas relações sociais.    

A precisa direção de Paso deixa o espetáculo fluir com naturalidade. Embalada por sequências curtas e exaltadas, a encenação organiza e delineia de forma desembaraçada o conflito no palco. O diretor lida com uma série de conteúdos interessantes e controversos sem recorrer a qualquer concessão e artifícios descartáveis. Obviamente porque confia na dramaturgia instigante, no sarcasmo do ensaísta e na força do elenco, que transpira a urgência necessária e busca infundir humanidade às criaturas. O concerto é afinado e harmonioso, sintonizado com a proposta de uma encenação austera. Criada pelo diretor e Luciana Falcon, a cenografia ajuda a iluminar a atmosfera enervante que adensa a montagem – a plateia se divide em duas partes e o espectador vira uma espécie de jurado involuntário.      

Gustavo Falcão encarna Jack, que se esforça em ser a pessoa mais fria e equilibrada da sala. Mais contido que o parceiro, está convencido de que paira acima das armadilhas raciais por entender o problema, mesmo se contradizendo em muitos instantes ao dizer e fazer coisas belicosas, de feição racista e sexista. O desempenho do ator é contundente e a forma acelerada como se expressa verbalmente indica uma tentativa de opressão pela linguagem. Em uma passagem, afirma que todas as pessoas são estúpidas e que os negros não estariam isentos dessa realidade.

Na pele do defensor negro, Leandro Vieira tem forte presença cênica. Sua atuação é cheia de fúria e evidencia a soberba de T.J., um sujeito que caminha sobre campo minado e não oferece conforto algum ao réu. Primeiro a detectar o teor explosivo do delito, ele acredita compreender a essência humana e o sistema de justiça, a ponto de vislumbrar a conduta dos jurados negros e brancos no eventual julgamento.

Convincente e segura, Heloísa Jorge dá vida à Susan, a assistente enigmática, de atitudes ambíguas e motivações vagas, que se aproveita das circunstâncias de sua raça, sexo e posição subalterna no gabinete. Por longos minutos ela permanece em silêncio, só espreitando os colegas, mas aos poucos sua lealdade é posta em cheque e sua presença se torna crucial à história. Sem recorrer ao estereótipo, Clovis Gonçalves empresta credibilidade ao homem acuado, em dúvida se deve se sacrificar ou buscar a redenção. Com o desenrolar dos acontecimentos, episódios vergonhosos do passado de Charles emergem, como uma mensagem escrita em um velho cartão postal endereçado a um amigo. Sua performance é firme, eficiente e franca.

Mamet concebeu um trabalho tenso e envolvente, movimentando figuras que funcionam como veículos para externar ideias e pontos de vista. Ele costuma enxergar o mundo como uma luta territorial pela subjugação, uma guerra sem tréguas pelo poder. Em Olleana, encenada recentemente pelo Teatro Epigenia, o eixo central gravitava em torno de uma persuasiva batalha entre uma geração que tenta preservar o controle e o mando e jovens ascendentes que procuram cavar seu lugar. Não há vencedores nem perdedores nessa arena. A dúvida sobre quem, afinal, tem razão jamais se dissipa. Sobra a convicção de que somos ensinados desde pequenos a camuflar e disfarçar nossos preconceitos étnicos e intolerâncias ao diferente.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Geraldo Júnior)

 

Avaliação: Ótimo

 

Race

Texto: David Mamet

Direção: Gustavo Paso

Elenco: Gustavo Falcão, Leandro Vieira, Clovis Gonçalves e Heloísa Jorge.

Estreou: 01/04/2017

Viga Espaço Cênico (Rua Capote Valente, 1.323, Pinheiros. Fone: 3801-1843). Segunda a quarta, 21h. Ingressos: R$ 30. Até 31 de maio.

Acorda pra Cuspir

Na ótica aguda e nada complacente do dramaturgo americano Eric Bogosian, o mundo de hoje é insensato, pratica a hipocrisia religiosa, induz o homem à alienação, tem obsessão pelo dinheiro e cultua as celebridades ao ponto de acompanhá-las avidamente em suas rotinas triviais e vazias. Ele mira sua metralhadora para os oprimidos, o rico arrogante, as filas vips de aeroportos, o guru que carrega no bolso um manual de espiritualidade, o produtor de cinema sem escrúpulos, a exposição artificial de felicidade, em especial nas redes sociais.

Mal começa o espetáculo e somos informados de que existem aqueles que mandam e os que são mandados, os mestres e os escravos, com a ressalva de que não veremos uma palestra motivacional. Parece não haver espaço para o fracasso, insinua a fala inicial. Os temas ruminados no palco, bastante atuais, não emergem como desabafos ou palavras carregadas de resignação. Os assuntos abordados despontam sob a roupagem de comédia, ainda que o humor vazado seja do tipo amargo.

Incisiva e enérgica, a peça recebeu montagem envolvente estrelada por Marcos Veras e dirigida por Daniel Herz. Estruturada em monólogos, conectados entre si, a dramaturgia se desenvolve iluminando personagens arquetípicos, destilando comentários desairosos sobre tendências “modernas” e explorando situações já naturalizadas no cotidiano. Tudo embebido em auto-ironias, porque o autor não se vê à margem da idiotia reinante. A partir do protagonista, um José Silva que poderia ser qualquer um e que vive sendo cobrado para ser um alguém famoso, mesmo que isso custe anular a sua singularidade, Bogosian constrói seu colóquio demolidor.

Em uma viagem aérea, o tal José Silva flerta com uma aeromoça e se entrega às fantasias sexuais. Para dar o bote, convida-a para um concorrido show de Justin Bieber – fina ironia do autor. Dando sequência aos seus devaneios, passa a imaginar a queda do avião em uma montanha rochosa. Ótimo pretexto para salvá-la do acidente e escapar com ela em seus braços em meio às chamas. O ato poderia levá-lo à Hollywood, onde teria sua edificante história transformada em um longa-metragem épico. Ou seja, ele ganharia a chance de assumir o papel de um fugaz herói popular. Que, finalmente, flanaria acima do bem e do mal, amado por milhões de pessoas, sem ser tocado por ninguém. Assim, nunca mais iria se sentir esmagado numa multidão. 

O ator Marcos Veras exerce presença insinuante em cena e sua encorpada atuação captura o olhar da platéia, mesmo nas passagens que dão a impressão de que o material dramático perdeu ossatura e a capacidade de surpreender. Com visíveis recursos técnicos e carisma, ele se desembaraça de uma série de figuras que se amontoam no enredo. Ele personifica, por exemplo, um satanás que acena com um monte de tentações difíceis de recusar. Dá vida a um executivo do cinema disposto a tudo para estourar na bilheteria, encarna rapidamente um tipo espiritualista para quem alienação nada mais é do que falta de dinheiro, vive um Cristo que questiona amargamente o pai – “se Deus fez tudo isso com seu único filho, você acha que ele vai esquentar a cabeça com a merda anônima de sua vida? Duvido mesmo”. Ele interpreta ainda um marido que passa mais tempo distante do que junto da família e incorpora um apressado homem de negócios que lamenta conviver com gente estúpida, hipócrita e descerebrada. Finalmente, zomba de si mesmo em um teste de ator, quando foi encorajado a interpretar de forma “muito engraçada e pouco intensa.”

Por meio dessas criaturas, o dramaturgo lança seus dardos. Entre outros alvos, critica a fé, encarada como paliativo enganoso para o bem-estar e conformismo, e fustiga a figura de Deus, uma entidade que estaria pouco se lixando para a humanidade. Muitos podem entender que a obra patina por vezes em certa monotonia, que o bombardeio eventualmente se revela desfocado, mas a direção de Daniel Herz contorna tais barreiras com habilidade. Sua direção é serena, transcorre com naturalidade, valoriza um texto falado em primeira pessoa. O espaço cênico é povoado por bonecos que “interagem” com o intérprete, fornecendo dinamismo e potência à ação.  

Em tom ácido, a comédia disponibiliza retratos perturbadores e farristas de personagens à deriva. Promove o desfile desses seres que traduzem alguns aspectos abjetos da natureza humana. Ao mesmo tempo em que atrai o expectador para a comicidade explícita dos eventos, a peça o atiça com um humor nem um pouco confortável. Afinal, vivemos uma cultura que não costuma diferenciar uma celebridade de um deserto. Que prega que o minuto menos importante da vida de um famoso será sempre mais significativo se comparado ao momento mais relevante de um anônimo qualquer. Em uma das passagens da montagem, o personagem lasca: “Se vocês pensam que na nossa civilização subsiste algum nível de compaixão ou alguma capacidade de se colocar no lugar do outro, eu tenho uma grande novidade para contar: isso não existe”. De maneira diagonal, Bogosian ridiculariza também a estética do stand-up. Hoje, um artista na frente de uma câmera ou portando um microfone, não importa se brada um discurso consistente ou não passa de um blefe, vira imediatamente objeto de culto e mina de sabedoria.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo 

 

Acorda pra Cuspir

Texto: Eric Bogosian

Direção: Daniel Herz

Elenco: Marcos Veras

Estreou: 11/05/2016

Teatro Nair Bello (Rua Frei Caneca, 569, Shopping Frei Caneca, Consolação. Fone: 3472-2414). Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 70 e R$ 80. Até 19 de março. 

Roque Santeiro

A cidade onde se passa a ação é um tipo de alegoria do Brasil. Trata-se de um lugarejo que lembra o cotidiano das pequenas cidades do País, povoada por tipos bastante caricatos que articulam o poder e exercem domínio sobre o povo. Na fictícia Asa Branca há um deputado, o fazendeiro endinheirado Sinhozinho Malta (Jarbas Homem de Mello), que chefia politicamente o local. Um comerciante, Zé das Medalhas (Samuel de Assis), novo rico fabricante de medalhinhas. Uma mulher de trejeitos vulgares (Lívia Camargo), convenientemente transformada em viúva sem nunca ter casado. Um padre hipócrita (Edson Montenegro), capaz de acender uma vela para Deus e outra para o Diabo. Um prefeito, totalmente submisso e sem autoridade (Dagoberto Feliz).

Assinada por Débora Dubois, a eficiente montagem não alivia essa fauna de gente corrupta e sem integridade. É uma encenação opulenta em símbolos e metáforas. Escrita em 1963 pelo dramaturgo Dias Gomes (1922-1999), a peça, então com o nome de O Berço do Herói, foi proibida pela censura, que implicou com o eixo principal do texto, a desconstrução de um mito militar. Em 1975, já com o nome de Roque Santeiro e em formato de telenovela, não teve melhor sorte e foi suspensa. Apenas uma década depois estreou finalmente na telinha, com pontuais alterações. O êxito foi tamanho que o autor, em nova versão teatral, decidiu manter o novo título e os nomes dos personagens televisivos. Para sua opereta popular, como definiu a obra, ele chegou a escrever letras para serem eventualmente musicadas. Trabalho, aqui, assumido por Zeca Baleiro.

O espetáculo chega aos palcos na onda de adaptações teatrais de folhetins famosos. No ano passado, Os Dez Mandamentos emplacou carreira vitoriosa. Recentemente foi a vez de Carrossel, o Musical. Mais adiante estreará Vamp.

A trama envolve o público pela forma como radiografa as estratégias de dominação e seus tentáculos. Convocado, Roque foi lutar na Segunda Guerra Mundial e, covardemente, fugiu em meio a uma batalha, refugiando-se na Europa. Dado como desaparecido, foi aclamado por todos os conterrâneos como herói de guerra morto. Graças à exploração do mito, Asa Branca enriqueceu e se tornou pólo de peregrinação turística. Ninguém esperava, no entanto, que num determinado dia ele voltasse. Seu regresso quinze anos depois, para desespero dos poderosos, pode minar a prosperidade do município e desnudar a engrenagem da construção da lenda. Ou seja, o povo não pode saber da verdade. 

A direção se desincumbe com engenho da difícil missão de escapar da tentação de instaurar no palco um remake da telenovela. A encenação flui com desenbaraço e leveza. O trabalho foi facilitado pelo bom desempenho do elenco reunido, que buscou encarnar os personagens sem recorrer ao registro naturalista da televisão. Jarbas Homem de Mello revela-se convincente na pele do coronel venal e indecoroso. Em um de seus melhores trabalhos no teatro, Flávio Tolezani encarna com desassombro o herói um tanto ingênuo e confuso com os acontecimentos. No papel de Viúva Porcina, a atriz Lívia Camargo imprime sua personalidade, num esforço vitorioso de fazer o público se esquecer de Regina Duarte, que brilhou nessa mesma função na idolatrada telenovela. Seu desempenho é solar e divertido.

 Luciana Carnieli oferece ótimos momentos como a adorável Matilde, dona do bordel. Com graça, Gisele Lima e Yael Pecarovich interpretam as garotas abusadas do prostíbulo. Além da belíssima voz, Nábia Villela recorre ao humor na composição de Dona Pombinha, mulher do prefeito Florindo Abelha. O alcaide é incorporado com nuances por Dagoberto Feliz. O Padre Hipólito ganhou matizes na interpretação de Edson Montenegro. Samuel de Assis, como Zé das Medalhas, exibe bom timbre vocal e espontaneidade. Mesmo com um personagem sem muitas aparições, Mel Lisboa mostra talento e sagacidade como Mocinha, mal-resolvida paixão de Roque Santeiro. Com boa presença cênica, e executando diversos instrumentos, Marco França faz Toninho Jiló, a figura que simboliza o populacho manipulado. Em dupla exposição, Cristiano Tomiossi dá vida ao Professor Astromar e ao General, o sorumbático militar nem um pouco disposto a aceitar pacificamente o retorno do mártir.

Concebido e desenhado por Débora Dubois, o cenário reproduz os vários ambientes necessários à condução do enredo, como a casa da Viúva Porcina, a praça central e a igreja. Fabrício Licursi elaborou coreografias interessantes, que remetem às imagens das festas populares nordestinas. Os figurinos de cores vivas, de Luciano Ferrari, aliados à iluminação de Fran Barros, conferem uma tonalidade especial à cena. Merece destaque as esculturas de Paulo Bordhin, especialmente a de Roque Santeiro, uma armação grandiosa. Zeca Baleiro faz a direção musical e compôs canções deliciosas, além de ter dado sonoridade às ótimas letras legadas por Dias Gomes. A trilha sonora reúne de baião a bolero, de valsa a tango. É executada ao vivo pelos atores, com o apoio dos músicos André Bedurê (baixo e violão) e Érico Theobaldo (guitarra, percussão e eletrônicos). A produção incluiu ainda dois hits da novela, Dona e ABC do Santeiro, de autoria da dupla Sá & Guarabyra. 

Um dos trunfos da montagem é desembrulhar uma leitura satírica de um Brasil que precisa de heróis para perpetuar os desmandos e distrair a arraia-miúda. Se, afinal, Roque Santeiro encontra-se vivo, toda uma lenda urdida para eternizar interesses escusos estará com seus dias contados. Por isso, ele precisa morrer. Dias Gomes tece uma reflexão instigante e poderosa sobre a construção de um anti-herói. 

(Vinicio Angelici - O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto João Caldas )

 

Avaliação: Bom

 

Roque Santeiro

Texto: Dias Gomes

Direção: Débora Dubois

Direção Musical: Zeca Baleiro

Elenco: Flávio Tolezani, Jarbas Homem de Mello, Lívia Camargo, Dagoberto Feliz e outros.

Estreou: 27/01/2017

Teatro Faap (Rua Alagoas, 903, Higienópolis. Fone: 3662-7233). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 80 e R$ 90. Até 25 de junho.  

Histeria

Freud está cochilando em sua cadeira, ao lado de seu sofá de terapia. Um tanto confuso, ele desperta da breve soneca. Tudo parece relativamente tranqüilo, mas não demora e o ambiente vira de cabeça para baixo com a chegada de uma série de visitantes inesperados. Entre eles, uma moça emocionalmente perturbada, um amigo que funciona como médico e conselheiro literário e o pintor surrealista Salvador Dali.

Na peça escrita pelo dramaturgo inglês Terry Johnson, o encontro entre um dos psiquiatras mais influentes da história e um dos artistas plásticos mais originais do século passado, revela-se um tema tentador, embora não totalmente perscrutado pelo autor. Assinada por Jô Soares, a montagem empreende esforços para tornar atraente no palco um texto que transita o tempo todo entre a farsa e a reflexão intelectual. O resultado é cômico, como se observa pela reação do público, porém o desequilíbrio original da dramaturgia fragiliza um tanto a encenação.  

A ação transcorre em 1938, quando o octogenário criador da Psicanálise está acometido de câncer na garganta. Ele reside em Londres, fugido recentemente da Europa nazista. Sua preocupação repentina é uma jovem que aparece em sua casa no meio da madrugada, ameaçando ficar nua e se suicidar. Freud, que inicialmente a confunde com uma paciente, irá descobrir que se trata da filha de uma mulher por ele atendida no passado.

A moça irrompe ali para desafiar as teorias da sexualidade propostas pelo anfitrião e evocar questões perturbadoras sobre o sofrimento de muitas daquelas que estiveram sob os seus cuidados médicos e foram classificadas de histéricas. Em 1896, o psicanalista sinalizou que a histeria seria uma disfunção do sexo feminino causado por abuso sexual na infância – posteriormente ele reviu o princípio e afirmou que as memórias da violência sexual seriam provavelmente frutos de fantasias, alentadas por desejos eróticos inconscientes desenvolvidos quando criança.

A trama ganha novos ingredientes no instante em que um apalermado Salvador Dali rebenta em cena. Fã confesso do psicanalista, o pintor catalão é um sujeito presunçoso que proclama sua própria genialidade e fala de si em terceira pessoa. Em sua opinião, ambos seriam almas gêmeas, porque julga a obra de Freud a base para o surrealismo, movimento artístico e literário ao qual se filia. O outro discorda. “Em seu trabalho, você assassina os sonhos", chega a fustigá-lo o psicanalista, por enxergar nos quadros do artista plástico impulsos conscientes. Dali não se abala e reconhece a morte do surrealismo. Mais: confessa seguir esta corrente cultural apenas pelo apelo comercial de suas pinturas, que continuam vendendo bastante. A terceira figura a imiscuir-se na roda é um amigo médico, indignado com Freud, que estaria disposto a publicar a hipótese de que Moisés, o fundador da nação judaica, seria um aristocrata egípcio.

A união de tais elementos dissonantes no enredo é promissora e ao mesmo tempo funciona como válvula de escape para o exercício de humor. São embates difíceis e suscetíveis a intempéries. Dali é uma espécie de criança mimada capaz de enlouquecer, por exemplo, ao cortar o dedo. A fulana faz desabrochar lembranças nada confortáveis ao intelectual recluso. O amigo é o tipo de pessoa que aparece no instante mais inconveniente. A peça evolui entremeando diálogos ricos em ironias - o fundador da psicologia analítica Carl Jung é sempre mencionado de forma debochada -, ações físicas no estilo vaudeville e personagens que, em graus variados, exibem comportamentos estereotipados.

O texto desembala essa combinação de ingredientes de maneira satisfatória, mas parece desleixado no tocante à sua textura dramática. Se a luta verbal entre o psicanalista e a nova paciente soa palpitante por discutir aspectos dos fundamentos freudianos e suas implicações na vida das pessoas, o confronto entre os personagens centrais, essência da intriga, desponta somente divertido. Não se constata um profícuo estudo de personalidades ou entrechoques consistentes em torno dos respectivos trabalhos e trajetórias de Freud e Dali.  

Ainda que não ousada ou inventiva, a direção sublinha toda a parafernália da farsa, caracterizada por portas batendo, entradas e saídas simultâneas, mal-entendidos e situações confusas. Seguro, Jô Soares busca conferir um sentido crível ao jogo, que desenrola uma história imaginativa. Ele dirige o espetáculo num ritmo esmerado, equilibrando-se entre os momentos engraçados e profundos.  

O elenco exprime sintonia com a proposta do diretor. Pedro Paulo Rangel encarna com fleuma e empenho um Freud surpreendido pelos acontecimentos em seu lar, que tanto pode se envolver em um debate escaldante sobre a repressão sexual, se atrapalhar na hora de esconder no armário uma mulher com pouca roupa quanto minar a vaidade e afetação de Dali. Cássio Scapin escancara comicidade na pele do narcisista pintor surrealista. Em sua primeira aparição, o ator exagera um pouco nos trejeitos e desenha uma figura bem caricata. Aos poucos, contudo, deslancha um desempenho mais sutil e contido. Na composição da moça que pretende tirar a limpo alguns assuntos pessoais, a atriz Érica Montanheiro transforma a sua personagem numa figura sensual, insolente e volátil. Convincente como o compassivo doutor amigo, Milton Levy demonstra mais aptidão nas passagens cômicas.

Em uma das melhores sequências, Dali entra na casa de Freud e o flagra ao lado de uma bicicleta infestada de caramujos. O psicanalista está com uma das mãos enfiada em uma galocha e a cabeça enfaixada numa espécie de turbante. Fascinado pela visão, o artista plástico diz que o que ele vê apenas em sonhos, o psicanalista vivencia na realidade. Com alguma dificuldade em perfurar a superfície, a peça esboça uma tentativa de lidar com o legado complicado de Freud. Na chave teatral, a montagem materializa no palco uma tela de Dali.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Priscila Prade)

 

Avaliação: Bom

 

Histeria

Texto: Terry Johnson

Direção: Jô Soares

Elenco: Pedro Paulo Rangel, Cassio Scapin, Erica Montanheiro e Milton Levy

Estreou: 06/05/2016

Teatro Frei Caneca (Rua Frei Caneca, 569, Consolação. Fone: 3472-2229). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 80. Até 26 de fevereiro.  

 

Por Que o Sr. R. Enlouqueceu?

Foi uma edição menos impactante do que as anteriores. A quarta edição da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, que aconteceu nesse mês de março, mostrou trabalhos desiguais, alguns francamente dispensáveis. Um dos que aliviaram a programação foi este espetáculo do coletivo alemão Munchner Kammerspiele, com direção de Susanne Kennedy, responsável pela adaptação teatral a partir do roteiro do filme homônimo do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder.

Um tanto incômoda para alguns, por conta de seu ritmo intencionalmente lento e o tempo expandido, a montagem desembalou uma trama angustiante e dolorosa, por vezes mitigada por momentos cômicos. O minimalismo radical da diretora desacelera os movimentos, faz os atores parecerem mais bonecos do que humanos e promove o distanciamento emocional do espectador – aqui, um procedimento brechtiano, que obriga a uma reflexão por parte do público. A opção por essa estética ousada se revelou oportuna. O conteúdo ganhou expressão e lógica na forma.

Se observado mais genericamente, o enredo trata do esvaziamento do sentido da vida. O mundo em que vive o protagonista é estéril e insosso. As relações interpessoais são geladas, protocolares, melancólicas. Há uma eloqüente incapacidade de comunicação entre os indivíduos. O Sr. R. trabalha como desenhista técnico num escritório impessoal, mantém casamento com uma mulher inconformada com sua pretensa falta de ambição profissional, “quanto mais você envelhece, mais burro e mais gordo fica”, e tem um filho comportado.

Os encontros com os sogros são chochos. O mesmo acontece quando recebe a visita da vizinha tagarela. As celebrações com o chefe não passam de rituais deprimentes. Nas reuniões escolares, escuta sem ânimo a professora ditar regras e palpites sobre como dirimir as limitações do filho estudante. Na loja de disco, ele se esforça para se lembrar do título da música que tanto o emocionou num passado distante. 

As aparências de que o dia a dia asfixiante está naturalmente assimilada sem maiores traumas são enganosas. Toda essa pressão inerente ao seu cotidiano burguês custa um preço, que pode ser fatal. Sutil ou não, a desidratação da humanidade a que está irremediavelmente submetido faz dele uma espécie de bomba ambulante, prestes a explodir.

O mecanismo de embotamento é exasperado pela encenação proposta por Susanne. Há, por exemplo, demorados hiatos entre os diálogos, lapsos propositais entre uma ação e sua correspondente reação, gestos mecanizados, poses incomuns. Os textos, por sinal, não são proferidos em cena – o elenco dubla vozes previamente gravadas, constituindo uma curiosa partitura rítmica. 

O interior de uma claustrofóbica caixa cênica de madeira, destituída de janelas, serve para várias situações, que são anunciadas em off por voz distorcida. O espaço nunca muda, mas ambienta uma sala de estar, um escritório, rua, escola. Como se fosse um circuito fechado de vigilância, um monitor ali posicionado exibe a agitação em um estacionamento ao lado de fora. As cenas que acontecem nesse baú cenográfico são interrompidas regularmente por um telão frontal, abaixado e levantado, sobre o qual são projetados vídeos com pessoas comuns (funcionários) tentando arrumar este mesmo recinto – elas filmam, mudam um vaso de planta de posição, experimentam um sofá. Na função de coadjuvantes, agora ao vivo, irão reaparecer em uma emblemática sequência próxima do desfecho. 

Os atores interpretam com máscaras de silicone, que aderem ao rosto e deixam visíveis apenas os olhos e as bocas. O efeito produz inevitável estranhamento e dá certa impressão de desenho animado às expressões faciais. Eles se revezam pelos diversos papéis. Três intérpretes, com físicos diferentes, encarnam a figura central, estratégia que realça as suas transformações corporais, psicológicas e emocionais. Ele pode tanto surgir no palco como homem alto ou baixo, mais magro ou com barriga saliente. Além disso, conforme seu estado de espírito e circunstâncias, ele transita do infantilmente engraçado ao sujeito inteiramente brutalizado.

Formalmente instigante, o espetáculo vaza um áspero e poderoso estudo sobre a decrepitude do humanismo em um mundo artificializado, com terríveis danos colaterais. O Sr. R. se tornou um produto, algo mais normal do que se quer acreditar. Acabou se despersonalizando em uma sociedade regida por afetos postiços, regulamentos insensíveis e clichês comportamentais. Num grupo, ao ouvir uma piada, é preciso rir, mesmo que a anedota seja sem graça. Não é por acaso que lenta e inexoravelmente ele caminha para a execução de um massacre. O desenlace não surpreende. O bode está na sala e muitos fingem que não o enxergam.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

 

O Coração dos Homens

Nua, deitada no divã, a atriz Fernanda Cunha está prestes a iniciar um relato. Enquanto desfia a sua história, ela começa a se vestir. Os eventos que narra ocorreram no longínquo ano de 1984. Numa certa manhã, informa, nevou em Porto Alegre. O surpreendente episódio, o fato do ano para uns e o fim dos tempos na visão de outros, motivou a população a sair às ruas sem a preocupação de levar guarda-chuva, apenas para curtir os flocos brancos derramados do céu.  

Na aparência, parece uma dessas crônicas despretensiosas, fruto de reminiscências, aquelas doces memórias dos tempos de criança. No entanto, o espetáculo dirigido por Henrique Stroeter desdobra sutilezas e alguns sentidos em suas entrelinhas. O espectador atento perceberá que a singela narrativa é apenas um subterfúgio, espécie de zona de conforto, para a personagem resgatar outro assunto, este doloroso e uma cicatriz aberta em sua vida. Ela teve o pai seqüestrado numa fria noite de agosto, escoltado por homens possivelmente ligados ao regime militar. A lembrança é um tanto escassa, porque ela era muito pequena, mas sua mãe contou do esforço empreendido para escondê-la e evitar que também fosse arrastada por aqueles agentes da repressão. O velho acabou voltando para casa dias depois, todo machucado. Para seu inocente olhar, a história foi convenientemente esquecida.   

Sozinha no palco, Fernanda desvela o ocorrido num premeditado tom coloquial, contaminando sua fala com suaves toques de humor ou valendo-se de uma dicção pontuada por resignação, de indisfarçável melancolia. Quase não muda a toada ao enveredar pela saga do colega de escola que acreditava ter aprisionada a neve dentro de um tupperware. O menino fugia dos outros que queriam abrir o recipiente e escancarar publicamente a sua ilusão. O desfecho é amargo, porque as imagens da infância também podem ser opressivas. Com simplicidade sincera, que adorna o seu bom desempenho, a atriz faz um mergulho interno, dolorosamente sofrido, autêntico. Revisita o passado com olhos límpidos e assombrados. Se não projeta maestria técnica, ela consegue capturar a expressão da meninice e do início da adolescência sem parecer pueril ou abobalhada. Caminha no fio da navalha. A personagem vai se compondo na sua figura, na voz, nos seus gestos e nas atitudes.

Delicadamente entrelaçado ao primeiro, o enredo seguinte suscita um rito de passagem. A narradora revela que experimentou a primeira menstruação numa situação pouco trivial. Foi no colégio, durante a encenação em inglês de uma peça infantil. E como lutou para entender a transformação do seu corpo. De novo o estranhamento, a sensação de deslocamento no ambiente, certa expressão da violência, traduzida nas relações de gênero. Sentimentos e pulsões tratados com humanidade por Fernanda, já de peruca, que em momento algum escorrega para a afetação ou o grotesco. Ao evocar o que aconteceu, ela resgata a força do acontecimento.  

O invulgar texto da escritora gaúcha Veronica Stigger flui de forma natural, construído com frases curtas bem ritmadas, que nunca esmorecem. A autora, que revela domínio singular da linguagem, trabalha com histórias que trafegam com desassombro pelo ambiente social e pela esfera individual. E adiciona pitadas surreais aos relatos. A direção de Stroeter opta por prudente reverência. Ele adotou procedimentos simples para que a encenação transcorra sem travas. É uma encenação concisa, enxuta, na medida justa. Com poucos objetos e acessórios cênicos, a funcional cenografia de Marcos Lima persegue o essencial. Por se tratar de um conteúdo em registro confessional, o diretor articula marcações que conduzem a atriz a encarar sem receios a platéia, como se estivesse em plena sessão de terapia desnudando-se emocionalmente. Tornada cúmplice, a audiência é discretamente inserida no calor daquilo tudo que está sendo relembrado. Não é uma imersão profunda, mas o suficiente para amarrar a atenção. Ao mirar o que vivenciou, tocando em feridas, a protagonista expõe a vida em suas dores, felicidades, perdas e encontros.   

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Erik Almeida)

 

Avaliação: Bom

 

O Coração dos Homens

Texto: Veronica Stigger

Direção: Henrique Stroeter

Elenco: Fernanda Cunha

Estreou: 17/10/2016

Teatro Cemitério dos Automóveis (Rua Frei Caneca, 384, Consolação. Fone: 2371-5783). Sexta e sábado, 19h, domingo, 18h, segunda, 20h. Ingresso: R$ 20. Até 18 de dezembro.   

 

O Bosque Soturno

Neil LaBute tem compulsão por retratar a crueldade humana. O dramaturgo norte-americano aprecia cutucar a inesgotável capacidade do ser humano em se desencantar e se iludir com o outro. É o que acontece quando dois irmãos se encontram em um chalé de férias no meio de uma floresta, durante noite fria e chuvosa. Professora universitária, casada e mãe de dois filhos, a intelectual Betty chamou o caçula Bobby, que sobrevive de subempregos, para ajudá-la a evacuar urgentemente o imóvel, após a apressada saída do último inquilino. O marido não podia auxiliá-la porque teria ficado em casa cuidando das crianças.

Assinada por Otávio Martins, a inquieta montagem realça o tema clássico da rivalidade familiar, assunto bastante investigado pela literatura, cinema e teatro. Aqui, a infância conflituosa com o pai dominador, somada à diferença crucial de temperamentos e propósitos de vida, produziu assimetrias inconciliáveis na dupla. Flutuante e atraente, ela acredita que sua beleza está desvanecendo. De gênio rude e sexista, ele não se preocupa em ser politicamente correto e está se lixando para a opinião dos outros ao seu respeito.      

Nessa peça nervosa, rusgas e mágoas são ativadas a partir do momento em que o passado vem à tona, evocando segredos indesejáveis, e circunstâncias do presente ainda subsistem mal resolvidas. Por conta dessas sombras que pairam sobre suas existências, os diálogos transcorrem agitados, as palavras são exasperadas e não demora um clima de mútuas cobranças e suspeição se estabelece. Bobby faz perguntas aparentemente inofensivas à Betty, para evidenciar o quanto suas respostas são vagas. Culpa-a por se intrometer em um de seus casamentos fracassados e está minimamente disposto a esquecer da trajetória promíscua da irmã, em especial o vínculo nada protocolar com um estudante do campus onde leciona. Na defensiva, ela reluta em assumir não só as responsabilidades por atos pregressos como as ações mais recentes. A situação degenera quando, por acaso, uma fotografia comprometedora é descoberta, o que subverte aquilo que o público presumiu num primeiro momento.  

O notável nesse enfrentamento entre Betty e Bobby, além do abismo cultural e o baú de ressentimentos, é a visível conexão entre eles, não inteiramente fraternal. Eles brigam, discutem, discordam até sobre o trivial - como saímos do mesmo ventre?, ela chega a questioná-lo. Mas há uma visível pulsão incestuosa unindo-os. Um sentimento que irá redundar na ruína e queda de ambos.  

A direção de Otávio Martins busca sublinhar com desafetação teses empunhadas por LaBute em seu texto. A de que a verdade seria fugaz e as aparências exibem um caráter enganoso. Mesmo esquemática, a encenação oferece boa dose de imprevisibilidade, porque Betty e Bobby são ao mesmo tempo frágeis e perversos e o tipo de intimidade que cultivam pode ou não ser o que parece. O diretor privilegiou o trabalho dos atores. Desenha passos e movimentos que facilitam o embate verbal e a atmosfera de mistério, capturando sem muito esforço a atenção da platéia. Toda a trama se desenvolve em meio a paredes e móveis de caixotes de feira estilizados, em cenografia instigante concebida por Mirtis Moraes.

Os intérpretes destravam desempenhos convincentes, concedendo humanidade aos seus papéis. Com energia escaldante no palco, Guta Ruiz encarna Betty, mulher culturalmente sofisticada, porém destituída de bússola moral, que age segundo critérios bem particulares e é fustigada por um dilema. No início, se apresenta firme e cheia de soberba, mas na medida em que a narrativa avança, torna-se ansiosa e assume expressões de desespero – é uma dualidade que conduz a personagem para trilhas de real perigo. Também no gume da navalha, Pedro Bosnich combina virilidade com explosões intempestivas de compaixão na composição de Bobby, um sujeito que denota uma visão de mundo cínica – ele é capaz tanto de agredir quanto perdoar no minuto seguinte.    

LaBute desfia um thriller psicológico notadamente marcado pela mordacidade com que lapida as criaturas e demarca suas histórias pessoais. O autor observa o homem com desdém e descrença. Em sua dramaturgia, é muito comum a irrupção de uma reviravolta ou um desfecho chocante. Ao descobrir a realidade sobre o ex-locatário, o espectador irá perceber que a atitude de arrumar o espaço não era apenas uma operação de preparar o ambiente para a eventualidade de outro locatário. Tratava-se de uma estratégia para acobertar possíveis pistas. A obra explora não só o submundo dos relacionamentos entre pessoas da mesma família. Lança também um olhar incisivo sobre a natureza da verdade.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Gustavo Arrais)

 

Avaliação: Bom

 

O Bosque Soturno

Texto: Neil LaBute

Direção: Otávio Martins

Elenco: Guta Ruiz e Pedro Bosnich

Estreou: 2 de fevereiro

Teatro Eva Herz (Conjunto Nacional. Avenida Paulista, 2073, Jardins. Fone: 3170-4059). Quinta e sexta, 21h. Ingresso: R$ 40. Até 24 de março.

Rocky Horror Show

O público não precisa ficar atento ao enredo, procurar consistência no comportamento dos personagens e coerência no desenrolar dos acontecimentos. Mais importante que a trama em si é o retrato que o escritor e ator britânico Richard O’Brien  pincela sobre as obsessões e tendências da época em que esta peculiar obra foi parida. Ela chegou aos palcos em 1973 em Londres e, dois anos depois, ganhou vida na Broadway - na mesma data também foi parar nas telas, fomentando intermináveis legiões de fãs que acorriam às sessões da meia-noite em cinemas decadentes.

O musical oferece ingredientes de sobra para a sua devoção. Há personagens absolutamente bizarros, como um travesti extraterrestre, um colchão de referências aos filmes de baixo orçamento de terror e ficção científica das décadas de 1940 e 1950 (O Dia em que a Terra Parou, por exemplo), um conjunto de figurinos ousados e glamorosos, performances atrevidas, músicas vibrantes, um discurso liberalizante sobre sexo e reflexões oportunas relacionadas à questão de gênero. Este último tema, aliás, que parece nunca sair de moda.  

A atual montagem brasileira é uma versão competente da dupla Charles Moeller (direção) e Cláudio Botelho (adaptação das letras). Não faz feio comparada às outras duas encenações que pontificaram no teatro brasileiro na década de 1970. No Rio de Janeiro, Rubens Corrêa dirigiu um elenco que tinha nomes como Wolf Maia, Lucélia Santos e o cantor Tom Zé. Em São Paulo, o diretor Odavlas Petti trabalhou com Paulo Villaça e Antônio Bivar, entre outros atores.

Com indisfarçada inspiração no clássico do terror gótico Frankenstein, de Mary Shelley, a trama tem início com o puritano casal recém casado Brad (Felipe de Carolis) e Janet (Bruna Guerin) em viagem de lua de mel. Como o carro quebra durante uma noite de temporal, estes típicos representantes da América conservadora, modelos de decência e bons costumes, vão procurar auxílio e acabam parando num castelo medieval kitsch. O inusitado local é habitado por um cientista nada ortodoxo, Dr. Frank-N-Furter (Marcelo Médici), desembarcado diretamente da Galáxia Transylvania.

Ele divide o espaço da fortaleza com outras figuras não menos estranhas e singulares – todos eles, por sinal, símbolos de um tempo em que a repressão sexual começava a perder sentido. Em seu laboratório, o amalucado pesquisador desenvolve um ser humano perfeito para o seu próprio deleite, o tal Rocky do título, um tipo grego atlético com estampa de herói de história em quadrinhos. Uma criatura que usa metade do cérebro de um motociclista viciado em drogas e fã de rock and roll, misteriosamente desaparecido. Como o projeto é bem sucedido, uma festa é organizada com a presença dos novos hóspedes, agora inseridos nos mais desavergonhados prazeres da carne.

Provocativa, um tanto transgressora e divertida, a encenação flui sempre interessante. O trabalho homogêneo e afinado da direção é facilitado pelo vigoroso desempenho da trupe reunida, responsável por dar transparência a uma fauna de tipos tão excêntricos quanto sensuais. Com timing de comédia perfeito, Marcelo Médici transpira carisma na composição do egocêntrico Furter, uma espécie de anti-herói que prega a liberdade sexual. Que desfila pelo ambiente calçando salto alto e vestindo espartilho e sunga. Debochado, o personagem é decalcado de Ziggy Stardust, o andrógino ser de outro mundo que veio a Terra para salvá-la, mítica criação do cantor e compositor inglês David Bowie (1947-2016) que, nos anos setenta, havia se declarado bissexual.

À vontade no corpo da abusada assistente do cientista, com cabelos curtos copiados de Liza Minelli em Cabaret, só que numa roupagem mais burlesca, a atriz Jana Amorim faz de Colúmbia um dínamo em cena. Em bom desempenho, Gottsha encarna a esfarrapada empregada Magenta, que mantém relação incestuosa com Riff Raff, seu extravagante e platinado irmão. Bruna Guerin e Felipe de Carolis exibem sintonia e se ajustam naturalmente aos papéis de mocinha imaculada e rapaz ingênuo. O par protagoniza uma das melhores sequências da montagem, quando são seduzidos em momentos diferentes pelo anfitrião e acabam se rendendo à atmosfera lasciva e luxuriante do lugar. Vale destacar também as atuações de Nicola Lama em dois papéis (entregador e professor Scott), Felipe Mafra (a criatura), Thiago Machado (Riff Raff) e Marcel Octavio (narrador).  Thiago Garça e Vanessa Costa, como fantasmas, completam o grupo.

Na parte técnica, Moeller, que assina os curiosos e exóticos figurinos, conta com vários de seus colaboradores constantes, como Rogério Falcão (cenário), Alonso Barros (coreografia), Rogério Wiltgen (iluminação) e Beto Carramanhos (visagismo). Jorge de Godoy assina a direção musical e regência da banda de cinco músicos, que executa uma trilha sonora que passeia pelo blues e por diversos rocks e seus subgêneros, como o glam rock. São deliciosas e contagiantes as canções Touch-A-Me, Hot Patootie e The Sword of Damocles.

Ninguém se iluda. O espetáculo não se propõe a deflagrar discussões profundas ou defender teses sobre os temas que empunha. O seu valor está em outros aspectos. Sua força reside nesse roteiro cheio de referências à cultura de massas e na maneira cínica com que aborda a sexualidade nos loucos anos 1970. Poucas vezes uma mistura de terror, musical e ficção científica funcionou tão bem. 

(Vinicio Angelici – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Marcos Mesquita)

 

Avaliação: Bom    

 

Rocky Horror Show

Texto e músicas: Richard O’Brien

Adaptação: Cláudio Botelho 

Direção: Charles Moeller

Elenco: Marcelo Médici, Bruna Guerin, Felipe di Carolis, Thiago Machado e outros.

Estreou: 11/11/2016

Teatro Porto Seguro (Alameda Barão de Piracicaba, 740, Campos Elíseos. Fone: 3226-7300). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 50 a R$ 120. Até 11 de dezembro. 

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