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Teatro: A Guerra Não Tem Rosto de Mulher

Se ao longo da história as narrativas oficiais das guerras costumam ser produzidas exclusivamente pelos homens, aqui são as mulheres que dão sentido e perspectiva aos relatos de lutas armadas que assolam a humanidade. A escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévich, Nobel de Literatura de 2015, teceu um trabalho de fôlego ao entrevistar centenas de mulheres soviéticas que combateram pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial – quase um milhão, segundo dados conhecidos. O pungente trabalho resultou no premiado livro A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, agora transposto para o palco em montagem imperdível dirigida por Marcello Bosschar. Das duzentas histórias que recheiam a obra, a adaptação se utiliza de cerca de quarenta. Diferentemente da matriz literária, a versão teatral optou pela atemporalidade, descartando identificação de tempo e lugar. No lugar da resenha das batalhas memoráveis e dos feitos monumentais, que normalmente caracterizam a visão masculina, sobressai o olhar feminino de quem enxerga tais conflitos como um campo do sofrimento humano. A peça capta desde nauseantes situações-limites a pormenores que chegam a compor um retrato épico do engajamento feminino.  

Com ênfase na narração, diálogos rarefeitos e linha cronológica descontínua, o espetáculo se sustenta desse poderoso e arrebatador conteúdo dramático para inserir o público no pulso da guerra. A sensível encenação concede relevo às memórias fraturadas de jovens que amadurecem à força em meio à bestialidade e ao som dos tiros e explosões. Mulheres que, ao se alistarem voluntariamente ao exército, às vezes até forjando documentos, adiaram projetos de vida, como casamento e universidade, e enfrentam circunstâncias desconhecidas no território de conflagração, sempre com a disposição de lutar sem perder a feminilidade.  

Elas não só atuaram como enfermeiras e cozinheiras como tiveram que assumir a função de franco atiradoras, pilotar tanques de guerra, desarmar bombas, alentar feridos à beira da morte. São depoimentos, a partir das vozes das três intérpretes/narradoras, que exalam a aflição de terem de aparar os seus cabelos, envergarem uniformes militares, menstruarem em plena ação e deixarem os filhos com quem ficou em casa. Lembranças que carregam a silhueta da morte, o sentimento de masculinização, a repugnância de matar pela primeira vez.

Sem cenografia e objetos cênicos, a direção prioriza o trabalho de interpretação, criando uma dinâmica paleta de movimentos e coreografias. Cada sequência exibe sólida unidade. Vestindo figurinos idênticos e estilizados, assinados por Kika Lopes, as atrizes transitam pelos mais diversos sentimentos. Ora invocam episódios de perdas e desesperança, ora descortinam instantes de puro afeto e a superação. É um espetáculo inteligente, insuflado de energia. Carolyna Aguiar, Luisa Thiré e Priscila Rozembaum destilam desempenho vital e apaixonado. Elas se se equilibram entre a exaltação exterior e as pulsões íntimas, o político e o psicológico, o coletivo e o individual. Bosschar não deixou a encenação despencar no psicologismo autopiedoso e as diversas cenas curtas não impedem a instauração de um robusto tecido dramático. O público é envolvido de forma natural e facilmente se vê no cotidiano da guerra.  

Há passagens inquietantes, que embaçam os papéis de mulher e soldado. Como aquela em que uma mãe combatente, imersa em um brejo ao lado de outros companheiros, todos cercados, não tem outra opção a não ser cometer um ato extremo para evitar que sejam detectados pelas forças adversárias. Em outro momento, uma soldada recolhe feridos e percebe, aturdida, que entre eles se encontra um inimigo. Ou o quadro em que uma delas observa o sangue da menstruação mesclando-se ao sangue derramado no campo. Em contrapartida, um inenarrável alarido se forma após elas deixarem de usar cuecas e regressarem ao lar. 

O texto entrelaça passado e presente e é fértil em clarear as angústias e dúvidas, os abusos físicos e psicológicos de mulheres que estiveram no fogo cruzado. A autora destaca o desejo dessas jovens em empunhar armas e participar daquilo que julgavam uma obrigação cívica. Trata-se de uma peça que desnuda a linha tênue entre vencedores e derrotados. Todos perdem, é o duro aprendizado. Ao voltarem, combalidas e em ruína emocional, elas ainda terão de enfrentar outro desafio, tão terrível quanto a que vivenciaram no front: a de reconquistarem os filhos deixados com outras pessoas e lidarem com o desprezo cultivado por uma sociedade machista e impiedosa.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Guga Melgar)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Guerra Não Tem Rosto de Mulher

Texto: Svetlana Aleksiévich.

Direção: Marcello Bosschar

Elenco: Carolyna Aguiar, Luisa Thiré e Priscila Rozembaum.

Teatro Faap (Rua Alagoas, 903, Higienópolis. Fone: 3662-7233). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 60. Até 17 de dezembro.

Estreou:  21/10/2017 (em São Paulo)

Teatro: Pontos de Vista de um Palhaço

Schnier é um palhaço angustiado, de família protestante milionária, um poeta fora do sistema que sente odores pelo telefone, acredita na superioridade do fracasso ante o sucesso forjado e defende a arte não subserviente ao capital. Escrita em 1963, a peça do escritor e dramaturgo alemão Heinrich Böll (1917-1985) põe em destaque este clown anticlerical, crítico da igreja católica alemã da época, em sua opinião desconectada das necessidades humanas e maculada pela sujeição consciente aos tempos do nazismo. O texto, no entanto, não se detém em escancarar as abominações do regime fascista. Boll se utiliza dos pequenos atos de hipocrisia para entender o que aconteceu na Alemanha naquele conturbado período. Seu olhar é direcionado aos indivíduos que “livraram” o país dos judeus, inclusive armando as crianças, e que, após o fim da Segunda Guerra Mundial, cinicamente se apresentavam como seres embebidos de espiritualidade e ética, preparados para restabelecer uma nova nação generosa, solidária e igualitária. O autor se debruça sobre a impossibilidade de sobrevivência do humanismo em uma pátria com sérias dificuldades de se alforriar do estigma nazista.

Com assinatura de Maristela Chelala, a inspirada adaptação ousa em relação ao romance original e obtém um efeito interessante. A diretora fracionou o personagem da obra entre Hans e Schnier, seu alter ego, criando um conflito de personalidade entre ambos – o protagonista sofreria de esquizofrenia?, é uma das leituras possíveis. Seja como for, aqui é o palhaço quem assume o papel de narrador de sua história. Ele está afundado em crise existencial e marginalizado. Não dispõe de apoio familiar, perdeu sua irmã durante a guerra, entregue pelos pais para servir ao governo totalitário, e vive uma relação difícil com Marie, filha católica de um comunista. Persuadida pelos amigos, a moça decidiu abandoná-lo por divergências incontornáveis de valores religiosos e sociais e se uniu a um católico, amigo de infância do protagonista. Amargurado, ele abraça a solidão convicta porque não deseja mais se entregar a outro relacionamento amoroso. 

Um tanto excêntrico, temperado por um tipo de humor ferino e cáustico, este monólogo tragicômico ganha espessura por meio do desempenho meticuloso de Daniel Warren, em uma das grandes interpretações da atual temporada teatral paulistana. O caos interior, as contradições, inseguranças e o inconformismo de uma criatura ressentida e deslocada no tempo e espaço transbordam em cena. Mas toda essa pulsão é desembrulhada com leveza, graça e nuances pelo ator, que dota de humanidade este palhaço incrédulo, de crenças bem singulares, proscrito até por aqueles amigos ligados à ex-mulher a quem ele telefona. Sua performance é crivada de vitalidade e energia, compondo um trabalho requintado que fisga o público com facilidade, sem apelar para o sentimentalismo pueril. Com desembaraço e rigorosa expressão corporal, ele transita da compaixão ao ridículo, da submissão à rebeldia, alternando-se entre Hans e Schnier apenas com a manipulação do nariz vermelho e das máscaras faciais.

O espetáculo se equilibra habilmente entre o drama e o humor e deixa vazar um discurso que fustiga tanto a esquerda quanto a direita, católicos e protestantes, cujo maior símbolo é a repulsa que o clown nutre por uma dissimulada Alemanha pós-conflito bélico. A direção fornece marcações que tornam a ação prazerosa e cadenciada, entrecortada por momentos contundentes. Por vezes, a narração de câmera chega a adquirir um caráter épico. O espectador se sente inserido em um picadeiro graças à cenografia preciosa de Marisa Bentivegna, permeada por soluções simples e eficientes como uma banheira camuflada de sofá. O figurino de Carol Badra é adequado e sem excessos. Trata-se de um trabalho forte, que gera certo desconforto ao iluminar o nefasto vínculo entre catolicismo e nazismo, com o primeiro legitimando a era Hitler. A ruína moral da Alemanha nazista tem sua face sombria na figura de um palhaço ateu.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Lígia Jardim)

 

Avaliação: ótimo

 

Pontos de Vista de um Palhaço

Autor: Heinrich Böll

Direção: Maristela Chelala

Elenco: Daniel Warren

Estreou: 08/05/2017

Viga Espaço Cênico (Rua Capote Valente, 1323, Perdizes). Segunda, 21h. Ingresso: R$ 40. Até 25 de setembro.                                                                           

Teatro: O Corpo da Mulher Como Campo de Batalha

O escritor e dramaturgo romeno Matéi Visniec afirma que nas guerras interétnicas, como a que eclodiu na região dos Bálcãs entre 1992 a 1995, o sexo da mulher torna-se um campo de batalha por ser considerado emblema da resistência. Ou seja, a violação sistemática da mulher, espécie de guerra-relâmpago, funciona como uma estratégia militar para afrontar e desmoralizar o inimigo étnico. Naquela bárbara luta entre nações que formavam um único país (Iugoslávia), elas eram confinadas em escolas e igrejas – estimativas oficiais apontam que cinquenta mil delas sofreram violência sexual. O raciocínio era tão cruel quanto cristalino: se não é possível comprar armas, então a tática é deflorar a esposa de seu adversário. A agressão carnal, nesse caso, tem o mesmo peso e sentido de profanar um lugar sagrado ou destruir símbolos culturais do oponente.

Escrita em 1997, esta peça incômoda e sombria recebeu inspirada montagem, assinada por Malú Bazán. O texto examina com olhar singular o conflito mais longo e sangrento em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial. O autor desenvolve o discurso, se valendo da psicanálise na autópsia do horror, de como questões étnicas, o nacionalismo exacerbado, mecanismos sociais e valores religiosos deslancharam a barbárie. A trama reúne duas personagens, que ocupam espaço cênico forrado de terra. Uma delas é a grávida Dorra, mergulhada em si mesma e incapaz de responder aos estímulos externos, seu mecanismo de defesa. Ela foi violentada durante o confronto bélico por um homem (na verdade uma gangue) que pode ter sido seu vizinho, um antigo colega de escola ou alguém de seu círculo social. A outra é Kate, médica voluntária americana, mãe de dois filhos, que desembarcou na Bósnia para auxiliar equipes de especialistas a abrir valas comuns. Abatida pelas imagens terríveis que testemunhou, agora ela se dedica ao tratamento de vítimas de estupro. Ambas estão instaladas em um centro hospitalar da OTAN, na Alemanha, no final de 1994.  

O agudo e angustiante espetáculo desdobra reflexões poderosas sobre a bestialidade da guerra e seus efeitos terríveis sobre o indivíduo. O espectador presencia o relacionamento instável e de perspectivas opostas que aproximam e afastam as duas criaturas. Num primeiro momento, a impressão é a de que a terapeuta está tentando curar a paciente, como sabemos pelos relatórios. No entanto, tudo não passa de aparência. A gravidez involuntária, por exemplo, é um tema que as coloca em territórios antagônicos. Dorra deseja interromper a gestação e não entende porque a outra quer assumir a responsabilidade pelo bebê, já que ela tem a sua própria família nos Estados Unidos. Kate, que desenterrou tantos cadáveres, quer voltar para casa com uma criança por esta ser uma sobrevivente do conflito armado. Em suma, se a jovem violada quer esquecer e não sente a mínima vontade de voltar à normalidade, a americana busca compreender os eventos e se agarrar à vida. Aos poucos, no entanto, os papéis se invertem. À parte a transfiguração das atitudes, o fato é que elas se encontram emocionalmente arruinadas.

A direção é cirúrgica, valoriza a dramaturgia, destaca o trânsito dos sentimentos e dá ênfase às interpretações. As marcações são desenhadas para nunca afrouxarem a tensão permanente, os variados graus de dor e a loucura dessas mulheres devastadas pela selvageria. A encenação nunca cede ao exibicionismo estéril. É esculpida com sobriedade e atenção para evitar o esgarçamento da dramaticidade. Nota-se uma linha evolutiva para as personagens e atrizes.

As protagonistas exibem segurança e domínio. Com eficácia e competência, elas entregam diálogos e monólogos intensos sobre a tirania dos homens, a importância da memória, o instinto de sobrevivência e a capacidade de superação. Camila Turim encarna com argúcia e inteligência uma deprimida Dorra, que começa em silêncio eloquente e eventualmente explode – a atriz consegue transmitir os sentimentos de opressão e repelência de uma mulher involuntariamente grávida, que sente crescer em suas entranhas um ser que não deseja, destruindo-a. Em um momento comovente, ela “conversa” com a sua barriga, o seu filho e o seu agressor, sem saber se ele é sérvio, muçulmano ou croata. Também com desempenho forte e absorvente, que se equilibra entre o cerebral e o emotivo, Patrícia Pichamone interpreta Kate, encarregada de monitorar a saúde mental de Dorra, mas que ironicamente se vê desassistida em seu estado de transtorno pós-traumático – a terapeuta sente o fardo de carregar nos ombros a responsabilidade de trabalhar em nome da civilização ocidental, da justiça, da memória e do futuro. As duas performances se completam.

Neste drama realista, um alívio cômico se faz necessário para romper com a frieza dos acontecimentos. Visniec reserva uma sequência bem humorada que brinca com os estereótipos étnicos na Europa, até na América, quando Dorra e Kate identificam grupos e enumeram suas virtudes e vícios.  À medida que ficam mais bêbadas, a opinião de ambas sobre diferentes etnias perde a sutileza. Os gregos, por exemplo, são malucos e bonitos, mas vendedores sem escrúpulos. Os romenos parecem até franceses quando falam, porém são fatalistas demais. Os húngaros, dominadores e rebeldes, são aproveitadores e megalomaníacos Cada uma à sua maneira, Kate e Dorra buscam uma redenção mútua e uma reconstrução da identidade em meio ao caos. Por meio de um conjunto de cenas e falas, suas biografias se entrecruzam e o desfecho deixa um naco de esperança. O texto perturba ao desvelar que o ultraje de uma mulher equivale ao abuso de uma comunidade ou nação. O corpo estuprado vira alegoria de um mundo que foi superado pelo processo civilizatório.

 (Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Cassandra Mello)

 

Avaliação: Ótimo

 

O Corpo da Mulher Como Campo de Batalha

Texto: Matei Visniec

Direção: Malú Bazán

Elenco: Camila Turim e Patrícia Pichamone

Estreou: 12/06/2017

SP Escola de Teatro (Praça Roosevelt, 210, Centro. Fone: 3775-8600). Sábado, 21h; domingo, 19h; segunda, 20h. Ingressos: R$ 40. Até 30 de outubro.

 

Memórias Póstumas de Brás Cubas

O personagem central dessa peça morreu em uma chácara no bairro carioca de Catumbi, em 1869, e foi acompanhado ao cemitério por onze amigos. Então investido do papel de defunto-autor, como faz questão de se autoproclamar, ele decide contar a sua vida. Sua narrativa irá transgredir a ordem cronológica, o estilo regular e fluente, tanto que se iniciará pelo momento de sua morte e não pela do nascimento. “O texto ficaria assim mais galante e mais novo”, como justifica, logo de cara. Aleatório, o relato será pontuado por divagações e embebido por doses de sarcasmo. Já na primeira cena, por exemplo, o finado fia uma jocosa dedicatória ao verme que o corroeu. Brás Cubas está consciente de que manipulará suas memórias ao sabor das conveniências e circunstâncias. 

Personificação de uma abastada casta do século 19, ele é um aristocrata esnobe, medíocre e improdutivo, que não se acanha em desembrulhar suas vulgaridades. Uma espécie de anti-herói que, ao longo de seus 64 anos de existência, nunca precisou suar o rosto para ganhar o pão, jamais se prendeu a mulher alguma e enveredou pela política sem deixar marcas e feitos significativos.

Com assinatura de Regina Galdino, e atuação de Marcos Damigo, o célebre romance de Machado de Assis (1839-1908) virou um instigante monólogo musical cheio de galhofa. Toda a tinta de caráter mais sentimental foi removida para dar ênfase aos aspectos mais filosóficos do livro. O mérito da metamorfose foi que o trabalho de adaptação não deturpou a pena cáustica e mordaz e a exímia habilidade do escritor em brincar com os duplos sentidos. Quase duas décadas atrás, a diretora levou com êxito aos palcos a mesma versão, estrelada pelo ator Cássio Scapin.

A potência e o viço dessa releitura teatral residem justamente na sua capacidade de traduzir com perspicácia o universo abordado pelo romancista. No caso, as entranhas da sociedade carioca daqueles tempos, povoada por uma elite liberal na aparência e predadora em suas atitudes, afeita ao acúmulo de riquezas e tenaz defensora de seus privilégios de classe. O público acompanha uma representação bem humorada, um afiado retrato do comportamento amoral da alta-roda, entrecortada por canções sofisticadamente desabusadas, compostas pelo músico Mário Manga, ex-Premeditando o Breque. Um repertório que passeia por gêneros musicais diversos – a música Virgília, por exemplo, é deliciosamente interpretada no estilo canto-falado da bossa nova.  

Aos poucos, a trama captura a atenção do espectador. Personagens que orbitam ao redor do Lprotagonista entram e saem do enredo despertando curiosidade, estranhamento, afeição. Virgília é quase onipresente. Filha de um figurão da sociedade, casada com o político Lobo Neves, foi amante de Brás Cubas.  Eugênia, a “flor da moita”, é uma moça graciosa que acabou descartada por ter nascido coxa. Marcela, garota de programa com quem teve caso durante a juventude, serviu de álibi para que ele fosse enviado para a Europa. Um antigo companheiro de colégio, o tipo mendigo filósofo Quincas Borba, aparece como seguidor de um sistema filosófico batizado de Humanitismo.   

Qualquer poeira do tempo, que poderia pairar sobre o texto, foi aspirada em benefício de um espetáculo que desdobra uma interpretação contemporânea da história. Assoma ao palco uma mise en scène carnavalizada, que entrelaça com sobras de naturalidade teatro, literatura, música e dança. A eficiente direção impôs marcações que agilizam a movimentação do intérprete pelo espaço cênico, incluindo pontuais incursões dele pela plateia.

Envergando um figurino desenhado à base de retalhos, que simboliza um corpo marcado por tripas expostas, Marcos Damigo desempenha com desembaraço, descontração e meticulosa composição corporal. Na pele dessa criatura farsesca, meio clownesca, que nunca se deixa retrair, ele conquista a audiência desde o início da apresentação. É um ator mergulhado na criação, que canta, dança, equilibra-se de cabeça para baixo. Capaz de, num olhar, mudar a expressão e gerar nuances variadas, transitando da paixão descontrolada ao egoísmo, da razão à sandice. Ele se safa com virtuosismo da atribuição de imprimir genuinidade a um sujeito presunçoso, despojado de ética, que faz uso costumeiro da petulância e despudor como modo de vida. E, principalmente, que cobiça ser uma figura proeminente – o pai o queria ministro, na época trampolim para a glória e a perpetuação do nome da família.

O notável nessa obra é que mais de um século depois de ter sido criada, Brás Cubas não perde a atualidade. A montagem faz questão de iluminar o vazio da existência desse homem parasitário, de trajetória cheia de negativas - não concluiu o emplastro, medicamento destinado a aliviar a melancolia da humanidade, não virou ministro, não conheceu o casamento, nunca foi pai. O desfecho é de uma crueldade singular. Olhando para a plateia, meio resignado, o mimado e fútil endinheirado sentencia: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Ao não deixar herdeiros, ele evitou a transmissão genética de sua pobreza existencial.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Alex Silva Jr.)

 

Avaliação: Ótimo

 

Memórias Póstumas de Brás Cubas

Texto: Machado de Assis

Adaptação: Regina Galdino

Direção: Regina Galdino

Elenco: Marcos Damigo

Estreou: 20/07/2017

Teatro Eva Herz (Avenida Paulista, 2073, Cerqueira César. Fone: 3170-4059). Quinta e sexta, 21h. Ingresso: R$ 50,00. Até 29 de setembro.

Teatro: Cantando na Chuva

O teatro celebra a história do cinema no palco. É a sensação que se tem ao assistir a adaptação para a linguagem teatral do icônico clássico Cantando na Chuva (1952), dirigido por Stanley Donen e Gene Kelly, com roteiro de Betty Comden e Adolph Green e músicas assinadas por Nacio Herb Brown e Arthur Freed.  A versão brasileira ganhou a liberdade de promover mudanças pontuais em relação à encenação londrina, uma referência que guiou a produção nacional. Se em Londres a transposição descaracterizou aspectos da obra original, aqui se buscou maior fidelidade ao filme - a dança na chuva, por exemplo, era uma sequência adornada por um ensemble, diferentemente do que acontece no longa metragem, um solo arrasador de Gene Kelly. 

Ambientado nos anos 1920, o enredo aborda a transição do cinema mudo para o falado, por meio da história dos atores Don Lockwood (Jarbas Homem de Mello) e Lina Lamont (Cláudia Raia), astros de Hollywood e sinônimos de grandes bilheterias. Com o advento do áudio, que representou uma revolução na linguagem cinematográfica, muitos artistas até então reverenciados tiveram suas carreiras dizimadas da noite para o dia por não conseguirem se adaptar à novidade tecnológica. É o caso da temperamental Lina Lamont, cuja voz esganiçada acabou incomodando os produtores, que não queriam mais bancar uma estrela que, ao abrir a boca, provocava uma cascata de risos na plateia.    

A peça, que acompanha de forma bem humorada a mudança de paradigma na forma de fazer filmes, embute outros temas importantes, bem explorados na montagem. Um deles é o culto à celebridade, como se observa nas badaladas avant-premières, com o público urrando ao avistar um artista. Outro é a discussão entre cinema e teatro, resumida no diálogo entre os personagens Kathy Selden (Bruna Guerin) e Don Lockwood. “O cinema não passa de pantomima”, provoca a aspirante à atriz, que enaltece a arte teatral, “uma expressão artística de verdade, repleta de diálogos grandiosos”. Há ainda brincadeiras em torno dos clichês cinematográficos. Numa cena em que Cosmo Brown (Reiner Tenente) toca piano, ele enumera os lugares comuns que irão rechear a película O Cavaleiro Galante, sobre a Revolução Francesa, protagonizado pelo amigo Don Lockwood – o filme dentro do filme, aliás, rende muitas gargalhadas por conta do despreparo de Lina Lamont em não saber articular seu texto diretamente no microfone.

À frente de um conjunto de trinta atores, o diretor americano Fred Hanson consegue extrair bom rendimento de todos e imprime ritmo fluído ao espetáculo. Jarbas Homem de Mello se firma como o maior ator de musicais no Brasil. Canta, dança e representa exibindo excelente técnica. Ele fulgura no emblemático número em que cantarola a canção-título desfilando pela rua sob chuva torrencial - Gene Kelly aprovaria sua performance. O ótimo efeito especial da água vertida sobre o espaço cênico, por sinal, leva a audiência ao delírio. Bruna Guerin está adorável como Kathy Selden, papel imortalizado na tela grande por Debbie Reynolds. Aos poucos se torna um dos nomes mais expressivos no cenário musical brasileiro e cativa o espectador ao interpretar Good Morning (Bom Dia). O desafio de dar vida à Cosmo Brown (Donald O’Connor, no filme), um sujeito de humor saliente e imponderável, coube a Reiner Tenente, responsável por alguns dos trechos mais espirituosos da trama – sua interpretação de Make’Em Laugh (Faça Rir) é memorável.

Cláudia Raia aparece em dose dupla. Cria um tipo muito interessante ao encarnar a ingênua e ambiciosa Lina Lamont, a intérprete de péssima voz que se perde após o fim do cinema silencioso. Ela se torna quase uma vilã, porém com encanto e empatia. O tempo todo, a atriz fala e canta num tom esganiçado, tarefa complicada a que vence com desembaraço. Em um de seus bons momentos, ela se atrapalha ao usar o microfone e gira sempre a cabeça na hora errada, até despencar do banco. Em outra função, Cláudia incorpora uma dançarina no quadro Broadway Melody. Em que pesem o empenho e a entrega, sua presença neste ponto carece da leveza e da sensualidade que notabilizaram Cyd Charisse no filme. Sérgio Rufino (produtor R. F. Simpson) e Dagoberto Feliz (diretor Roscoe Dexter) desembrulham atuações seguras. Thiago Machado (Rod), Nábia Villela (Dora Bailey e Sra. Dinsmore), Fabio Saltini (professor de dicção) e Luciana Milano (Zelda Zanders) completam o elenco principal, também no mesmo nível. Em projeções em preto e branco, filmadas especialmente para este trabalho, Marcelo Médici e Reynaldo Gianecchini se mostram à vontade e sintonizados à proposta.  

Formou-se uma equipe criativa de gabarito. Mariana Elisabetsky tem se revelado uma versionista de mão cheia. Ao lado de Victor Muhlethaler, capricharam na versão das letras das canções, que se encaixam perfeitamente na melodia, resultando numa sonoridade agradável aos ouvidos. Os cenários imponentes de Josh Zangen, aliados ao design de luz de Cory Pattak, produzem um efeito mágico à mise-en-scène. Fábio Namatame se inspirou nos figurinos das décadas de 1920 e 1930 para recriá-los, passando ao largo da mera transposição documental, com olhar mais contemporâneo. As coreografias inéditas, elaboradas por Kátia Barros, são assumidas com brilho por toda a trupe. Os números de sapateado foram coreografados por Chris Matallo, que se valeu de técnicas especiais para compor as cenas de chuva. O diretor musical e regente Carlos Bauzys concebeu belas orquestrações para os catorze músicos. No dia em que este crítico assistiu, a orquestra foi pilotada pelo segundo regente Jorge de Godoy. A trilha sonora, juntamente com as coreografias, merecem fartos elogios. É praticamente impossível não sucumbir aos encantos de Cantando na Chuva. Quem não conhece o filme, certamente vai querer assisti-lo.

(Vinicio Angelici – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Caio Gallucci)

 

Avaliação: Ótimo

    

Cantando Na Chuva

Texto: Betty Comden e Adolph Green

Letras e Músicas: Nacio Herb Brown e Arthur Freed

Direção Cênica: Fred Hanson

Direção Musical: Carlos Bauzys

Elenco: Jarbas Homem de Mello, Cláudia Raia, Bruna Guerin, Reiner Tenente e outros.

Estreou: 12/08/2017

Teatro Santander (Complexo do Shopping J.K. Avenida Presidente Juscelino Kubitschek, 2041, Itaim Bibi. Fone: 4003-1212). Quinta e sexta, 21h; sábado, 17h e 21h; domingo, 16h e 20h. Ingresso: R$ 50 a R$ 260.

   

Baixa Terapia

Tem cara e jeito de uma comédia de costumes, protagonizada por maridos e mulheres discutindo a relação e expondo seus conflitos conjugais. Mas a linguagem teatral adotada serve de pano de fundo para desemaranhar coisas sérias e iluminar um drama complexo e urgente que se torna mais palpável apenas no desfecho surpreendente. Enquanto a virada dramática não se consuma, a envolvente obra do autor argentino Matias Del Federico empina com humor mordaz algumas das misérias e vicissitudes da vida de casado. Com direção de Marco Antônio Pâmio, e elenco encabeçado por Antonio Fagundes, a montagem põe na vitrine três casais de diferentes faixas etárias que não se conhecem. O grupo está ali involuntariamente para fazer parte de uma sessão singular de terapia, destinada a sondar e tratar querelas matrimoniais, com a peculiaridade de que a psicóloga, de quem todos são pacientes, não se encontra presente. 

Embora ausente, a terapeuta deixou no consultório envelopes numerados contendo questionamentos pessoais e instruções. Ou seja, eles precisam conduzir seus respectivos tratamentos uns na frente dos outros, sem o conforto do sigilo profissional. Como é presumível, o jogo proposto tem início em fogo brando. Aos poucos, porém, começa a gerar apreensão, certa histeria e excessos, ainda mais em uma sala abastecida de garrafas de uísque. Uma situação que inevitavelmente tende a degenerar e seguir rumos impensáveis, trazendo à tona algumas disfunções da convivência a dois e o pior de cada um. Forma-se um menu saboroso de confissões, suspeitas, verdades e mentiras. Uma lavagem coletiva de roupa suja, sem filigranas.

Os cinquentões Ariel e Paula (Antonio Fagundes e Mara Carvalho), por exemplo, se esforçam em vão para achar um denominador comum em relação à educação dos filhos. O casamento deles, a se observar o grau de desgaste explicitado, é um perene campo de batalha. Uma geração abaixo, Roberto e Andrea (Fábio Espósito e Ilana Kaplan) estão mais inclinados a tergiversar sobre seus traumas – ela, inclusive, se licenciou do trabalho após uma tentativa de suicídio. Mesmo apaixonados, os jovens Estevão e Tamara (Bruno Fagundes e Alexandra Martins) vivem divergindo se devem ou não morar sob o mesmo teto.

De certa forma, no que tange ao universo da batalha dos sexos, o enredo não chega a apresentar ângulos originais e incomuns. Todavia, os heterogêneos assuntos alavancados - pedagogia infantil, machismo, alcoolismo, depressão, fidelidade e ciúme - são abordados de forma incisiva e perspicaz, galvanizando o riso da plateia. É válido lembrar que o texto guarda pontos de contato com as peças O Método Grönholm, do autor espanhol Jordi Galcerán, e Toc Toc, do dramaturgo francês Laurent Baffie. Em ambas, indivíduos estranhos entre si, casualmente reunidos, são submetidos a provas e tarefas que devem enfrentar e superar.

A montagem se escora na força das palavras e dos diálogos. Pâmio maquinou uma encenação que desliza em ritmo dinâmico, com marcações coreografadas em um espaço cênico intencionalmente reduzido, ambiente mais sugerido que realista – os seis atores se movimentam sem atropelos e de forma bastante natural. O diretor assegura leveza a esse conjunto, que cumpre à risca a ordenação plástica das cenas e mantem o mesmo nível de vitalidade e congruência ao longo do espetáculo. Eles são capazes de transitar com habilidade de uma etapa para outra, mudando de personalidade, atitude e trejeitos nas passagens mais graves.

Como a trama se estrutura sem graduações, não havendo protagonistas e coadjuvantes, todos têm seus momentos cintilantes. Antônio Fagundes demonstra a habitual segurança, dosando em Ariel irritação e ironia. Com estudado maneirismo, Mara Carvalho encarna uma Paula ansiosa e impertinente. Bruno Fagundes, na pele de Estevão, exala flama e espírito juvenil. Na composição de Tamara, a atriz Alexandra Martins empenha-se em torná-la crível. Fábio Espósito realça a natureza sinuosa de Roberto. Responsável por arrebatar o público como Andrea, a figura mais complexa da turma, Ilana Kaplan é capaz de arrancar gargalhadas e simultaneamente purgar sentimentos reprimidos.   

O mais interessante é que a história transcorre sem que o espectador saiba aonde ela desaguará. Por isso o desenlace chocante acaba pegando o espectador no contrapé. Um observador mais atento até poderá captar insinuações e sinais aqui e ali, mas é pouco provável que vislumbre a armadilha do epílogo. Seja como for, o instante em que o ridículo e o cômico dão vez ao flagelo moral fornece um sentido tangível a tudo o que aconteceu. Uma fresta para suscitar outra reflexão, mais trágica e tão atual no cotidiano de muitos relacionamentos afetivos.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Lenise Pinheiro)

 

Avaliação: Ótimo

 

Baixa Terapia

Texto: Matias Del Federico

Direção: Marco Antônio Pâmio

Elenco: Antonio Fagundes, Mara Carvalho, Fábio Espósito, Ilana Kaplan, Bruno Fagundes e Alexandra Martins.

Estreou: 17/03/2017

Tuca (Rua Monte Alegre, 1073, Perdizes. Fone: 3124-9600). Sexta, 21h30; sábado, 20h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 70 a R$ 90. Até 30 de julho. 

Teatro: Hysterica Passio

Parece uma peça de terror, protagonizada por seres assombrados pelo passado, fustigados por infâmias sexuais e oprimidos por uma vida de martírios. Na ótica da dramaturga, atriz e encenadora espanhola Angélica Liddell, um dos nomes mais aclamados do teatro contemporâneo, a infância é um estágio de calvário, o mundo não passa de um lugar abjeto e o homem está fadado a chafurdar no lodo. Neste conto de fadas reverso e perfurante, banhado de perversões, culpas e abominações, a ruína de uma família classe média ganha a estética de um circo de horrores, modalidade de diversão muito popular no final do século 19. Nesse tipo de entretenimento, típico de uma época em que cenas horrendas eram toleradas, pessoas deformadas por doenças viravam atração de plateias consumidoras de aberrações da natureza. Não à tôa, em certo momento da montagem, um personagem olha para os espectadores e pede para que se aproximem e toquem nos monstros.

Não é por acaso ainda que uma mulher está confinada em uma jaula. Trata-se da enfermeira “esquálida” Thora, virgem até os 32 anos, que violava o filho pequeno. Hipólito, agora um desumanizado garoto de doze anos com fraturas pelo corpo, quer purgar o passado de maus tratos e preparou uma vingança contra os pais, manipulando a verdade e a mentira. O patriarca, o “pálido” dentista Senderovich, era um homem também de segredos inconfessáveis. “Por que dois seres assim tinham que se encontrar?”, indaga o menino, que vê em ambos a corporificação de um casal repugnante, mas de comportamento “normal” ao saírem à rua.

Este núcleo familiar disfuncional e execrável, envenenado por sua amoralidade, é transposto para o palco por meio de vigorosa encenação do Teatro Kaus Companhia Experimental, em sua segunda incursão pela obra de Liddell (O Casal Palavrakis, 2012, foi a primeira), autora sem medo de tratar pelo registro da ficção abusos que sofreu na infância, com nítidas incursões pela psicanálise – o título, por exemplo, faz alusão às mulheres reprimidas sexualmente, estudadas especialmente por Sigmund Freud.

O espetáculo é difícil e requer transigência por parte de quem o assiste, deve-se alertar. A primeira cena abre com uma criança deficiente informando que irá narrar um conto natalino. Claro, trata-se de uma ironia corrosiva. O público acompanha a decomposição da família e a indigência moral destas criaturas autodestrutivas como se imergisse em um pesadelo. Há sarcasmo e um curioso jogo de oposições na encenação, assinada por Reginaldo Nascimento. Isso porque a trama transcorre em um sugestivo espaço branco, que eventualmente é tingido pela cor vermelha – como sangue vertido e pingado, representação do corpo profanado. Bonecos sem rostos manejados de forma cruel, roupas penduradas em varal, alegoria do pai ausente e poderoso, triciclo em movimentos nervosos e vitrola povoam essa espécie de manicômio. Aos poucos, a atmosfera asseada é turvada e o lugar adquire contornos assustadores. Sente-se o tempo todo um mal estar, a consternação que brota da tragédia.  

Com performances seguras, construídas a partir de efeitos exteriores e depois aprofundados, Alessandro Hernandes e Amália Pereira mergulham no intestino desses indivíduos à deriva. Incumbindo-se de três papeis, o ator transita da incompreensão ao rancor. Seu desempenho como Hipólito, Sanderovich e um mestre de cerimônias é intenso e absorvente. Na composição de Thora, a atriz se vale da energia bruta e mostra força nos momentos de expor as dores de uma mãe abusadora e histérica, mesmo sem aportar mais nuances que poderiam suscitar novos significados às atitudes maternas.

O texto transborda a angústia metafísica de pessoas que caminham inexoravelmente para o colapso. É grave o retrato que descreve das relações destrutivas que enredam personagens nutridos pelo ódio. Angélica Liddell desembrulha a ideia de que a família é o território do flagelo. “Não seria instrutivo se os pais fossem testemunhas de sua obra monstruosa?”, questiona um atormentado Hipólito. Se a peça oferece alguma mensagem moral consistente, deve ser a de que o ser humano é irremediavelmente infeliz. E que só é possível compreender a humanidade por meio da barbárie. Como disse a autora em entrevistas, a felicidade não é um bem acessível. Sintomática a frase de encerramento, proclamada por um cínico Hipólito: “Vocês são inocentes, não se assustem, é a vida real.”

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Fabíola Galvão)

 

Avaliação: Bom

 

Hysterica Passio

 

Texto: Angelica Liddell

Direção: Reginaldo Nascimento

Elenco: Alessandro Hernandez e Amália Pereira

Estreou: 16/10/2015

Oficina Cultural Oswald de Andrade (Rua Três Rios, 363, Bom Retiro. Fone: 3221-4704). Segunda e terça, 20h. Entrada gratuita. Até 10 de outubro.

Eigengrau - No Escuro

Quatro jovens em torno dos vinte e poucos anos se mostram nitidamente ansiosos por encontrar alguma ligação humana real e consequente. Mas há barreiras a superar, porque eles são moralmente flexíveis e estão engolfados em uma crise de identidade. O interessante texto da dramaturga inglesa Penelope Skinner, cujo título é uma palavra alemã que alude à cor vista pelo olho em plena escuridão, busca desconstruir convenções da comédia romântica. O que o público acompanha é uma espécie de ciranda amorosa disfuncional, avivada pelos impasses e angústias típicos dos relacionamentos da vida moderna.

Uma estridente feminista, Carol, divide apartamento alugado com a ingênua Rosa, contatada por meio de um site específico. Enfeitiçada por símbolos e numerologia, a nova inquilina se apaixona pelo publicitário Marcos, com quem dormiu apenas uma vez. O mulherengo abriga em seu apartamento um antigo colega de universidade, o ocioso e deprimido Tomás, em luto pela morte da avó. Circunstâncias especiais fazem com que Marcos se aproxime de Carol e Tomás se interesse por Rosa.

Estreia da companhia Delicatessen Teatral, criada em 2014 com o propósito de encenar obras inéditas no Brasil, a peça dirigida por Nelson Baskerville compõe um fotograma de humor avinagrado sobre as frustrações, inseguranças e instabilidades inerentes a certa juventude. A trama começa com problemas e questões triviais, como a luta cotidiana pela sobrevivência. Aos poucos, o enredo adquire outros contornos e passa a desdobrar uma rede de conexões e desconexões casuais que envolvem uma geração carente e à deriva em uma grande metrópole.   

Carol, Rosa, Marcos e Tomás vivem de ilusões e autoenganos. Literalmente estão tentando abraçar algo que porventura não saibam bem o que seja. A dramaturgia não se insinua por uma narrativa sentimental sobre encontros e desencontros afetivos. De maneira astuta, o clichê funciona para instaurar uma alegoria sobre a dificuldade que muitas pessoas têm de lidar com a realidade.

É o caso das figuras que povoam essa história. Uma delirante Rosa acredita em fadas, gnomos e outros seres sobrenaturais. Até em amor à primeira vista. Por isso, não economiza esforços para conquistar o coração do predador sexual Marcos, um tipo camaleão na hora de seduzir as fêmeas. Em vez de quitar o aluguel atrasado, acaba investindo o parco dinheiro para comprar um vestido sexy. Ela se aviltará em um desesperado ato de felação, que transforma a audiência em voyeur, e, mais adiante, irá se autoflagelar, ao cometer um gesto terrível de clara inspiração na tragédia de Édipo.

A ativista Carol vocifera ladainhas raivosas em defesa da igualdade de gêneros. Atualmente dá tratos finais a um discurso contra sites pornográficos e vídeos de violência contra a mulher. No entanto, a altivez manifestada se dilui ao se deixar seduzir e dominar por um sujeito de baixos instintos, que chega a afirmar sem corar ter se convertido ao feminismo. Em momento ziguezagueante, ela confessa a Marcos desejos nada coerentes com suas habituais pregações.  

Por sua vez, o rechonchudo Tomás parece ilhado na tristeza da perda da avó e mal consegue se desvencilhar do vaso com as cinzas dela. Por sinal, as cenas que abrem e fecham o espetáculo procuram frisar o raciocínio bíblico de que, se nascemos do pó, ao pó regressaremos. Tudo o que ele realmente deseja é uma companheira para chamar de sua. Comporta-se como tolo ao cruzar o caminho de Rosa, que não percebe a afeição dele por ela. A coreografia dos afetos mal construídos vai derrubar a todos sem compaixão.

Tais idiossincrasias e descompassos desses personagens rendem passagens engraçadas que capturam a plateia pela naturalidade com que se apresentam. A eficaz direção de Baskerville despreza as marcações rígidas e a encenação se impõe com franqueza, deslizando sem embaraços desnecessários. As diferentes situações se sucedem e se equilibram em ritmo dinâmico – em instantes pontuais uma frenética correria sinaliza o avanço do tempo. A ação transcorre em um cenário urbano pichado e opressivo. O piso é demarcado geometricamente por linhas que ambientam os dois apartamentos. Na borda, um balcão simula um restaurante fastfood, sítio de um diálogo hilário entre Tomás e Rosa, e uma estilizada cabine telefônica serve para representar um karaokê. Na parede ao fundo, em situações importantes, frases minimalistas, pensamentos e letras de músicas são projetados.   

O elenco exibe clara sintonia com a obra e sua tribo de criaturas vulneráveis. Renata Calmon magnetiza na composição da genuinamente instável Rosa, uma moça obcecada e vaidosa. Seu desembaraço é palpável e gera rápida empatia. Sem ceder à caricatura, Andrea Dupré encarna a complexa Carol, que mal consegue mascarar suas inseguranças. A atriz consegue ser crível na transição entre as convicções feministas e a submissão sexual. Daniel Tavares evidencia em Marcos o perfil de conquistador arrogante, mas nunca desagradável. Com sutileza, ele mantém o espectador cético em relação ao caráter de sua atração por uma garota supostamente incompatível. Sem investir no estereótipo, Tiago Real valoriza e infiltra sentimentos puros ao cabisbaixo e desajustado Tomás.

Mesmo que nas entrelinhas, o texto irradia o peso das expectativas que a sociedade despeja sobre jovens adultos, que tentam achar uma zona de conforto entre o sonho e a realidade, a razão e o instinto. Com olhar afiado, a autora observa estes adolescentes extemporâneos, presas fáceis das ciladas amorosas e das armadilhas da vida. Rosa e Tomas podem ser as figuras mais patéticas, na contramão de Marcos e Carol, na aparência, mais frios e firmes. As diferenças, porém, não corrompem o fato de que todos eles, em graus variados, escancaram uma notória incapacidade de avaliar corretamente evidências e sinais. O tempo inteiro, o grupo se defronta com verdades desconfortáveis e dolorosas. Não por acaso o nome da peça fala sobre o tom cinza escuro que se vê na ausência de luz.    

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Daniel Spalato)

 

Avaliação: Bom

 

Eigengrau – No Escuro

 

Texto: Penelope Skinner

Direção: Nelson Baskerville

Elenco: Andrea Dupré, Daniel Tavares, Renata Calmon e Tiago Real

Reestreou: 6 de maio

Funarte (Alameda Nothmann, 1058, Campos Elíseos. Fone: 3662-5177). Sábado e domingo, 20h. Ingresso: R$ 40. Até 28 de maio.

 

 

 

 

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