EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Pontos de Vista de um Palhaço

Schnier é um palhaço angustiado, de família protestante milionária, um poeta fora do sistema que sente odores pelo telefone, acredita na superioridade do fracasso ante o sucesso forjado e defende a arte não subserviente ao capital. Escrita em 1963, a peça do escritor e dramaturgo alemão Heinrich Böll (1917-1985) põe em destaque este clown anticlerical, crítico da igreja católica alemã da época, em sua opinião desconectada das necessidades humanas e maculada pela sujeição consciente aos tempos do nazismo. O texto, no entanto, não se detém em escancarar as abominações do regime fascista. Boll se utiliza dos pequenos atos de hipocrisia para entender o que aconteceu na Alemanha naquele conturbado período. Seu olhar é direcionado aos indivíduos que “livraram” o país dos judeus, inclusive armando as crianças, e que, após o fim da Segunda Guerra Mundial, cinicamente se apresentavam como seres embebidos de espiritualidade e ética, preparados para restabelecer uma nova nação generosa, solidária e igualitária. O autor se debruça sobre a impossibilidade de sobrevivência do humanismo em uma pátria com sérias dificuldades de se alforriar do estigma nazista.

Com assinatura de Maristela Chelala, a inspirada adaptação ousa em relação ao romance original e obtém um efeito interessante. A diretora fracionou o personagem da obra entre Hans e Schnier, seu alter ego, criando um conflito de personalidade entre ambos – o protagonista sofreria de esquizofrenia?, é uma das leituras possíveis. Seja como for, aqui é o palhaço quem assume o papel de narrador de sua história. Ele está afundado em crise existencial e marginalizado. Não dispõe de apoio familiar, perdeu sua irmã durante a guerra, entregue pelos pais para servir ao governo totalitário, e vive uma relação difícil com Marie, filha católica de um comunista. Persuadida pelos amigos, a moça decidiu abandoná-lo por divergências incontornáveis de valores religiosos e sociais e se uniu a um católico, amigo de infância do protagonista. Amargurado, ele abraça a solidão convicta porque não deseja mais se entregar a outro relacionamento amoroso. 

Um tanto excêntrico, temperado por um tipo de humor ferino e cáustico, este monólogo tragicômico ganha espessura por meio do desempenho meticuloso de Daniel Warren, em uma das grandes interpretações da atual temporada teatral paulistana. O caos interior, as contradições, inseguranças e o inconformismo de uma criatura ressentida e deslocada no tempo e espaço transbordam em cena. Mas toda essa pulsão é desembrulhada com leveza, graça e nuances pelo ator, que dota de humanidade este palhaço incrédulo, de crenças bem singulares, proscrito até por aqueles amigos ligados à ex-mulher a quem ele telefona. Sua performance é crivada de vitalidade e energia, compondo um trabalho requintado que fisga o público com facilidade, sem apelar para o sentimentalismo pueril. Com desembaraço e rigorosa expressão corporal, ele transita da compaixão ao ridículo, da submissão à rebeldia, alternando-se entre Hans e Schnier apenas com a manipulação do nariz vermelho e das máscaras faciais.

O espetáculo se equilibra habilmente entre o drama e o humor e deixa vazar um discurso que fustiga tanto a esquerda quanto a direita, católicos e protestantes, cujo maior símbolo é a repulsa que o clown nutre por uma dissimulada Alemanha pós-conflito bélico. A direção fornece marcações que tornam a ação prazerosa e cadenciada, entrecortada por momentos contundentes. Por vezes, a narração de câmera chega a adquirir um caráter épico. O espectador se sente inserido em um picadeiro graças à cenografia preciosa de Marisa Bentivegna, permeada por soluções simples e eficientes como uma banheira camuflada de sofá. O figurino de Carol Badra é adequado e sem excessos. Trata-se de um trabalho forte, que gera certo desconforto ao iluminar o nefasto vínculo entre catolicismo e nazismo, com o primeiro legitimando a era Hitler. A ruína moral da Alemanha nazista tem sua face sombria na figura de um palhaço ateu.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Lígia Jardim)

 

Avaliação: ótimo

 

Pontos de Vista de um Palhaço

Autor: Heinrich Böll

Direção: Maristela Chelala

Elenco: Daniel Warren

Estreou: 08/05/2017

Viga Espaço Cênico (Rua Capote Valente, 1323, Perdizes). Segunda, 21h. Ingresso: R$ 40. Até 25 de setembro.                                                                           

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