EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Gilberto Gil, Aquele Abraço - O Musical

Não há aspiração biográfica ou a necessidade de instituir uma cronologia da discografia do artista baiano, que completou meio século de carreira e nunca perdeu o bonde da história. O que o autor e diretor Gustavo Gasparani arquitetou é uma nítida opção por romper com a estrutura dramática tradicional dos musicais brasileiros autobiográficos. Em vez de descrever linearmente a trajetória artística e pessoal de Gilberto Gil, entremeando-a com suas canções, o encenador desenvolveu uma sensível linha narrativa que parte da sua obra para produzir um sentido mais amplo e plural do cantor e compositor. O resultado é prodigioso.  

Envolvente, agradável e inspirada, imbuída do condão de seduzir platéias variadas, a montagem explora diversas combinações e compõe uma leitura política, comportamental, emocional e intelectual do homenageado. E, por tabela, desenha um painel histórico-cultural do Brasil. Que flerta com o poético. Trata-se de um trabalho que não mascara o propósito de apelar mais à emoção que à razão. Não por acaso, o subtítulo O Poeta, a Canção e o Tempo é emblemático. Logo no início, a figura de um poeta se encontra simbolicamente dentro de uma partitura, cercado de notas musicais. Uma poderosa imagem que, por sinal, irá desencantar outra vez no desfecho. Em seguida, os intérpretes cantam trechos de Eu vim da Bahia e a cena se transforma num grande cais, corporificado por percussões que emanam o som do mar.

Como não existe um desenvolvimento dramático convencional ao longo de suas duas horas, o público é instado a imergir lentamente nesse caldeirão lírico musical. Ao todo, 55 canções garimpadas do vasto acervo do artista sustentam o espetáculo. Um caleidoscópio de baião, rock, samba, reggae, bossa nova e outros ritmos, empreitada precisa e preciosa de Gasparani e do diretor musical e arranjador Nando Duarte. Parte do repertório é interpretada integralmente ou de forma parcial. Outra fração ganha vida por meio de versos e letras verbalizados pelo elenco. O artifício gera uma grata surpresa – a declamação de algumas canções sugere novas camadas e significados, num efeito sublime.

A dramaturgia criada também incorpora depoimentos dos atores-músicos sobre sua relação com a música do ícone baiano. Os testemunhos são pulverizados ao longo da peça. Daniel Carneiro, por exemplo, revela a sua familiaridade com o sertão. "Sempre que ouço o mestre Gil, que veio de lá e cá ficou, sinto cheiro de mato", emociona-se. Inebriado por lembranças de abacateiro, tamarindo e manga, Rodrigo Lima confessa que o violão é ao mesmo tempo o seu alimento e sua paz. Pedro Lima recorda da vez em que escapou por pouco de um tiroteio por não ter cantado uma composição do artista, Sandra, que posteriormente gravou em seu primeiro CD. Na representação, a passagem da música para o verso declamado e a prosa é sempre harmoniosa. 

Gasparani constrói uma encenação que avança descontraída, leve, viçosa, sem pressa ou pose.  Sua direção é segura. A forma como costura os números e implementa associações e conexões denota perspicácia. Só na aparência o empreendimento é simples, porque se nota um exercício aguçado de pesquisa e investigação. No palco, sobressai um musical consistente, que jamais trata com reverência redutora a criação musical do homenageado. Atento, o encenador tem como norte em sua carreira avançar na linguagem teatral. Recentemente ele brilhou sozinho em cena numa instigante versão de Ricardo III, ambientada em uma sala de aula. Com esta produção, ele oferece sua contribuição para tirar do conforto o teatro musical biográfico desenvolvido no Brasil.

Impregnado de nuances e gradações sentimentais, o espetáculo divide-se em quadros, que evidenciam os assuntos abordados pelo compositor em suas letras. O arco compreende desde as suas influências musicais às relações de amor e amizade, do movimento tropicalista às questões da negritude, do sincretismo religioso à ciência. Os blocos temáticos são aglutinados não só para mostrar a evolução do pensamento do artista como desnudar sua poética.  Embora não explicitados didaticamente em cena, mas descritos no programa da peça, eles emergem com incrível naturalidade.

Alguns são impactantes. Em Os Anos de Chumbo e a Tropicália, a batida de bateria insinua a repressão policial. Completamente nu, Gabriel Manita toca guitarra em tom superlativo durante Se Eu Quiser Falar com Deus. Com sutis mudanças gestuais, encarna um Cristo crucificado ao som de Miserere Nobis e transmuta-se em um homem torturado pela ditadura. A sequência se desanuvia ao adquirir cores tropicalistas, embalada por berimbau. Mais adiante, na futurista e um tanto extensa A Raça Humana – Dois Mil e Gil: Uma Odisseia no Espaço, povoada por hits como Extra e Parabolicamará, os instrumentos são posicionados na frente do palco. A Terra está destruída e eles viajam a bordo de uma nave espacial. No segmento E o Mar Virou Sertão, o grupo transfigura a coreografia do afoxé em um coro de retirantes de Portinari. Empolgante, O Poeta, a Canção e o Tempo promove o entrelaçamento de Expresso 2222 e Tempo Rei.

A trupe transpira virtuosismo. Eles atuam de forma orgânica e exercem domínio natural do público. Gil forneceu a sua matéria prima e o conjunto desembrulhou um desempenho sem fissuras, em simbiose completa. Além de interpretar e cantar, Alan Rocha, Cristiano Gualda, Daniel Carneiro, Gabriel Manita, Jonas Hammar, Luiz Nicolau, Pedro Lima e Rodrigo Lima tocam 39 diferentes instrumentos em cena. Nenhum deles incorpora o personagem central. Todos se revezam em vários papéis para esquadrinhar detalhes marcantes da carreira do músico. Em um momento hilário, eles imitam o jeito peculiar e inconfundível de falar do cantor e compositor.

A equipe técnica colabora para a eficiência do musical. Há um visível cuidado com os pormenores. O cenário de Helio Eichbauer evoca referências da natureza e o fundo azul fornece o contorno da linha do horizonte. Um totem em formato de cruz exibe imagens históricas do músico, como fotos de shows, capas de discos e livros, mais retratos de desaparecidos na ditadura militar, crianças brincando e outras representações, que dialogam com a sua obra. Em uma tela, de inserções pontuais, notas e letras de suas canções são projetadas. Concebidas por Renato Vieira, as coreografias são marcadas pela espontaneidade e extroversão. Os figurinos de Marcelo Olinto, coloridos, estampados e em estilo hippie, buscam capturar e expressar a natureza multifacetada do artista.

Talvez a montagem se ressinta da presença física feminina. Em apenas uma cena a figura de uma mulher desponta, mesmo virtualmente. É quando Cristiano Gualda desfia A linha e o linho enquanto a imagem de sua esposa se precipita na tela. Um pequeno ruído incapaz de deslustrar uma produção que, de maneira inteligente, ousada e despida de procedimentos já banalizados em musicais, celebra um dos nomes mais cruciais da MPB. 

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Mare Martin Fotografia)

 

Avaliação: Ótimo

 

Gilberto Gil, Aquele Abraço - O Musical

Texto e Direção: Gustavo Gasparani

Elenco: Alan Rocha, Cristiano Gualda, Daniel Carneiro, Gabriel  Manita, Jonas Hammar, Luiz Nicolau, Pedro Lima e Rodrigo Lima.

Estreou: 18/03/2016

Teatro Procópio Ferreira (Rua Augusta, 2.823, Jardins. Fone: 3083-4475). Quinta e sexta, 21h; sábado, 21h30, domingo, 18h. Ingresso: R$ 50 a R$ 120. Até 15 de maio. 

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