EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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A voz da rua

Embora para muitos não pareça, não existe apenas uma população de rua. Por isso, é possível afirmar que não será uma política pública única que dará conta sozinha de quem se encontra nessa situação. E mais: deve-se trabalhar com a hipótese de que continuamente haverá um contingente de pessoas que irá morar na rua por motivos variados e, por mais isso que seja difícil de aceitar ou compreender, acabará ficando ali por opção, por estar como que institucionalizado às avessas. Trata-se de sua casa, de seu trabalho, onde encontra uma nova família, companhia. Ou seja, vamos conviver sempre com “gente de rua”, o que requer a implementação e permanência de qualquer política pública para e com este povo.

Encontramos na rua até famílias inteiras. Homens, mulheres, velhos, jovens, ex-trabalhadores formais ou não, ex-presidiários, gente que não conseguiu retornar ao mercado de trabalho, gente envergonhada de retornar para casa ou para sua terra, gente que não tem para onde voltar, bêbados de todos os graus, pacientes psiquiátricos variados, desiludidos que se deixaram derrotar ou foram derrotados, gente que resolveu que não queria mais continuar do jeito que estava, seja lá como estivesse. Certamente não se foi para a rua porque deliberadamente se quis, mas, no caso de alguns, de alguma forma foram permitindo que a coisa assim acontecesse. Existe também a população das drogas, especialmente os usuários de crack. E há quem não é necessariamente da rua, mas as consome, já sem nenhum pudor ou domínio, junto a eles.

Nesse ponto das escalas, vamos pegar um tipo clássico para estudar resumidamente o caso. É muito comum quando se trabalha com esse povo perceber quem acabou de chegar. Normalmente constatamos de que a coisa não precisava ser desse jeito. Ele sente que não é desse mundo, fica afastado, não quer se misturar. É interessante observar que ele não queira ajuda também, ainda mantém um certo tipo de orgulho, aposta ser temporário estar naquela condição. O sujeito ainda não se encontra com a roupa puída, o sapato encardido, as unhas de carvoeiro, o cabelo ensebado. Não deixa de ser triste, no entanto, vê-lo despencando, perdendo a trouxa e demais objetos, depois os documentos, apanhando dos outros companheiros por não conhecer as regras, da polícia que o chama de pudim, dos muitos milicianos. Estes recém-chegados à rua são os clientes mais tradicionais dos albergues. Eles ainda crêem na organização da vida, principalmente dentro do sistema que nós acreditamos e propagamos, mesmo que efetivamente nunca tenham tido nada. Mas, o tempo começa a jogar contra e os albergues são representantes da ordem e disciplina. Como não sabem que existe hora para tudo e não se pode chegar alcoolizado, por desconhecimento acabam se atrasando e começam a ficar bêbados porque dói dormir na rua. Afinal, afundar-se na cachaça ameniza o sofrimento.

Às vezes, ele tem vergonha de pedir, diz que é trabalhador, porém vai aprendendo como funcionam as bocas de rango, quais os melhores trechos para transitar, as estratégias mais eficientes para pedir esmola. No meio da noite, aos poucos, perde o controle sobre tudo, incluindo seu sono. Descobre ser melhor dormir debaixo de uma marquise em lugar claro e movimentado, que não deve urinar e defecar ali, mantendo o local todo limpo de manhã para que o proprietário não mande bater nele. Toma banho nas frestas dos barrancos com vazamentos e, se der, lava a sua roupa.  Aprende como funcionam as entidades que oferecem algum apoio, principalmente como usufruir da culpa de muitas delas ou de como responder adequadamente ao que querem para conseguir alguma coisa. Se puder ainda controlar alguns traços da personalidade que esse tipo de vida vai lhe impondo, talvez obtenha algo mais dessas instituições.

Aliás, percebe que pode comer muito na rua. Até demais e que trocaria a maior parte dessa fartura por um sabonete ou papel higiênico de vez em quando, nem que seja para se lembrar de como era antes. Alguns escovam os dentes, mas poucos dos que levam comida para o povo da rua os lembram disso. Vai descobrindo a importância de demarcar seu território, se associar, ter um ou mais cachorros, deixar as paradas pelos trechos, quem é do bem e de quem é bom fugir. Sabe quais os comerciantes que dão coisas por serem legais ou porque não o querem por perto. Fica doente da boca, olhos, pele, estômago, fígado, ânus, separadamente, aos pares, tudo ao mesmo tempo. Às vezes é tratado na saúde pública, em outras permanece na porta sendo castigado porque é um bêbado, mijado e cagado. Para a maioria, é um beco sem retorno.

Não se pode confundir essa população com a dos consumidores de crack. Todos são povos de rua, mas a primeira é minoria. O problema principal dos que não consomem esse tipo de droga é com o álcool. Usuários de crack pertencem a um perfil diferente, cujo resultado pode ser a rua, mas não é o que apontam trabalhos específicos nessa área. A maior parte que aceita tratamento para o vício ou volta para casa ou é acompanhada por algum familiar durante o processo. Para quem é do outro espectro, dificilmente se achará alguém da família. E, se encontrar, será difícil retomar a vida anterior.

Assim, políticas públicas para moradores de rua não é uma tarefa policial, para qualquer tipo de polícia. Claro que ela pode oferecer apoio em muitos casos, mas não é de sua alçada se responsabilizar pela elaboração ou aplicação de qualquer projeto que seja. Entidades de todo tipo, grupos e pessoas de boa vontade também podem e devem ser chamados para colaborar, se possível, de forma integrada. Porém, o protagonismo cabe tão somente à população de rua. Eles têm e sabem o que dizer a seu respeito.

Para começar, é necessário se retomar a atividade com o povo de rua no seu próprio habitat. Articular os grupos interdisciplinares de estudo e trabalho, mapear novamente os trechos e concentrações, estabelecer os pontos de apoio a esta população no âmbito em que ela circula. Além disso, reativar os centros que existiam e distribuí-los melhor, reorganizar a rede de entidades que já atuava nesse campo, apoiar voluntários dispostos a colaborar com os seus “louquinhos” de estimação – quase todo mundo conhece pedintes em ação próximos de suas casas. Por fim, rever as estratégias de albergamento, casas de apoio, rede de saúde especializada, Boracea, centros de convivência, cooperativas. Para o crack idem, ibidem.

Geralmente fazemos excessivo juízo moral sobre quem mora na rua. Até aí, tudo bem, pois hoje em dia todo mundo tem opinião para tudo, mesmo sabendo muito pouco. O que não é possível, no entanto, são os agentes públicos agirem assim. Não é qualquer profissional que deve encabeçar, elaborar ou executar tais políticas e estratégias. Há muita gente que conhece do riscado e naturalmente voltará a participar se notar seriedade por parte do governante e dos responsáveis por esse trabalho.

O importante é repudiar com veemência formas de higienismo, controle ou remoção forçada, qualquer tipo de afirmação de prevalência de modelos de vida como premissa moral para a ação do estado. É urgente reconhecer esses homens e mulheres como sujeitos com direitos assegurados, que estão apenas em situação vulnerável. Eles não necessitam de pena jurídica, física ou moral. Precisam de políticas públicas que o façam viver felizes, em paz e da maneira que julgarem melhor.  

Professor Armando Tambelli (trecho do texto publicado originalmente no site do Luis Nassif)

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