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Medaglia: "Os ícones musicais viraram pop stars"

A crítica, endereçada a monstros sagrados como Chico Buarque e Caetano Veloso, não é proferida por alguém que acompanhou apenas à distância o cenário musical dos anos 1960 e agora vive lamentando o caráter descartável assumida pela produção artística atual. O autor dessa dura avaliação é o maestro e arranjador Júlio Medaglia, 74 anos, cujo nome está gravado definitivamente na história da música popular e erudita no Brasil.

Ele tem estatura, cacife e conhecimento de causa para questionar o rumo tomado por artistas que se revelaram ou se consolidaram quase meio século atrás. Afinal, Medaglia foi jurado ativo nos célebres festivais da canção exibidos pela TV Record naquela década. Nesse papel privilegiado, gastou saliva na polêmica em torno das composições Disparada e A Banda, viu um dos intérpretes espatifar o violão e atirá-lo contra a platéia e testemunhou a gênese do Tropicalismo – por sinal, ele é autor do revolucionário arranjo de Tropicália, de Caetano Veloso, hino e bula do movimento.

Diplomado em regência sinfônica pela Universidade de Freiburg, na Alemanha (1965), Medaglia é dono de um currículo robusto. Entre outras importantes funções, já dirigiu a Rádio Roquette Pinto, foi supervisor musical da Rede Globo, diretor artístico do Theatro Municipal de São Paulo, escreveu livros, assinou trilhas sonoras para o cinema e criou a Amazonas Filarmônica de Manaus. No momento, tem regido dentro e fora do País como convidado especial, atua em diversos projetos culturais e lançou a nova Orquestra Filarmônica Vera Cruz, de São Bernardo do Campo (SP).

Nesta entrevista, ele revisita os bastidores dos festivais de MPB, relê o movimento tropicalista, critica os ex-provocadores Chico Buarque e Caetano Veloso, lembra da covardia de Elis Regina, chama a atenção para o elitismo da OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) e cutuca sem piedade a postura de certa mídia brasileira. “O principal problema da MPB no Brasil é que os meios de comunicação eletrônicos romperam com a música inteligente. Só tem lixo no ar.”

 

Por Edgar Olimpio de Souza

 

Você participou ativamente dos famosos festivais de música exibidos pela TV Record. Na edição de 1966, o público praticamente se dividiu entre Disparada, de Geraldo Vandré, e A Banda, de Chico Buarque. Os torcedores xingavam uns aos outros de “bandidos” e “disparatados”. Que lembranças guarda desse episódio?

Eu estava no júri. Nós não tínhamos decidido qual das duas seria a vencedora. A decisão durava muito e mudava a cada minuto, a cada argumento. Foi quando Paulinho Machado de Carvalho, dono da emissora, entrou na sala e revelou que o Chico Buarque havia dito que, se ganhasse o prêmio com A Banda sozinho, não iria recebê-lo. Foi um alívio. Votamos pelo empate.

Na edição seguinte, o cantor Sérgio Ricardo tentou interpretar Beto bom de bola e foi veementemente vaiado. Aí, ele arrebentou o violão e o arremessou contra a platéia. Hoje, como você avalia aquele momento?

O público sabia analisar e tinha opinião formada e muito clara do que queria. No contexto da época, a música do Sérgio Ricardo (foto ao lado) tentava se apoiar numa série de elementos artísticos, sociais e humanos. A junção não foi aceita pelo público, que a rejeitou com veemência. Mesmo assim ele insistiu e naquele momento não tinha mais ou menos. Ou era sim ou não. O seu temperamento forte acabou promovendo um dos maiores escândalos da música popular brasileira. Mas serviu para demonstrar também a forma como o público se comportava diante dos acontecimentos daquela década.

No Festival Internacional da Canção, transmitido pela Rede Globo em 1968, pressões externas das autoridades militares teriam impedido a vitória de Pra Não Dizer que não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, preterida por Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim. Como foi o bastidor dessa história?

De fato, a música de Vandré catalisou todas as forças do festival. Eu cheguei a conquistar o prêmio de melhor arranjo, com uma canção de Hermes de Aquino, mas ninguém deu bola. Com um banquinho, um violão e dois acordes, Vandré turbinou a temperatura artística e política da época. Houve pressão para dar a vitória para Sabiá. O desastre foi total. As intérpretes Cynara e Cybele tiveram que engolir uma vaia astronômica. Chico e Tom jamais imaginariam isso.


Naquela época, Chico, Caetano, Gil e Vandré eram vistos como símbolos da oposição ao Regime Militar. Por sua vez, o politizado jornal O Pasquim chegou a "enterrar" Elis Regina como alienada...                                                                                                                                   

Como afirmei anteriormente, não havia meios termos na época. Clara Nunes, por exemplo, foi pressionada pelos militares em função de um determinado show que apresentava. No entanto, ela teve coragem de enfrentar a situação, inventou histórias para não colaborar e sumiu. Já a Elis Regina (foto ao lado) teve outra atitude. Ou porque não teve coragem ou por estar submetida a fortes ameaças, ela apareceu na tevê, no auge da repressão, interpretando o Hino Nacional. Ninguém a perdoou. Vandré, quando viu que a coisa estava pesada para o seu lado em função de Caminhando, fugiu para o Paraguai, camuflado, usando barba e maquiagem. Ele não entregou os pontos. 

Por que o Tropicalismo nunca foi consensual?

Nenhum movimento ou artista revolucionário encontra o caminho aberto, pavimentado. Igor Stravinsky, por exemplo, viveu as duas primeiras décadas do século XX em Paris, na época capital cultural da Europa. Foi lá que apresentou sua Sagração da Primavera, que eu considero a maior obra musical do século, uma espécie de Divina Comédia, uma Capela Sistina, uma Odisséia. Na estreia, o sofisticado público do Champs-Élysées lançava objetos no palco. Para não apanhar, os músicos tiveram que fugir. Beethoven, Erik Satie, João Gilberto e outros inovadores nunca foram bem recebidos inicialmente. Como a música chega à alma antes da razão, muitas vezes o atrito entre uma linguagem e o repertório que o indivíduo carrega em seu espírito gera conflitos.

Então o reconhecimento nunca é imediato?

Veja que curioso: 27 anos depois de estrear, Sagração da Primavera se tornou trilha sonora de um filme infantil, o antológico Fantasia, de Walt Disney, sem que nenhuma criança tivesse entrado em pânico após assisti-lo. Caetano entrou vaiado no palco do Festival da Record de 1967 para interpretar a música Alegria, Alegria e saiu aplaudido. Ele havia me pedido para fazer um arranjo para essa música, que entrou no álbum Tropicália. Concluímos que a grande virada seria uma simples marcha-rancho ser tocada por uma banda eletrônica, como as do rock de então. Não usei instrumentos acústicos tradicionais. O arranjo foi combinado com os músicos e não escrito. Um escândalo que se tornou sucesso. Só que essa passagem durou apenas três minutos.

Há quem avalie que Chico Buarque, Caetano Veloso e outros pesos-pesados do passado não conseguem mais compor canções com a mesma pegada. Você acha que eles continuam produzindo com a mesma qualidade de antes?

O principal problema da MPB é que no Brasil os meios de comunicação eletrônicos romperam com a música inteligente. Só tem lixo no ar. O que se produz de bom acontece em palcos subterrâneos. Boa parte dessa situação de massacre da sensibilidade se deve também a esses ícones do passado, aos provocadores daquela época, que ainda são líderes. Eles preferiram seguir a carreira de pop star em vez de continuarem engajados nacionalmente numa luta cultural ou social. Vivem dos juros da produção antiga e entregam troféus à indústria eletrônica, a mais insensível do mundo. A ditadura militar os obrigara a reagir de forma criativa e engajada. Hoje, a ditadura é mercadológica, mas aqui e agora eles não a enfrentam. Ao contrário, são beneficiados por ela. Abriram mão da criatividade.

O mercado dita as regras do jogo?

Foi montada uma grande máquina para ativar o comportamento do “consuma & descarte”. Como as atuais lideranças empresariais não sabem lidar com o talento criador artístico, que é diferente do criador de um novo modelo de celular, preferem eles mesmos inventar seus Frankensteins para o processo não ser interrompido. Aliás, gravadoras e veículos de massa substituíram os diretores artísticos pelos chamados diretores de marketing. O resultado é que a criação saiu das mãos do criador e parou nas mãos do produtor. Em Hollywood, isso funcionou muito bem, mas não em relação à música produzida hoje. É bom ressaltar que esse problema não se resume ao Brasil. Se você ligar o rádio ou a tevê na Europa, vai cair de costas.

A MPB faliu?

Houve um tempo em que as músicas eram veiculadas em várias rádios e os produtores se sentiam motivados. O cenário mudou. Agora, você tem que consumir muito, gostar pouco e jogar fora logo. Ou seja, não é mais interessante para a indústria cultural produzir uma coisa de qualidade que dure. O paradoxo é que o público gosta da boa música, mas está vilipendiado. Pixinguinha compôs Carinhoso há oitenta anos e até hoje as pessoas estão tocando e curtindo. Beethoven criou dois séculos atrás uma sinfonia com três notas e o pessoal ouve. Isso não interessa ao mercado. A TV Globo, a maior do País e a mais talentosa do mundo do ponto de vista da linguagem, não programa nada de música no horário nobre. É como se música não existisse no Brasil.

Como você avalia a música erudita no Brasil no tocante aos cantores, compositores e apresentações de orquestras de nível internacional?

A música erudita vai muito bem. Criam-se cada vez mais orquestras em todo o País e existem dezenas de projetos de uso da música como elemento de inserção social. Com isso, há uma enorme quantidade de jovens estudando instrumentos. Isso é bom. A música não só organiza a mente das pessoas como desenvolve a sensibilidade delas, revelando talentos. É preciso, porém, melhorar a qualidade do ensino. Levei sessenta músicos da Europa Oriental à Manaus e em três anos formaram-se quatro orquestras jovens na cidade, de excelente qualidade. Escola boa é tudo.

A sua demissão do cargo de diretor artístico da Orquestra do Theatro São Pedro, no ano passado, foi tingida de controvérsias...

Eu me desentendi com a direção executiva da organização social que administra a casa. Estas entidades são um tipo de estrutura que antigamente todo mundo desejava. Depois, elas foram distribuídas nas mãos de empresas não competentes. O resultado disso são pessoas que não são do ramo, com um pensamento burocrático, com as quais a gente tem de lidar. No fundo, eu era tratado como criança. Não dá para trabalhar com quem não é do ramo. A carreira não é levada em consideração. Em empresas públicas, muitas vezes somos tratados como cachorros sarnentos. 

Na sua opinião, que modelo de política cultural deveria ser adotado para as orquestras públicas do País?

As orquestras brasileiras são órgãos públicos, não apenas instituições feitas para produzir entretenimento cultural para uma elite. Como é possível a OSESP (foto ao lado) gastar 87 milhões de reais por ano para a fruição de tão somente um pequeno grupo de pessoas e o estado todo não se beneficiar disso? É aceitável importar uma regente desconhecida dos Estados Unidos, sem nenhuma expressão internacional, e pagar a ela mais que a Filarmônica de Berlim, a melhor do mundo, desembolsa para o maestro Simon Rattle? Ela vem aqui, faz a programação e se manda. Além disso, a orquestra fecha as portas aos maestros brasileiros. A gente achava que a privatização delas representaria um grande avanço, mas gerou outros vícios e problemas. Com essa grana, eu crio dez OSESPs em seis meses e abranjo musicalmente o estado inteiro. 

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