Teatro: Lazarus
- Criado em Quarta, 04 Setembro 2019 21:08
- Escrito por Edgar Olimpio de Souza
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É uma estranha viagem estética, musical e dramática, o epitáfio artístico e existencial do cantor e compositor britânico David Bowie (1947-2016). Nesta produção, ele revisita o alienígena que encarnou na icônica ficção científica O Homem Que Caiu na Terra (1976), de Nicholas Roeg, levada às telas a partir do livro homônimo de Walter Tevis (1963). Situada décadas depois, o extraterrestre tornou-se um ser deprimido e alcoólatra, que vive recluso em seu apartamento, refugiado de um mundo que não compreende direito.
Com alicerce narrativo nada óbvio e linear, uma singularidade se comparado aos tradicionais musicais americanos, o que Bowie escreveu em parceria com o dramaturgo irlandês Enda Walsh é uma sequência do longa-metragem. A espinha dorsal do enredo, que não se preocupa em fornecer pistas e informações do que aconteceu no passado, é a tentativa do forasteiro de deixar a sua existência terrena e retornar ao seu planeta de origem, de forma literal (via foguete) ou simbólica (pela morte). Empresário de sucesso na Terra, hoje Thomas Jerome Newton está à beira da insanidade, assombrado por vozes reais ou imaginárias, delírios sobre sua família distante e fantasias de um romance perdido.
A obra ganhou a sua primeira montagem brasileira, assinada por Felipe Hirsch, nome consolidado no cenário teatral brasileiro. Engana-se quem espera um passatempo digestivo. Trata-se de um trabalho labiríntico, porque concebido por um artesão iconoclasta e camaleônico, responsável por um influente legado sonoro, que foi moldado conforme as suas aspirações estéticas no momento da criação. Bowie o concebeu durante o período em que lidava com uma doença terminal. É este produto sinuoso, onírico, encharcado de energia selvagem e melancolia que avulta no espaço cênico. Na trama, um amargo humanoide (papel de Jesuita Barbosa), presumivelmente imortal, sobrevive à base de doses de gim e sitiado por figuras realistas e espectrais. Entre outras, a acompanhante Elly (Carla Salle), que se apaixona por ele e tenta substituir a musa do seu passado, uma garota sem nome (Bruna Guerin) e o enigmático Valentine (Rafael Losso), indivíduo de temperamento perturbador e propensão à violência.
Com atmosfera opressiva, adensada por um jogo de imagens duplicadas, a encenação evidencia a sensação de apatia e isolamento que acomete um personagem existencialmente à deriva. Esse estado de deslocamento propaga-se por meio de sequências fragmentárias e estilhaçadas, embaladas por um conjunto de dezoito canções de Bowie, que transcendem o estereótipo de signos dramáticos e despertam percepções lisérgicas. A trilha inclui hits conhecidos como Changes e Life on Mars? e composições especialmente desenvolvidas para o espetáculo, exemplos de Killing a Little Time e When I Meet You. Executadas integralmente ou apresentadas como interlúdios ao longo da representação.
Na direção, Hirsch enfrenta o desafio de dar sentido à natureza kafkiana do texto. Sem falsear a matéria prima, deixa que o conteúdo se expresse sem amarras e instaura uma espécie de imersão, capturando o espectador com estímulos visuais e auditivos. Ele recupera de outra empreitada que dirigiu, Pterodátilos (2010), o procedimento de usar sobre o palco uma plataforma móvel, que produz inclinações diferentes e desestabiliza a movimentação dos atores. O desequilíbrio provocado, além de ilustrar a ideia da gravidade, serve para simbolizar o ziguezague emocional daquelas criaturas em cena. Hirsch reuniu um elenco que se entrega com naturalidade a uma mis-em-scène intensa e expressionista, capaz de entonar com vigor as sofisticadas partituras.
Jesuita Barbosa consegue sem esforço nítido extrair do homem que quer deixar a humanidade o sentimento de prostração e indiferença de alguém que contempla o fim da vida – o nome do personagem central, aliás, faz referência ao bíblico Lázaro que, segundo a Bíblia, estava morto e foi ressuscitado por Jesus. Enfática e convincente, Bruna Guerin materializa as figuras femininas relacionadas de alguma forma à história do estrangeiro, possivelmente frutos de sua psique delirante. A interpretação que a atriz concede à melodiosa Life on Mars? cativa a plateia. Carla Salle presta-se muito bem ao papel da confusa Elly, dividida entre a relativa estabilidade de seu casamento sem amor com Zach (Vitor Vieira, em performance correta) e o fascínio exótico por Newton. Rafael Losso defende-se a contento na pele de um sinistro agente da morte, talvez o id do protagonista – o seu desejo inconsciente de autodestruição.
O cenário de Daniela Thomas e Felipe Tassara, com destaque para um espelho gigante ao fundo, tem sintonia com o ambiente de sonho, imaginação e excentricidade. As sugestivas projeções de vídeos e retratos futuristas, de acento irônico, se sobrepõem e se fundem com a ação física. Maria Beraldo e Mariá Portugal assinam a direção musical. A dupla investe em releituras e arranjos personalizados, compondo uma hipnótica paisagem sonora.
Não é uma peça imune a impasses. Os diálogos, por exemplo, nem sempre estão à altura dos temas complexos ali embutidos. Nota-se certa assimetria entre a exaltação extravagante da arte de Bowie e o senso de diversão, gerando uma (equivocada) impressão de monotonia. E os números musicais muitas vezes brotam sem razão alguma aparente. São embaraços, no entanto, que não profanam um ensaio que empina uma visão especial da mente criativa do artista. Lazarus é uma envolvente meditação sobre a vacuidade da existência, o poder retilíneo do amor e a fragilidade da experiência humana. Uma obra com ares de fábula, estranhamente sedutora em torno da angústia da imortalidade.
(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )
(Foto Flávia Canavarro)
Avaliação: Ótimo
Lazarus
Texto: David Bowie e Enda Walsh
Direção: Felipe Hirsch
Elenco: Jesuita Barbosa, Bruna Guerin, Carla Salle, Rafael Losso, Vitor Vieira e outros.
Teatro Unimed (Alameda Santos, 2159, Cerqueira César). Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 80 a R$ 180. Até 27 de outubro.
Estreou: 22/08/2019
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