EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: MITsp 2018

Acabou a quinta edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo e o saldo é favorável. Embora o teatro continue enclausurado numa espécie de gueto cultural e enfrenta dificuldades para ampliar o número de frequentadores - a média de público da MITsp, por exemplo, continua na casa de dezoito mil espectadores totais por ano -, o evento movimentou a capital paulista e trouxe trabalhos de linguagens arrojadas. Na opinião deste crítico, entre as oito atrações internacionais, cinco se destacaram.  

Árvores Abatidas (foto da capa) foi a mais comentada e elogiada da programação. Um dos nomes expressivos da cena teatral polonesa, o diretor Krystian Lupa desembrulhou uma adaptação vigorosa a partir do romance do escritor austríaco Thomas Bernhardt. Na trama, um dramaturgo é chamado para um jantar por um casal, quando os três se encontraram no funeral de uma velha amiga em comum. Supostamente organizada para relembrar a falecida, a ceia reúne outros comensais e um convidado de honra, um famoso ator local. 

O que se nota durante o jantar da elite cultural vienense (nesta versão, polonesa) é que, no fundo, ninguém queria estar ali. À medida em que a noite avança, estes personagens cínicos e narcisistas começam a vociferar seus temores, despeitos, reivindicações, presunções e invejas. O cardápio inclui ainda calúnias, preconceitos e indisfarçáveis trocas de farpas. Com quase cinco horas de duração, a mise-en-scène se vale de gravações de vídeo, projeções de imagens e música, incluindo uma sequência inteira de Bolero, de Ravel, e sons atonais. A ação transcorre no interior de uma impressionante caixa de vidro giratória que, ao rodar, revela outros ambientes.

Trata-se de uma obra poderosa, que escancara verdades inconvenientes sobre as ilusões da carreira artística e os artifícios, sistemas e poderes que regem o universo da arte. Na melancólica sequência final, numa asfixiante sala de música, a fogueira de vaidades queima impiedosamente a todos. Lupa pincela essa tragédia com humor amargo, engendrando uma reflexão penosa sobre as dissimulações e mentiras que enredam nossas existências.

Outra produção implacável foi Palmira (foto ao lado), do grego Nasi Voutsas e do francês Bertrand Lesca. Fábula sobre a guerra civil na Síria, cujo título leva o nome da cidade invadida pelos militantes do Estado Islâmico, o espetáculo transporta do plano político para o campo pessoal o espírito beligerante do ser humano, que parece sempre disposto a destruir e separar no lugar de criar e agregar. 

Logo no início, os clowns Lesca e Voutsas se aproximam um do outro enquanto brincam de skates. Os laços de aparente generosidade e cooperação, no entanto, mascaram ambições subterrâneas e impulsos marciais. Lentamente a relação de companheirismo se decompõe e o trágico se infiltra, com a brincadeira dando lugar a um desconcertante jogo de poder, opressão e violência psicológica. Não por acaso, em pouco mais de uma hora o palco asséptico se encontra maculado por milhares de pedaços de pratos esmagados, aqui símbolo dos templos arruinados durante a ocupação de Palmira pelo grupo radical islâmico. Há uma passagem em que um dos personagens confia um martelo para alguém da plateia. Um carismático Lesca deseja que o escolhido o entregue a ele. Um silencioso Voutsas suplica que não o faça. Determinados, ambos lutam pela atenção e controle da audiência.

De atmosfera tensa, a montagem se utiliza de poucos e pontuais recursos para corroborar a tese de que conflitos podem estourar, as emoções saírem do controle e os comportamentos se radicalizarem numa rapidez enervante. Simbolicamente, a peça mostra a batalha pelo domínio das narrativas da guerra e da representação dos papeis de vítima e agressor nessas circunstâncias. Camadas de significados emanam dessas figuras que têm a espantosa habilidade de impor violência um ao outro.

Sem consenso algum, o interessante King Size (foto ao lado) revelou-se uma nova maneira de abordar o gênero musical, com a adição de elementos do absurdo, surrealismo, vaudeville e comédia de costumes. O diretor suíço Christoph Marthaler ressignificou a configuração clássica dos musicais, promovendo uma desconstrução da linguagem cheia de códigos e parâmetros de um teatro que que combina música, dança e representação. A encenação tem repetições intencionais, andamento desacelerado e um tempo bastante singular. A trilha sonora emaranha Bach, Jackson Five, Eric Satie, Schumann e outros estilos musicais díspares. De certa forma, todas tratam do amor e suas variações.   

Um quarto de hotel, com uma cama enorme, é o cenário por onde circulam quatro personagens - um esquisito cantor pianista careca, um casal que mal se toca e uma senhora de atitudes excêntricas. Quem procurou linearidade na trama, um fio condutor lógico, conexões entre uma coisa e outra e personagens óbvios se perdeu. Vagamente temos a história de um homem e uma mulher que tentam dormir, que sonham ou não e que começam a cantar sem propósito visível. Situações esdrúxulas acontecem a cada minuto. A senhora escala um banco e se esforça um bocado para pegar algo na parede que nunca saberemos de que se trata. Do interior de uma bolsa sai espaguete. Uma geladeira está situada acima da porta do armário, numa altura que dificulta se apanhar uma bebida. Uma mulher canta debaixo da cama.

Nada disso faz nexo, claro, mas o que é apresentado agrada e diverte. O elenco interpreta bem, dança coreografias peculiares e entrega pantomimas curiosas. Talvez seja possível entendê-la como uma alegoria da incomunicabilidade humana e da busca incansável por um sentido na vida.   

Suíte nº 2 (foto ao lado), do artista francês Joris Lacoste, abriu a MITsp e dividiu opiniões. Num espaço cênico esvaziado, sem figurinos específicos, cinco atores-cantores com microfones dão voz e expressão a um espectro de documentos verbais, pesquisados e sistematizados, de diferentes lugares, contextos, situações e idiomas. O efeito é estranho, com fragmentos de comunicação que transitam do romântico ao insólito, do sinistro ao surpreendente. Sem comentários, apenas replicados, respeitando-se entonações, emoções, ritmos e articulações originais.

Em uma passagem típica de uma babel, o longo e monótono discurso de um ministro português sobre economia é entrecortado por diálogos de um vídeo pornô e a reclamação furiosa de uma cliente contra seu provedor de internet. Uma família conservadora rejeita o filho gay, um imigrante sem teto no metrô de Paris berra contra o destino, um aspirante ao terrorismo na Austrália faz ameaças. Há ainda, entre outros registros, uma aula de ginástica na televisão croata, a síncope nervosa de um participante de BBB, o texto comovente de uma atriz premiada no Oscar, o contato entre um piloto do avião e o controle de trafego aéreo, pouco antes da queda da aeronave.   

Lacoste efetiva um tributo ao poder da palavra, suas idiossincrasias e dissonâncias, um estudo sobre o comportamento humano e sua expressão por meio da linguagem verbal. Com cortes precisos em sua extensão e menos sobreposições, a direção poderia dar relevo maior a algumas falas preciosas. A criação é meticulosa, curiosa e de fácil envolvimento, porém uma mordaça que, ao cabo, não leva o assistente para outro lugar.

Em Campo Minado (foto ao lado), a diretora argentina Lola Arias recrutou ex-combatentes (três argentinos e três ingleses) que lutaram na Guerra das Malvinas, que opôs Argentina e Reino Unido em 1982 em torno do domínio da ilha, desde então sob o domínio britânico. O espetáculo soa como terapia em grupo, um retorno ao passado para compreender emocionalmente o presente. Os depoimentos são, em alguns momentos, justapostos pelos discursos do presidente argentino Leopoldo Galtieri e da primeira-Ministra Margareth Thatcher, ironicamente apresentados por meio de máscaras realistas.  

Os quase sexagenários homens revivem o processo de recrutamento, a chegada à ilha, a tensão no front de batalha, o orgulho ferido da derrota ou o sentimento vazio do triunfo, o previsível estresse pós-traumático a partir da experiência dolorosa de ter combatido em um conflito que durou dois meses e meio. Para reforçar os relatos, a diretora utiliza vídeos, imagens da época, efeitos sonoros e música ao vivo – um dos latinos virou músico de uma banda que homenageia os Beatles. 

Dois instantes são especialmente emotivos. Em uma simulação de sessão terapêutica, o agora atleta Marcelo Vallejo revisita sua biografia para David Jackson, hoje psicanalista, marcada pelo alcoolismo e consumo de drogas que quase o levaram ao suicídio. O professor Lou Armour sofre ao lembrar de um soldado inimigo que morreu em seus braços.

Os testemunhos pessoais emocionam e a direção não se propõe a promover juízos de valor ou discutir a soberania. Estruturado em capítulos, o espetáculo se mostrou menos profundo do que poderia ser. Questões como a do despreparo dos soldados argentinos e a estratégia da criação de um patriotismo tardio ficaram pela borda. O paradoxo de ser visto como herói em uma nação governada brutalmente por militares também não foi para a cena.   

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Fotos: Guto Muniz)

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