EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

  • Font size:
  • Decrease
  • Reset
  • Increase

Paris, Texas

Maternidade e paternidade são a questão central no filme de Wim Wenders. Logo no início, Travis vaga pelo deserto até ser encontrado por seu irmão Walt, casado com Anne. Quatro anos antes, o casal havia acolhido o sobrinho Hunter, a pedido da mãe do menino, Jane, que se separara de Travis. A reaparição desse personagem solitário instaura a confusão. “Travis é seu verdadeiro pai, você sabe disso, não?”, pergunta Walt, a quem Hunter chama de pai. O que é um pai? Por que alguém deseja ter um filho? O que é educar? O que é criar um filho? Um rápido diálogo entre Travis e a empregada ilustra essa busca em curso no longa. Ela pergunta: “O que está procurando?” Ele: “Estou procurando o pai”. Ela: “Seu pai?”. Ele: “Não, só o pai. Qualquer pai. Como é que um pai aparenta ser?”. Ela: “Há muitos tipos de pai. Ele: “Eu só preciso de um”. Ela: “Já entendi, você quer parecer um pai?”. Ele: “Sim”. Ao final, saberemos que o nascimento de Hunter mudou a vida de Travis, levando-o a acreditar no amor de Jane.

Para ela, no entanto, o nascimento do filho provocou uma imensa irritação “com tudo ao seu redor”, deixou-a “louca com tudo” e viu o bebê como um “castigo” que a fez sonhar em fugir. Jane, interpretada por Nastassja Kinski, com sua boca pronunciada, entregou o filho para o cunhado criar. “Por que você não ficou com ele?”, pergunta-lhe Travis, vivido por Harry Dean Stanton. “Eu não podia. Eu não tinha o que sabia que ele precisava. Eu não quis usá-lo para preencher o meu vazio”. “Bem, ele precisa de você agora e quer ver você”. Assim, o pai realizava seu propósito, como explicou ao filho: “Seu lugar é junto de sua mãe. Fui eu quem afastou vocês. E tenho a obrigação de uni-los de novo. Mas não vou poder ficar. Eu jamais poderei consertar o que aconteceu. Amo você, Hunter, mais do que a minha vida”. Quando a mãe chega ao hotel para encontrar o garoto, ele caminha até ela e a abraça, encaixando-se perfeitamente em seu corpo. Os dois são fisicamente muito parecidos. Travis vê o encontro, de longe, e vai embora.

“Seu lugar é junto de sua mãe”. Eis aí, numa frase aparentemente simples, a síntese de séculos de uma civilização – a nossa, Ocidental. Desde a antigüidade, até as portas do século XX, ou mesmo até hoje, a mulher tem sido identificada ao útero. A feminilidade é o útero e assim era para Hipócrates, o “pai da medicina”, que retomou concepções médicas antigas, particularmente dos egípcios, atribuindo ao útero o sofrimento das mulheres. Esta não é a ocasião apropriada para eu me estender sobre a complexidadedessa partilha sexual no Ocidente, que separou a mulher útero do homem cetro (ou espada), interditando-lhes e impondo-lhes territórios específicos. Em outros lugares, como em publicações e produções na Casa do Saber (RJ), tenho me dedicado aos multifacetados desdobramentos dessa divisão sexual fundadora da nossa cultura e que Travis condensa, inteira, nessa emblemática frase: “Seu lugar é junto de sua mãe”. Essa clivagem patriarcal está também nos fundamentos do que os psicanalistas de vários matizes definem como feminino e masculino.

Na psicanálise e, particularmente, nas teorizações derivadas da leitura lacaniana do complexo de Édipo, a mãe é uma figura incestuosa por natureza e o pai, a chamada “função paterna”, o salvador da criança. Ele salva o filho, proibindo que a ogra devoradora reincorpore sua cria como seria “naturalmente” o seu desejo. Ora, Jane é uma mãe que interroga essa fantasia conceitual de uma mãe incestuosa a quem o pai deveria proibir reintegrar o seu produto. Rebela-se contra a sua “natureza” e abandona o filho para que seja criado por Walt e Anne como se estes fossem seus verdadeiros pais. Ela recusa a maternidade, o que, em termos culturais e psicanalíticos, não é diferente de rejeitar a feminilidade.

Mas não se desobedece impunemente a proibição dos deuses e dos homens. A nova Eva redime-se de sua transgressão reeditando a história do feminino no Ocidente do século XII, quando irrompe o culto à Virgem Maria e o filho vem salvar a mãe. Jane redime-se de sua transgressão quando Travis ativa o reencontro entre ela e Hunter e recoloca a história nos trilhos - o filho à mãe pertence, da mesma forma que o inverso também é verdadeiro. Esta injunção cultural está longe da espontaneidade que a leitura oficial, particularmente a psicanalítica, pretende instituir há milênios. Existem vários modos de se figurar a relação incestuosa e esse encaixe anatômico de dois seres fisicamente parecidos, como mostrado no final do filme, é um deles. Pois o incesto também pode ser entendido de outra maneira além da união genital entre o progenitor e o filho. Uma volta mortífera às entranhas maternas está longe do tom de celebração que emana da fantasia do paraíso originário formado pelo par mãe-bebê. Na produção de Wim Wenders, esse desejo incestuoso está longe de ser oatributo “natural” e evidente, tal como qualificado pelas teorias psicanalíticas. Aqui é Travis, o pai, que regressa  para unir a suposta mônada (mãe-filho) auto-suficiente que ele mesmo separou. A Paris, de Wenders, está no Texas.

(Marcia Neder – psicóloga e psicanalista / O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Paris, Texas

Título Original: Paris, Texas (Estados Unidos / Alemanha / França, 1983)

 

Gênero: Drama, 147 min                                                                                                                   

Direção: Wim Wenders

Elenco: Harry Dean Stanton, Nastassja Kinski, Dean Stockwell e outros.                                                                                                                            

Distribuidora: Europa Filmes                                                                                                                          

 

Veja cenas do filme:

 

 

 

                                                                       

Comente este artigo!

Modo de visualização:

Style Sitting

Fonts

Layouts

Direction

Template Widths

px  %

px  %