EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

  • Font size:
  • Decrease
  • Reset
  • Increase

MITsp: Mundo no palco

Breves considerações sobre alguns dos trabalhos apresentados na sétima edição da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, que movimentou a cena teatral paulistana de 5 a 15 de março desse ano.  

Farm Fatale. Trata-se de um conto de fadas ecofuturista, assinado pelo dramaturgo e cenógrafo francês Philippe Quesne. Atores transfigurados em espantalhos entram numa fazenda esvaziada, carregando fardos de feno gravados com slogans políticos. Eles são amorosos, têm charme infantil, as vozes soam distorcidas. Cantam, recitam versos e poesias de Shakespeare, compartilham histórias sobre os agricultores para quem trabalhavam, hoje todos mortos, vítimas da industrialização da agricultura e uso de pesticidas na lavoura. Um dos espantalhos é um ex-ativista que participou de protestos contra a poluição e as mudanças climáticas. Outro tenta gravar um canto de pássaro que, junto dos insetos, foram extintos – apenas as vacas geneticamente modificadas sobreviveram. 

O espetáculo se mantém o tempo todo nesse registro surreal, pontuado por questões filosóficas e políticas. Uma abelha rainha sobrevivente é entrevistada para o programa de rádio independente que a turma apresenta. Um porco de plástico em tamanho real se encontra no palco. Próximo dele, uma criatura peluda bota um ovo grande brilhante, que será juntado aos demais ovos mágicos transportados no caminhão da trupe – talvez eles queiram criar uma nova vida, sem a presença dos humanos predadores. (foto acima)

Avaliação: Bom   

 

Casa Mãe. Primeira parte de uma trilogia denominada Contos Imorais, a peça da artista francesa Phia Ménard desembrulha poderosa reflexão sobre uma Europa avessa ao diferente. Sozinha no palco, envergando figurino meio punk, ela manipula uma estrutura de papelão que, aos poucos, adquire a forma do icônico templo grego Parthenon. Durante a execução da obra, a performer corta, encaixa, ajusta, usa varas de apoio. Um esforço físico obstinado, acompanhado com algum suspense e angústia pela plateia. Mais adiante, uma chuva torrencial implode a imponente construção de papel grosso, que se transforma em ruína.

Estamos diante de uma metáfora trágica. Se o berço da civilização é a Grécia, ali acontece figurativamente o seu desmoronamento. No dia seguinte, como que encarnando o mito de Sísifo, ela terá de começar de novo. A lição depreendida é a de que possivelmente seja necessário vivenciar a desconstrução de tudo para outra vez o ser humano reaprender a viver em sociedade, de uma maneira mais generosa e tolerante. (foto acima)

Avaliação: Ótimo   

 

Tu Amarás. A engajada companhia chilena Bonobo examina aqui a cultura da aversão à alteridade, um tipo de comportamento que começou a ser construído desde a chegada do colonizador espanhol à América e a dominação que impôs aos povos nativos. Após o flashback inicial, o espetáculo salta para os tempos atuais e flagra um grupo de médicos chilenos se preparando para uma conferência internacional sobre preconceito na medicina. O motivo é melhorar o atendimento aos amenitas, imigrantes extraterrestres que desembarcaram na Terra para escapar do genocídio em seu planeta natal. Os alienígenas, nunca mostrados, se instalaram marginalmente em um bairro e agora são vítimas do ódio e racismo latentes dos vizinhos.

No papel de vigilantes morais, estes profissionais querem acabar com a desconfiança, discriminação, preconceito e mazelas que assolam os novos habitantes. Acontece que involuntariamente eles, que se consideram indivíduos especiais, vão revelando seus próprios crimes e malfeitorias, tudo aquilo que afirmam combater. A montagem, assentada em diálogos incisivos, ilumina as incoerências e as deformações dos valores  embutidos nos discursos de igualdade e fraternidade. (foto acima)

Avaliação: Ótimo   

 

Babaca. Dirigida por Gisèle Vienne, a partir do livro do escritor americano Dennis Cooper, a obra se vale de fantoches para narrar os terríveis assassinatos em série na vida real cometidos no Texas nos anos 1970 pelo adulto Dean Corll e os adolescentes Wayne Henley e David Brooks. O trio foi responsável pela morte de 27 jovens, executados por gratificação sexual. O ator francês Jonathan Capdevielle interpreta Brooks, que supostamente está reencenando os homicídios para estudantes de Psicologia.

Sentado em uma cadeira, dentro da prisão onde cumpre sua sentença, ele retira os bonecos de luvas que retratam os parceiros dos crimes e inicia os relatos arrepiantes. Sua performance é obsessivamente realista, apoiada em uma diversidade de vozes, sons e gemidos, até das vítimas, transitando entre a ternura e brutalidade, o assustador e o risível, num inspirado trabalho de ventriloquismo. Eventualmente as cenas são interrompidas para que o público possa ler trechos da história impressos em fanzines distribuídos previamente. Visceralmente intensa, a peça percorre temas como homossexualidade, adolescência, violência sexual, perversidade e alienação. (foto acima)

Avaliação: Ótimo   

 

By Heart. O dramaturgo português Tiago Rodrigues escreveu e atua nesta montagem, que presta uma pungente homenagem ao poder da literatura. Dez espectadores se acomodam em cadeiras dispostas em linha no palco para memorizar um soneto shakespeariano. Com nítido senso de humor, que extrai principalmente das previsíveis dificuldades dos participantes, ele incorpora uma espécie de maestro regendo um coral. No final, os voluntários recebem pequeno papel comestível com o soneto de Shakespeare.

Habilmente Rodrigues tece uma engenhosa teia de conexões surpreendentes entre o poema do bardo inglês, a história da sua avó, que legou ao neto a paixão pelos livros, a filosofia humanista de George Steiner, a Rússia stalinista, profetas bíblicos, um programa de televisão holandês e o romance distópico Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, sobre uma sociedade autoritária na qual os livros são caçados e queimados pelo governo. A mensagem política é concreta. Em tempos de confisco do patrimônio cultural e de censura, além do hábito cada vez mais arraigado de se recorrer aos mecanismos de buscas na Internet, a maneira como guardamos o conteúdo dos livros na memória se torna uma arma vigorosa. (foto acima)

Avaliação: Ótimo   

 

Multidão. Com elaborados movimentos coreográficos, a produção, que abriu o evento, é uma criação da artista franco-austríaca Gisèle Vienne ambientada em uma rave. A hipnótica trilha sonora de techno-trance concede ares de fim de mundo ao ritual coletivo protagonizado por quinze performers com indumentária típica da juventude urbana, como jeans, jaquetas e tênis. Desde o início eles se deslocam pelo palco em câmera lenta, sempre alterando a velocidade dos gestos e trejeitos – em certo momento, eles chegam a cair no chão.

Pequenas narrativas e histórias se formam, sob uma acurada arquitetura de iluminação, algumas vezes com o uso de luz diagonal no espaço cênico ou centrada em um determinado personagem. Duas garotas se beijam, um rapaz solitário apenas observa, uma adolescente desfila sua sensualidade, uma briga explode. São cenas de volúpia, violência, amizade, atração e repulsa. Por instantes conversam, mas os diálogos são inaudíveis para a plateia. No fim, como se tivessem em processo de desintegração, eles abandonam o espaço liberando fumaça de seus corpos. (foto acima)

Avaliação: Bom   

 

O que Fazer Daqui para Trás. Nesta montagem, concebida e dirigida pelo performer e coreógrafo português João Fiadeiro, a curiosa peça questiona a natureza do tempo e espaço. O artista propõe uma reversão, dinamitando a ideia de que só é possível entender o tempo como um movimento que flui do passado para o futuro. Performers entram correndo dos fundos do palco, param diante de um pedestal que sustenta um microfone e, ofegantes, contam algum episódio do cotidiano, compartilham um ponto de vista, revelam desejos. Minutos depois retornam, outra vez arfantes, com suas ladainhas um pouco modificadas, produzindo novos sentidos. Há humor nesse circuito cênico que parece sem fim.

Estruturada como uma partitura, a narrativa se desenvolve intercalando falas e silêncios. Próximo do desfecho, os intervalos se encurtam e até desaparecem, o que provoca uma frenética movimentação dos atores. As falas se tornam inconclusivas, porque um interrompe o outro, e mal chegam a ser enunciadas. A respiração é irregular, a exaustão tomou conta dos intérpretes. Para Fiadeiro, o ser humano é assolado pela urgência, a vida se transformou numa corrida incessante e quase nunca é possível discernir, organizar e compreender o seu sentido. (foto acima)

Avaliação: Bom   

 

 

 

 

Teatro: A Verdade

Os dois casais desta farsa desaforada mentem para manter as aparências. Alguém é enganado agora, na sequência é sua vez de enganar e depois ele se vê ludibriado de novo. Até o público acaba engabelado neste clássico do adultério, escrito pelo dramaturgo francês Florian Zeller, que recebeu encenação inspirada e espirituosa assinada por Marcus Alvisi. Na trama eivada de reviravoltas e revelações em cascata, Michel (Diogo Vilela) mantém há seis meses um caso extraconjugal com Alice (Carolina Gonzalez), companheira de seu melhor amigo, o desempregado Paulo (Paulo Trajano). Alice, no entanto, não quer mais que os encontros aconteçam apenas em quartos de hotéis. Ela propõe um fim de semana juntos em alguma outra cidade. 

A situação começa a descarrilar a partir do instante em que Laura (Bia Nunnes), esposa de Michel, passa a lhe fazer perguntas embaraçosas relacionadas a eventos mal explicados e justificados. Para completar, Paulo, com quem costuma jogar tênis, confidencia a ele que anda meio desconfiado do comportamento da própria mulher. Ou seja, parece que o surrado clichê das inesperadas reuniões de negócios não funciona mais. Ciente de que pode ser desmascarado a qualquer momento, Michel mergulha em um redemoinho de mentiras. Sua tática principal é mostrar indignação quando contraditado – é engraçado observar o marido adúltero se contorcendo e suando nessas circunstâncias. O texto, porém, prepara uma armadilha. De forma tortuosa, como perceberemos, o quarteto se encontra conectado nesse tabuleiro de hipocrisias, fingimentos e dissimulações. 

O autor trata de maneira sutil e sinuosa da engrenagem do adultério, da subjetividade da verdade e da natureza viral do engodo. Aliás, ele gosta de tapear o público, como se viu na recente montagem de A Mentira, dirigida por Miguel Falabella, que desfiava a mesma intriga sob um ângulo diferente. O espectador nunca tem certeza de quem está iludindo e em quem se deve acreditar, porque os quatro vivem o tempo todo se desdizendo. A infidelidade pode estar subentendida em uma frase ou olhar, em uma recordação ou promessa não realizada. Traição, de Harold Pinter, é uma influência visível na dramaturgia de Zeller. Com a diferença de que a obra do dramaturgo inglês investigava também outros tipos de traição, como a de valores, princípios, crenças. 

Marcus Alvisi imprime uma direção sem excessos e cuidadosa, que assegura a fluência e o ritmo necessários à representação. Assim, consegue preservar não só o suspense e as ironias como o equilíbrio em um jogo cujo poder muda de mãos a cada minuto. O espetáculo parece uma variação mais requintada de um vaudeville e das comédias boulevard, ambos os gêneros caracterizados pelos enredos ágeis e discrição intelectual. Concebida por Ronald Teixeira e Guilherme Reis, a inteligente cenografia presta auxílio valioso à mis-en-scène. Os atores se movimentam em um espaço cênico que abriga os múltiplos ambientes, como um quarto de hotel, casa, consultório médico e vestiário.

O elenco reunido entrega talento e dá conta de incorporar criaturas que empregam a retórica romântica como arma para suas imposturas. Em desempenho vívido e hilário, Diogo Vilela exibe o magnetismo e o pânico genuíno do infiel, um mentiroso para quem todos estão mentindo, que perde o chão nas horas em que sua honestidade é posta à prova e está convencido de que a mentira eventualmente se faz necessária diante da franqueza cruel.  Carolina Gonzalez encarna com desenvoltura e naturalidade Alice, a amante tensa, sensual e meio infantil que sofre de dúvidas morais e ameaça revelar tudo. Na pele de Laura, a atriz Bia Nunnes concilia segurança e firmeza na criação de uma figura enigmática, independente e persuasiva. Paulo Trajano representa habilmente o dúbio Paulo, o camarada que não deixa transparecer o que sabe e guarda uma carta no bolso para ser sacada na ocasião adequada. 

É notável como esta produção articula as constantes alternâncias de perspectivas e pontos de vista, escorada em personagens que contam uns aos outros versões diversas de suas histórias. Forma-se um quebra-cabeça onde, quanto mais se avança, menos transparente a realidade fica. A comédia propicia uma reflexão sobre certa inviabilidade de o casal viver com fidelidade, as omissões pontuais que atenuam uma verdade dolorosa e a disputa de poder que costuma infectar as amizades masculinas – o jogo de tênis, aqui, serve como metáfora de uma velada luta pela predominância entre Michel e Paulo. Só na aparência superficial, a peça deixa no ar uma questão incômoda: em um relacionamento conjugal, a sinceridade irrestrita emancipa ou aprisiona?

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Thiago Cardinali)

 

Avaliação: Bom

 

A Verdade

Texto: Florian Zeller

Direção: Marcus Alvisi

Elenco: Diogo Vilela, Bia Nunes, Carolina Gonzalez e Paulo Trajano

Estreou: 23/01/2020

Teatro Vivo (Avenida Doutor Chucri Zaidan, 860, Morumbi. Fone: 97420-1520). Sexta, 20h; sábado, 21h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 40 e R$ 90. Em cartaz até o dia 28 de março.

Teatro: Sede

São três personagens em estado de angústia. O garoto Murdoch (Felipe de Carolis) vomita a sua raiva e revolta contra o mundo que entende ser absurdo dos adultos. A jovem Noruega (Luna Martinelli) prefere permanecer em silêncio, entrincheirada em seu quarto, sem comer, disposta apenas a abrir a porta para o seu professor de matemática, a quem admira. O antropólogo forense Boon (Marcelo Várzea) viaja de volta à adolescência e aos sonhos que decidiu desertar. Encenado por Zé Henrique de Paula, o texto do dramaturgo libanês-canadense Wajdi Mouawad (Incêndios / Céus, já montados no Brasil) soa inicialmente intrincado. É compreensível que o público se sinta um tanto desorientado no início, exposto à fragmentos de informação, sequências que se sucedem sem ligação aparente e à barreira enevoada entre o passado, o presente e a imaginação. Mas aos poucos o enredo, com tintas fantásticas, adquire nexo, peso e significados.     

6 de fevereiro de 1991, dia de São Gastão. O jovem Murdoch acorda dominado por uma urgência de espaço e ar livre. Começa a falar sem parar em casa, no ônibus, na sala de aula, na diretoria da escola. “Não vou me calar, é meu direito”. O dia a dia, vocifera, é uma cadeia abominável de rotinas repetitivas, regras automatizadas, de aprendizado de coisas que não desentediam. Ele se exaspera com as pessoas grudadas na tevê nunca desligada, intoxicadas por uma espécie de animadora cultural preocupada unicamente em estimular o consumo desenfreado. Intui que o planeta pode soçobrar de vez em mais um conflito militar – na época irrompia a Guerra do Golfo. “A Terra está ferida por um lobo vermelho que a devora.”  

Então acontece um salto temporal. Vemos Boon incumbido de examinar o que está parecendo ser dois corpos fundidos um no outro, que foram encontrados afogados no fundo de um rio congelado. Um monte de carne absolutamente disforme. Em função da morfologia geral, tudo indicava se tratar de um homem e de uma mulher. Um deles, identifica, é o cadáver de Murdoch, ex-colega de classe de seu irmão mais velho, que misteriosamente desaparecera naquele inverno de 1991, aos 22 anos. O outro, se espanta posteriormente, talvez seja o da menina Noruega, a personagem fictícia inventada por ele no passado, quando aspirava se tornar escritor e sua carreira foi bruscamente abortada. A imaginária Noruega, que teria “invadido” a realidade, era o retrato trágico de sua ideia de beleza. “Quando essa beleza não é alimentada, ela se transforma numa coisa horrível, que nos corrói por dentro”, é a metáfora que Boon concebeu e assume importância metafórica até o final da narrativa.    

Poética e delicada, estruturada como um quebra cabeça a ser decifrado pelo espectador, a peça é construída por longos solilóquios dessa trinca de criaturas, que poucas vezes contracenam. Os monólogos tocam na essência de temas atuais, como a busca pelo sentido da vida e a sede de viver, a crise de identidade, o medo do olhar dos outros, os sonhos despedaçados. Murdoch e suas explosões de injúrias e provocações tem sintonia com a biografia do autor de 51 anos, que nasceu no Líbano, emigrou cedo por causa da guerra civil, não conseguiu se fixar na França e acabou radicado no Canadá. Simultaneamente, Mouawad está simbolizado também na figura de Boon e sua vocação para escrever e produzir histórias.

A encenação de Zé Henrique é esteticamente bem resolvida e pilotada em ritmo compassado. Ela deslancha uma genuína teatralidade que enriquece este sofisticado jogo de avanço e retorno no tempo. O diretor instituiu um refinado equilíbrio que faz com que as transições e fusões entre as cenas sejam sempre orgânicas e sutis E evita cair na arapuca de transformar o técnico legista em um mero narrador, Murdoch em um típico rebelde e Noruega em uma mulher somente solitária. A complexidade de cada um deles é valorizada no espetáculo.  

Toda a ação transcorre sobre placas de gelo figurativas, um cenário onírico engendrado por Bruno Anselmo. Com triplo nível, esta plataforma é girada pelos intérpretes em algumas circunstâncias. Logo no início, Noruega e Murdoch protagonizam uma patinação estilizada sobre a estrutura, sinalizando o instante em que o gelo poderia ter rachado e engolido o garoto. Poucos objetos cênicos povoam o território dramático – maca de necrópsia, carteira escolar e um assento duplo de ônibus, todos “resgatados” de baixo da água, presos a uma rede. Conforme o andamento, são manipulados para compor situações e ambientes. Em um momento capital, a maca em pé simula um totem, emblema da igreja onde Bonn encena o ritual da sua morte artística. Executada ao vivo pelos músicos Jonatan Harold, Felipe Parisi e Catherine Santana, as canções originais de Fernanda Maia, também diretora musical, se encaixam com cuidado na dramaturgia e espelham as emoções de Murdoch em relação ao seu pai falecido, “transfigurado” em pássaro. As precisas projeções no palco, de Laerte Késsimos, denotam tanto as camadas de gelo que se trincam quanto o movimento de um polvo, além de estampar um conjunto de palavras e frases. A iluminação de Fran Barros desenha os sentimentos à flor da pele ali em trânsito    

O elenco revela harmonia com o espírito da obra e seus seres circunstancialmente fragilizados. Marcelo Várzea encarna o profissional pragmático Boon em várias etapas de sua existência, perfilando uma performance persuasiva e absorta, com boa presença cênica. Ele disponibiliza a memória e os pesares de alguém que venerava o irmão e abdicou de sua inclinação literária. Felipe de Carolis insufla tom febril na composição do depressivo e provocador Murdoch, o rapaz que se desapegou do deslumbre da infância e ainda não superou o luto paterno. Atriz talentosa, Luna Martinelli capta e expressa a humanidade de Noruega, uma adolescente capaz de se autoagredir e que carrega no ventre um ser estranho, um polvo, o Kraken do folclore nórdico. Aqui, o mítico animal, pesadelo das embarcações em alto mar, pode ser lido como a representação da feiura e da monstruosidade, que muitos se conformam em carregar dentro de si.   

Por meio desse trabalho espesso e cortante, Mouawad perpassa as gerações e seus ciclos. Faz a autópsia de uma adolescência que se defronta com o colapso das ilusões. Não é necessariamente uma visão pessimista sobre opções que fazemos lá atrás e que irão definir o nosso futuro e identidade. Ele impulsiona uma reflexão sobre a necessidade de se cultivar a beleza, o desejo e a fantasia, um ideal que muitas vezes deixamos deliberadamente desbotar. Não por acaso a trama fala de suicídio, real e metafórico. Boon, por exemplo, se tornou um sujeito estimado na sociedade, que convenientemente se ajustou às expectativas do seu entorno. Por dentro, no entanto, ele se encontrava morto. 

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Kombo)

 

Avaliação: Ótimo

 

Sede

Texto: Wajdi Mouawad

Direção: Zé Henrique de Paula

Elenco: Marcelo Várzea, Felipe de Carolis e Luna Martinelli

Estreou: 01/02/2020

Tucarena (Rua Monte Alegre, 1024, Perdizes. Fone: 3670-8455). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 60 e R$ 70. Em cartaz até 29 de março.   

 

Teatro: Fóssil

A ação transcorre em uma sala de poderosa distribuidora de gás. O executivo Luiz Henrique (Nelson Baskerville) recebe a visita da cineasta Anna (Natalia Gonsales), de longínqua ascendência curda, atrás de patrocínio para realizar um filme sobre a Revolução de Rojava, no norte da Síria, e uma milícia regional de mulheres armadas. Talvez não seja o melhor momento para o encontro, porque o telefone não para de tocar. Houve algum acidente grave envolvendo a empresa, que precisa ser rapidamente solucionado. A reunião chega a ser interrompida por um telefonema do governador.

O tema investigado é palpitante e tem como cenário o Curdistão, encravado no distante Oriente Médio. Durante três anos a atriz Natália Gonsales empreendeu uma rigorosa pesquisa sobre o povo curdo, que ocupa terras montanhosas fragmentadas pelos territórios de Iraque, Síria, Turquia, Irã, Azerbaijão e Armênia. Com trinta milhões de habitantes, língua e cultura exclusivas, os curdos constituem a maior comunidade étnica do mundo sem um país próprio.

Foi no enclave sírio, em 2012, que brotou uma tropa feminina dentro do exército curdo, polo de luta em diferentes guerras e conflitos disseminados naquela geografia. Também ali está em curso um programa revolucionário com forte protagonismo das mulheres. Um modelo de democracia radical participativa, horizontal e descentralizada, pontuada pela igualdade de gêneros e princípios de sustentabilidade.  

Todo esse farto material esquadrinhado desembocou numa montagem de evidente atualidade, dirigida por Sandra Corveloni. Para falar desse singular processo histórico, a dramaturga Marina Corazza se vale do mote dessa diretora de cinema, interessada em rodar um documentário acerca dessas personagens que, em prol de uma causa, sacrificam suas vidas no enfrentamento contra inimigos declarados. De olho na pertinência do assunto, a autora tenta estabelecer uma conexão entre aquelas ativas guerrilheiras e as militantes brasileiras que, durante o regime militar no País, empunharam armas e optaram pela clandestinidade para enfrentar a ditadura iniciada em 1964.

O espetáculo evolui por meio da competente combinação entre as informações desembrulhadas daquele contexto, o estresse que progressivamente cresce entre a jovem e o homem maduro, com velada tensão sexual entre eles, e a expectativa da assinatura de contrato para o aporte de recursos para a execução da obra. Nas entrelinhas, o flagrante contraste entre quem acredita em mudanças e quem preferiu a zona de conforto.

Luiz Henrique, que no passado manteve uma relação dúbia com a mãe de Anna, se mostra refratário às ideias revolucionárias, mas cinicamente admite que os levantes populares têm o condão de fomentar oportunidades de negócios. Anna expressa seu ponto de vista enquanto narra o roteiro de seu longa – a trama conta a história de uma professora curda de literatura que foi sequestrada por terroristas do Estado Islâmico para ser vendida e escravizada. Ela procura mostrar que as insubmissas curdas combatem grupos extremistas, lutam por um projeto de nação independente, sem a necessidade de fixação de fronteiras, e desejam o fim do ideal da cultura masculina predatória.

O drama se sustenta pela crueza dos relatos e pela força dos diálogos. Algumas cenas destilam emotividade. Uma menina conta para a sua avó o sonho que teve com a figura do Anjo Pavão – para a minoria religiosa yazidi, ele é considerado o maior dos sete anjos que governam o universo, após sua criação por Deus. Em outra passagem, uma conversa imaginária é entabulada por Anna com sua mãe, a quem nunca conheceu.  

Sandra Corveloni opera uma encenação enxuta, instaurando marcações espontâneas que auxiliam na fluidez do trabalho, e contorna com habilidade algumas sequências de certo didatismo. Sua principal missão, cumprida a contento, foi a de assegurar veracidade ao espírito poético do que se vê no palco.  Ela promove ainda uma bem-sucedida interação entre as linguagens teatral e cinematográfica – o videografismo e o videomapping, de André Grynwask e Pri Argoud, e as imagens de drone feitas por Gabriel Chaim, que captam a destruição da cidade de Kobani, prendem a atenção do público.

Os dois intérpretes revelam sintonia e afinidade. Natalia Gonsales se entrega com garra e autenticidade na concepção da documentarista, num elaborado mergulho introspectivo.  Na pele do gestor, Nelson Baskerville implementa uma composição inteligente, sem caricatura e distorção, movendo-se com desembaraço. A envolvente trilha sonora original de Marcelo Pellegrini, os figurinos adequados de Leopoldo Pacheco, a sugestiva cenografia de Carol Buck e a luz sensível de Aline Santini dão preciosa contribuição à mis-en-scène.  

Sóbria e solene, a produção não esconde a intenção de dar visibilidade a uma realidade de viés heroico e torná-la radiante. A dramaturgia galgaria mais degraus se o paralelo com o momento político brasileiro e o debate sobre o papel das empresas no financiamento das artes emanasse novos ângulos de análise que verticalizassem ambas as questões. Nada disso desbasta uma peça que faz um convite para o espectador pensar em pontos relevantes como a globalização, o imperialismo, a intolerância, a exclusão. Se a história é construída pelos opressores, da mesma forma pode ser desconstruída pelos oprimidos.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Ronaldo Gutierrez)

 

Avaliação: Bom

 

Fóssil

Texto: Marina Corazza

Direção: Sandra Corveloni

Elenco: Natalia Gonsales e Nelson Baskerville

Estreou: 09/01/2020

Sesc Pompeia (Rua Clélia, 93, Água Branca. Fone: 3871-7700). Quinta a sábado, 21h30; domingo, 18h30. Ingresso: R$ 30. Em cartaz até o dia 02 de fevereiro.                        

Teatro: De Todas As Maneiras que Há de Amar

De cara, a esposa pergunta ao marido se ele a ama. A resposta é afirmativa e o sujeito volta a se concentrar na leitura. Ao longo da narrativa a indagação é repetida e o retorno é novamente positivo. Parece não existir dúvidas sobre a reciprocidade do afeto, embora o leito do casal tenha sido substituído de repente por duas camas de solteiro e um deles quer saber quantos filhos tiveram juntos. Espécie de ópera de câmera, a concisa e elíptica peça do dramaturgo americano Edward Albee (1928-2016) investiga o embaraçoso tema do amor que vai se apagando ao longo dos anos e desidrata os casamentos.  

O título em inglês, Couting the Ways (Contando as Maneiras, 1976, em tradução aproximada), tem origem num famoso soneto da poetisa inglesa Elizabeth Barrett Browning, que fala da natureza da afeição sob a perspectiva feminina e as diversas maneiras de expressá-la. No Brasil, foi traduzida por Augusto César, que se inspirou numa conhecida canção de Chico Buarque. Inédita por aqui, chega aos palcos pelo Grupo Tapa e assinatura de Eduardo Tolentino, com Brian Penido e Clara Carvalho no elenco. Ator e atriz foram casados no passado e o fato adiciona ao espetáculo uma interação genuína, além de novos nexos e sentidos.

O texto se divide em 21 esquetes breves, certeiros e até bem humorados, alguns demarcados apenas por uma frase. Todos culminam com blecautes. O tempo de menos de uma hora de duração é suficiente para revelar Ele e Ela aprisionados em um matrimônio desbotado e sem mais paixão. Como são adultos de meia idade sensatos, não se vê qualquer tipo de agressão verbal entre eles, tampouco alguém faz algo deplorável e vergonhoso ao companheiro. A monotonia se instalou e agora assistem passivamente à deterioração do ardor e afeto do início, convencidos de sua inevitabilidade. Em um rasgo brechtiano, previsto no original, há um intervalo em que os atores se despem de suas criaturas e conversam diretamente com a plateia, numa prosa sobre suas biografias e trajetórias artísticas. Trata-se de um entreato divertido, sincero, comovente, que estreita as linhas entre a ficção e a realidade. 

Na função de cúmplice e testemunha privilegiada, o público acompanha toda a ação acomodado nas bordas do espaço cênico, como se estivesse dentro da sala de visitas dos anfitriões. Nessa arena intimista, preenchida por mesinha, duas poltronas e tapete, Tolentino emplaca direção sensível e arejada, que prioriza o subtexto e evita que os personagens se reduzam a seres unicamente cínicos e vaidosos. Articuladas de forma eficiente e natural, as entradas e saídas de cenas desenham uma movimentação típica do vaudeville. Não foi por acaso que Albee definiu assim a sua dramaturgia. Clara Carvalho e Brian Penido foram dirigidos com engenho e rigor gestual na composição dos cônjuges. Eles mergulham na essência do material, comprometidos com cada palavra que pronunciam e troca de olhares que executam. Criam tipos carismáticos que, mesmo imersos em frustrações e desencantos, jamais perdem a compostura. Sem cair na caricatura, conseguem humanizar papeis abstratos que o autor rotulou de Ele e Ela. Um trabalho de interpretação eivado de nuances e modulações.

A montagem envolve ao flutuar entre a comédia mordaz e o drama patético, salpicada por observações aguçadas e perspicazes. Albee é um artista singular, que passeia à vontade entre o realismo e o surrealismo. No clássico de sua autoria, Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, dois casais protagonizam embates incineradores. É possível identificar pontos de contato entre as duas obras. Em ambas, os relacionamentos são retratados como uma montanha russa e os diálogos entregues tanto podem encantar quanto desorientar.

Escorada na potência das palavras e em uma mis-en-scène capilar, a montagem é hábil em iluminar o sentimento de indiferença e as pequenas negligências que costumam demolir a convivência conjugal. Em uma passagem emblemática da trama, o descompasso explode: ele pede algo (“cadê minha camisa?”) enquanto ela rumina uma memória afetiva da adolescência, quando se atraiu por um rapaz. Para Albee, o exercício da troca e generosidade no casamento é menos amoroso do que aparenta. A realidade acaba sendo colocada à prova no instante em que se descobre que o amor ilimitado, fidelidade e desejo, valores comumente associados às relações conjugais, quase nunca se efetivam. Talvez seja irreal e inexequível arcar com as imposições do compromisso e das conveniências sociais que capturam as uniões matrimoniais. Entre quatro paredes, os casais se ouvem, mas nem sempre se mostram dispostos a escutar.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Ronaldo Gutierrez)

 

Avaliação: Ótimo

 

De Todas As Maneiras que Há de Amar

Texto: Edward Albee

Direção: Eduardo Tolentino

Elenco: Clara Carvalho e Brian Penido

Estreou: 24/01/2020

Teatro Aliança Francesa – Sala Atelier (Rua General Jardim, 182, Vila Buarque. Fone: 3017-5899). Sexta, 21h; sábado e domingo, 19h30). Ingresso: R$ 50. Em cartaz até 16 de fevereiro. Retorna de 6 a 29 de março. 

 

Teatro: As Crianças

Tudo se passa em uma pequena cabana no litoral, onde vivem Dayse (Analu Prestes) e Robin (Mário Borges), cenário do pulsante drama da jovem autora inglesa Lucy Kirkwood. Logo nos primeiros minutos surge Rose (Andrea Dantas), sem aviso prévio, que está com hemorragia nasal – um pormenor arrepiante que fará sentido mais adiante. A reação da anfitriã é um misto de perplexidade e embaraço. A partir desse prelúdio desconfortante, nada mais permanecerá em pé, especialmente após a chegada da rua de Robin. Há 38 anos o casal e a visitante, que passou as últimas décadas nos Estados Unidos, não se viam. Na ocasião que Rose partiu, inclusive, uma das filhas dos donos da casa era criança e acabou se tornando uma pessoa geniosa, capaz de telefonar para os pais a qualquer hora para se queixar de alguma coisa.

Os três sessentões aposentados são físicos e no passado trabalharam juntos no desenvolvimento de uma usina nuclear na região, cuja planta defeituosa e a sua má localização geográfica foram decisivas na hora em que um terremoto precipitou um tsunami e a água penetrou no reator. O colapso contaminou de radiação a costa e a terra por quilômetros, obrigando Dayse e Robin a saírem da antiga moradia para a nova, fora da zona de exclusão. Ambos se esforçam para mostrar que vivem na mais perfeita normalidade. Robin, por exemplo, fabrica vinhos artesanais e vai diariamente à sua fazenda nas imediações para, segundo ele, cuidar das vacas de estimação. Dayse pratica ioga e prepara refeições saudáveis. O ponto isolado onde residem, no entanto, transpira problemas. O terreno é meio inclinado. A eletricidade oscila. Os banheiros não funcionam adequadamente. Um contador Geiger para medir níveis de energia está sempre às mãos. Do lado externo, as estradas racharam ao meio.   

Com direção de Rodrigo Portella, a montagem desenreda a intricada relação entre esses três velhos amigos, e suas atitudes, perspectivas e contradições. O texto desfia informações em doses homeopáticas, sem urgência. Eles falam sobre a velhice, os filhos, a vida que levam, perdem-se em amenidades. Embora temperados com humor e até alfinetadas, os diálogos iniciais aparentemente não levam a lugar algum. Em certa passagem sabemos que Robin e a solteira convicta Rose têm se encontrado em segredo ao longo dos anos – a amante conhece muito bem a cozinha, sabe onde encontrar um copo, e isso gera desconfianças e irritação em Dayse. Visto superficialmente, parece que o enredo irá flanar em torno desse caso de amor mal resolvida. Todavia, a aventura extraconjugal é uma armadilha da dramaturgia, um petisco servido ao público antes de dopá-lo com questões literalmente mais embaraçosas. Na verdade, Rose desembarcou ali portando uma agenda bombástica, relacionada a culpas e responsabilidades por atos pregressos cometidos em nome da ciência que causaram uma série de flagelos na humanidade.

Esta atmosfera de suspense e apreensão, apimentada por pistas sutis e nem tanto, nunca é vulgarizada pela direção. Com marcações simples e acuradas, Portella faz com que as revelações e descobertas não surjam de forma afetada ou histérica. A respiração e o ritmo são regulados no sentido de evitar que corrompam a construção de um clima sóbrio e despojado. A mise-en-scène alcança um cuidadoso equilíbrio entre diálogos banais e tensos, nas rubricas de ação e circunstâncias que os atores comunicam à plateia. Ele consegue capturar e expressar a face mais humana da peça, articulando uma encenação rigorosa, que clarifica o sentimento de ameaça e os dilemas éticos que impactam esses personagens acuados pela história.

O diretor dispõe de um elenco em sintonia, que oferece performance absorvente. Os intérpretes se movem com palpável naturalidade e persuasão. As duas atrizes apreendem com habilidade o constrangimento áspero da conversa das mulheres de índoles diferentes que encarnam. Em uma performance irônica e triste, valorizada por nuances e silêncios, Analu Prestes exprime a inquietação e o ressentimento mascarado de Dayse   por sua hóspede indesejada. Com firmeza e impassibilidade, Andrea Dantas infiltra em Rose um tom levemente intimidante no trato pessoal e a atitude enigmática de quem guarda segredos públicos e privados. Mario Borges exibe forte presença cênica e é perspicaz na composição de Robin, um homem que catalisa as emoções e não hesita em seguir seus impulsos. Os cenários de Portella e Julia Decchache, que configuram um espaço sem paredes e poucos móveis, somados aos figurinos de Rita Murtinho, a iluminação de Paulo César Medeiros e a trilha sonora original de Marcello H. e Federico Puppi dão contribuição valiosa ao espetáculo.

A obra escancara um quadro perturbador e melancólico, eventualmente desafogado por sequências de alívio cômico, como aquela em que o trio se põe a dançar de maneira desajeitada. Eles são da geração baby boomer, aquela nascida pós-Segunda Guerra Mundial, e têm, ao menos na visão de Rose, um dever para com as gerações seguintes. Se ajudaram a desenvolver o mundo, também deram sua cota para devastá-lo. Eis o capítulo central, angustiante e doloroso. E é sintomático que Lucy Kirkwood tenha apenas 35 anos de idade. O assunto que ela alavanca passa ao largo da mera abstração filosófica. O título não se refere apenas ao comportamento infantilóide dessas criaturas no palco. Também faz alusão aos filhos do casal, aos jovens engenheiros que operam hoje na usina e às crianças em geral que estão crescendo em um planeta com visíveis danos ambientais, legado por pais ecologicamente negligentes.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Guga Melgar)

 

Avaliação: Ótimo

 

As Crianças

Texto: Lucy Kirkwood

Direção: Rodrigo Portella

Elenco: Andrea Dantas, Analu Borges e Mario Borges.

Estreou: 18/10/2019

Sesc 24 de Maio (Rua 24 de Maio, 109, Centro. Fone: 3350-6300). Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 40. Em cartaz até 17 de novembro.

Teatro: A Cor Púrpura - O Musical

Pode até não ter o traço sombrio do romance de Alice Walker, que inspirou uma versão cinematográfica (1985, direção de Spielberg) e uma premiada adaptação teatral (2005, na Broadway), mas o musical tem potência suficiente ao abordar temas importantes, como as relações opressoras de poder, desigualdades sociais e econômicas, questões étnicas e de gênero, empoderamento feminino. No Brasil, o roteiro de Marsha Norman, temperado pelas músicas e letras de Brenda Russel, Allee Willis e Stephen Bray, foi traduzido por Artur Xexéo e recebeu versão envolvente e delicada assinada por Tadeu Aguiar, um nome que vem se destacando na direção de alguns bons espetáculos musicais brasileiros (Quase Normal / Bibi, Uma Vida em Musical).

Trata-se de uma montagem arrebatadora e contundente, que se assiste com grande interesse. Ambientada em uma comunidade rural negra do sul dos Estados Unidos na primeira metade do século XX, a peça tem como protagonista a jovem Celie (Leticia Soares). Ainda adolescente, é abusada pelo suposto pai (Jorge Maya) e seus dois filhos lhe são arrancados. Não bastasse, é afastada da irmã caçula Nettie (Ester Freitas) e entregue ao cruel e esnobe fazendeiro Mister (Sérgio Menezes), que a maltrata e a usa como criada. Assim tem início uma longa história de quatro décadas, um panorama ambicioso e dramático da presença afrodescendente naquele país.

Aguiar conseguiu compor um grupo homogêneo de dezessete atores negros, responsáveis por sólidos desempenhos que valorizam muito a montagem. A atriz Letícia Soares mostra toda sua versatilidade na interpretação e no canto, numa performance que vai se agigantando com o decorrer da trama. Flávia Santana imprime simpatia e exuberância à figura de Shug Every, uma diva de jazz de espírito livre, objeto de paixão de Mister. Com voz potente, Lilian Valeska brilha como a insubmissa e ousada Sofia, nora de Mister, que não permitirá que o sogro a trate com a rispidez e grosseria com que costuma tratar as outras mulheres. Shug e Sofia, aliás, são as duas personagens que detonarão uma reviravolta na vida de Celie, abrindo-lhe perspectivas de transformações fundamentais. Sérgio Menezes incute autoridade ao papel de Mister, numa atuação irrepreensível. Harpo, marido de Sofia, é feito com energia contagiante, às vezes até exagerada, pelo hilário Alan Rocha.

As atrizes Cláudia Noemi (Darlene), Erika Affonso (Doris) e Suzana Santana (Jarene) chegam a roubar as cenas, na composição de um impagável trio de fofoqueiras. Ancorada em rendimento seguro, Ester Freitas encarna Nettie, irmã da protagonista, que vira missionária na África. Analu Pimenta exibe bons momentos como a espevitada Gralha. Na pele do presumido pai de Celie, Jorge Maya tem interpretação correta. Os demais intérpretes seguem o mesmo padrão, casos de Renato Caetano (Guarda), Nadjane Pierre (solista da Igreja), Thór Junior (Pastor), Gabriel Vicente (Bobby), Caio Giovani (Grady) e Leandro Vieira (Buster).

Diferentemente da Broadway, cuja cenografia acomodava dezessete cadeiras no palco, a encenação brasileira optou por uma casa giratória ladeada por escadas laterais, concepção da cenógrafa Natália Lana. A estrutura da residência foi baseada nas construções sulistas americanas comuns no início do século passado – é a tradicional porch, aquela varanda onde se reuniam as famílias. Apesar de imponente, o cenário é demasiado grande, reduzindo o espaço para as belas coreografias de Sueli Guerra. Diretor musical, Tony Luchesi programou 32 números musicais, um arco variado que inclui jazz, blues, soul e gospel, uma trilha executada por uma orquestra de oito músicos, regida por Thalyson Rodrigues. Ney Madeira e Dani Vidal criaram noventa figurinos em tons envelhecidos, que retratam a Geórgia daquele período. Completando a equipe técnica, Rogério Wiltgen elabora competente iluminação. 

Sem exagero, estamos diante de um dos melhores musicais montados recentemente no País. Que, além de emocionar, suscita uma reflexão sobre um mundo matriarcal que tenta ganhar voz e se fazer respeitado em uma época tingida pela repreensão e violência patriarcal.

(Vinicio Angelici – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Rafael Nogueira)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Cor Púrpura

Texto: Marsha Norman

Músicas e Letras: Brenda Russel, Allee Willis e Stephen Bray

Tradução: Artur Xexéo 

Direção: Tadeu Aguiar

Elenco: Letícia Soares, Jorge Maya, Ester Freitas, Sérgio Menezes, Flávia Santana, Lilian Valeska e outros.

Estreou: 06/12/2019

Theatro Net São Paulo (Shopping Vila Olímpia - Rua Olimpíadas, 360, Vila Olímpia. Fone: 3448-5061). Sexta, 20h30; sábado, 17h e 21h; domingo, 19h). Ingresso: R$ 75 a R$ 220. Em cartaz até 16 de fevereiro. 

Teatro: Jardim de Inverno

Frank (Fabrício Pietro) e April (Andréia Horta) formam um casal aparentemente ideal. Ela é bonita e recatada, ele tem elegância e espírito alegre. Moram em uma residência instalada em um bucólico subúrbio de classe média dos Estados Unidos e são pais de duas crianças bacanas. Com a vizinhança, mantém relação construtiva. De certa forma, julgam-se especiais, refinados, vivem sorrindo ou fazendo de conta. Representam como ninguém o chamado sonho americano, aquela ideia de uma América heroica e bondosa, pós-Segunda Guerra Mundial.

No entanto, tudo soa tão falso quanto uma nota de três reais. Isso porque os Wheelers nutrem pouca afeição mútua e a relação deles é movida a diálogos amargos, que trazem à tona ressentimentos e recalques empilhados ao longo do matrimônio. A viçosa e sensível montagem de Marco Antônio Pâmio não livra a plateia do desconforto de acompanhar um relacionamento que está predestinado a desmoronar aos poucos.

Trata-se da versão teatral do romance Revolutionary Road (1961), do dramaturgo americano Richard Yates (1926-1992), que também ganhou adaptação cinematográfica (Foi Apenas Um Sonho, 2008), dirigida pelo cineasta Sam Mendes e protagonizada por Leonardo DiCaprio e Kate Winslet. A trama principia com a encenação de uma peça amadora pelos moradores locais, A Floresta Petrificada, estrelada por April. Acontece que a noite é um fiasco e o marido e a mulher discutem asperamente. Primeira amostra de que eles aprenderam direitinho a ferir um ao outro. À medida que o enredo evolui, vai se tornando cada vez mais evidente que os Wheelers se revelam ineptos em conter a crescente desarmonia de seus cotidianos. No emprego, Frank arruma um caso amoroso com a secretária novata. Em casa, April dorme com o marido de sua melhor amiga. 

Aqueles que orbitam no entorno são figuras deprimentes, de valores mesquinhos. Os Campbells (Érica Montanheiro e Luciano Schwab), por exemplo, são xeretas, insípidos e boçais. A corretora de imóveis (Martha Meola) é inconveniente e boquirrota. Seu filho John (Iuri Saraiva), que passou um tempo internado no hospital psiquiátrico, é uma exceção em meio à mediocridade. Ele faz visitas eventuais aos Wheelers, quando costuma despejar verdades incômodas e tecer digressões sobre o vazio desesperador do subúrbio. Um espírito livre dentro de um sistema fechado. É interessante notar que todos, excluído o doente mental John, parecem se refestelar na arte da camuflagem: nem sempre o que dizem é o que realmente queriam dizer, tributo do autor ao teatro do dramaturgo inglês Harold Pinter, exímio em extrair poesia da batalha verbal.

A solução que April tira da cartola para sair dessa camisa de força é propor uma mudança por seis meses para a Europa e deixar essa velha existência para trás. Seu plano, na verdade, não passa de uma tentativa desesperada de reverter os papeis: em Paris ela trabalhará de secretária do governo, enquanto ele, que já residiu lá durante a guerra, irá cuidar dos filhos e terá tempo de sobra para estudar, viver e descobrir algo que o agrade, abandonando de vez o trabalho monótono. Mas uma pedra se encontra no caminho. Embora insatisfeito com o que faz, uma promoção está prestes a estourar na Knox e Frank não tem certeza se a viagem será a melhor escolha.

Para dar o tom e o sentido a esse enredo de acento trágico, ambientado nos anos 1950, Pâmio configurou uma mise-en-scène que mantém longitude prudente e cuidadosa do sentimentalismo ou do melodrama. O diretor nunca se sobrepõe ao texto, por acreditar na profundidade da obra e seu inventário de sentimentos. Engendra uma produção minimalista, talhada por marcações vivas e ágeis, imagens sugestivas e transições suaves entre a sala de estar dos Wheelers e a firma - a sequência inicial, com o público do condomínio assistindo o espetáculo privado, e as passagens que mostram a rotina estéril do serviço de Frank, exalam frescor e inspiração. Ao longo da ação, Pâmio multiplica os focos narrativos, num rodízio de testemunhos e pontos de vista sobre os acontecimentos. Há momentos em que os personagens secundários congelam os seus movimentos e, por segundos, observam a intimidade degradante do par central. Em chave poética, os então jovens e enamorados Frank e April (Julia Azzam e Lucas Amorim) escapam das memórias e invadem o espaço cênico, num choque entre o passado cheio de promessas e o presente saturado de autoenganos.

Não existe nota destoante no elenco reunido, que inocula veracidade no retrato dessas biografias frustradas, ao som de canções americanas da época e da trilha melancólica do compositor italiano Ludovico Einaudi. Com emoção refreada e sem arroubos descabidos, porque o conflito é interior, Andréia Horta expressa a dor, o fastio e a tristeza de uma mulher que descartou a ambição de ser atriz e hoje sente desprezo pelo marido, por si mesma e pela história que construíram. April intenciona triturar o casamento para poder respirar, ainda que não esteja aparelhada para suportar o minuto seguinte ao aniquilamento. Fabrício Pietro é enfático e viril na composição de Frank, um sujeito egoísta, machista e inseguro, que cultiva o péssimo hábito de ensaiar e editar suas palavras e seu afeto.

Contundente e febril, Iuri Saraiva rouba as atenções ao incorporar o insano e esquizofrênico John, criatura que não vive das aparências, vomita comentários cruéis e cortantes e é capaz de remover o véu da hipocrisia das pessoas com quem conversa. Martha Meola faz uma corretora terrivelmente ansiosa, histriônica e um tanto bisbilhoteira. Segura, graciosa e com sutis expressões corporais, Aline Jones valoriza o papel da secretária desejada. Escorados em performances solares e energéticas, Luciano Schwab e Erica Montanheiro interpretam os conformistas e resignados Campbell. Sem apelar para efeitos fáceis, Ricardo Ripa infiltra no homem de negócios um temperamento melífluo. Julia Azzam e Lucas Amorim circulam à vontade no palco, que acolheu iluminação delicada e meticulosa de Wagner Antônio e a equilibrada cenografia de Marisa Rebollo, matizada por objetos essenciais e de variadas funções.     

Neste drama, Yates trata de vidas, carreiras profissionais, perspectivas e percursos abortados. Suas criaturas descobrem estar trancafiadas em cargos, relacionamentos e estados de espírito que sequer haviam desejado para si. O mundo real está a léguas de distância do modelo de felicidade que projetaram. O desfecho é de tirar o fôlego, com a esposa desconsolada esgueirando-se pelo ambiente como alguém que renunciou a tudo. A incapacidade de April e Frank de se conectarem emocionalmente acaba por deflagrar eventos devastadores. O sonho americano virou um pesadelo. 

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Edson Kumasaka)

 

Avaliação: Ótimo

 

Jardim de Inverno

Texto: Richard Yates

Direção: Marco Antônio Pâmio

Elenco: Andréia Horta, Fabrício Pietro, Erica Montanheiro, Iuri Saraiva, Aline Jones, Ricardo Ripa, Martha Meola, Luciano Schwab, Julia Azzam e Lucas Amorim.

Estreou: 11/10/2019

Teatro Raul Cortez (Rua Doutor Plínio Barreto, 285, Bela Vista. Fone: 3254-1630) Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 20h. Ingresso: R$ 50,00. Em cartaz até o dia 17 de novembro.

 

Modo de visualização:

Style Sitting

Fonts

Layouts

Direction

Template Widths

px  %

px  %