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Teatro: Ricardo III ou Cenas da Vida de Meierhold

O renomado ator, diretor e teórico russo Vseyolod Meierhold (1874-1940) tem a anuência das autoridades stalinistas para montar o clássico Ricardo III, de Shakespeare. Acontece que o processo de trabalho está longe de ser tranquilo. Sucessivas comissões oficiais cercam os ensaios de suspeitas e exigências, que acabam adulterando as concepções originais do encenador. Os figurinos são muito modernos e não preferivelmente de época. Indícios de transgressão no comportamento dos personagens precisam ser banidos. Os silêncios previstos no texto devem ser removidos porque suscitariam significados inconvenientes. Ou seja, o não dito pode ser mais letal que o falado.

Dirigida por Clara Carvalho, a inspirada montagem segue fielmente as premissas da dramaturgia instigante do autor romeno Matei Visniec. A trama é protagonizada por Meierhold, um dos nomes medulares da vanguarda teatral da União Soviética do início do século passado. Na vida real, ele foi preso em 1938 pela autocracia de Stalin e executado dois anos depois. Na ficção, prostrado em uma cadeira, está cumprindo os últimos dias na prisão. Tal circunstância o faz perder-se em suas memórias, fantasias e pesadelos, que ganham concretude no palco. Ele então passa a receber visitas de agentes políticos, como o sinistro Generalíssimo, figuras da obra shakespeariana e de familiares. Sem que seja uma surpresa, pais e esposa reverberam os valores do regime soviético e, como os demais, se posicionam a serviço da censura. Até o filho recém-nascido, um monstruoso boneco de manipulação (criado por Beto Andreta), o trata como reacionário. O bebê é o tal “homem novo” engendrado pelo stalinismo. Ricardo III e o ator que o encarna, ambos indiscrimináveis em sua mente, também o martirizam. Forma-se um cruel e delirante jogo, centrado em um renegado indivíduo que vê seu projeto teatral se esfarinhar de forma tortuosa. Meierhold vive o drama de estar ou não exercendo uma espécie de autocensura. Teria ultrajado suas convicções e princípios e se sujeitado aos cânones da ditadura? 

Nesse mundo oblíquo e sinuoso, Shakespeare não está interditado. Porém, Ricardo III contém supostamente elementos subversivos para a classe trabalhadora. Por isso Meierhold é instado o tempo todo a abrir mão de sua versão personalíssima da peça e acolher as observações absurdas vociferadas pelos comitês de fiscalização artística, responsáveis pela concessão do visto ideológico. Por exemplo, ele queria retratar o monarca como um tipo comum, mas isso incomoda os dirigentes. Um diálogo fornece a medida da ousadia pretendida. Em certa passagem, Ricardo III quer entender as razões que levaram o diretor a delineá-lo como um ser humano mais amigável e menos brutal. “Você representa o mal sem as armadilhas da ideologia. Mata para conseguir poder, mas não mata em nome de alguma grande utopia”, ouve, perplexo.

A absorvente e estilizada direção de Clara Carvalho equilibra cuidadosamente sequências absurdas e realistas. Sem afetação, disponibiliza recursos simples e marcações ditadas pelo desenrolar dos diálogos. Ela consegue sublinhar o caráter bizarro e caricato de uma situação que extrapola as fronteiras soviética e guarda similaridade com os tempos sombrios da era Ceausescu na Romênia (1965-1989), encerrada após a deposição e fuzilamento do ditador.

O elenco reunido destila a necessária eficácia e as boas performances dão consistência à narrativa. Rubens Caribé movimenta-se com desembaraço e diligência na composição de um assombrado e estupefato Meierhold. Duda Mamberti alcança rendimento seguro na pele do sinuoso Generalíssimo. Rogério Brito emana frescor na criação irônica e desinibida de Ricardo III. Nos demais papéis, Fernanda Gonçalves, Junior Cabral, Lívia Prestes, Mara Faustino e Rogério Pércore se desincumbem de suas funções com acerto e entusiasmo. A ação transcorre em um cenário despojado, adornado pela imagem gigante do olho de Shakespeare, de grande força simbólica, numa eficiente construção de Chis Aizner. A iluminação de Wagner Pinto e a música de Ricardo Severo alinham-se para a leveza e viço da empreitada. 

Apesar da seriedade do assunto, trata-se de uma comédia na qual o riso serve como válvula de escape de uma farsa soturna. O espectador imerge em um espetáculo que exala uma atmosfera surrealista, que embaralha habilmente o trágico com o ridículo e articula crítica arguta e sutil ao poder e seus arbítrios. Aqui, o personagem central se sacrifica em nome da arte independente e livre. Mas sua luta é desigual, uma vez que do outro lado do campo se mobilizam censores munidos de variados tipos de estratagemas para pressionar artistas e enquadrá-los ideologicamente. Não por acaso, todos aqueles que circulam ao seu redor estão imbuídos do propósito de convencê-lo de que o que ele acredita e pensa é falso e injustificável. No entanto ele resiste, porque sua existência funciona para denunciar a manipulação e a lavagem cerebral instituídas. Quando familiares, lacaios e outras criaturas ridículas, que sabem muito bem a quem estão servindo, malogram em seu intuito de calar as ideias, o que sobra é a aniquilação física do cidadão.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Luciana Zacarias)

 

Avaliação: Ótimo

 

Ricardo III ou Cenas da Vida de Meierhold 

Texto: Matei Visniec

Direção: Clara Carvalho

Elenco: Rubens Caribé, Duda Mamberti, Fernanda Gonçalves e outros.

Estreou: 1/6/2019

Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro, 1.000, Liberdade. Fone: 3397-4002). Ingresso: R$ 30. Sexta e sábado, 21h; domingo, 20h. Em cartaz até 7 de julho.

 

 

Teatro: Dogville

O título batiza um rústico vilarejo fincado no final de uma estrada sem saída, habitado por pessoas à primeira vista afáveis e hospitaleiras. De súbito, a rotina dali é abalada pela intempestiva chegada de uma jovem em busca de teto para se esconder de uma quadrilha de gangsteres. Sensibilizado pela difícil situação de Grace, o aspirante a escritor e metido a filósofo Tom convence o povoado a acolhê-la em troca de pequenas incumbências. Ela passa a tomar conta das crianças, auxiliar os estudos dos jovens, fazer companhia aos que precisam e empreender outros serviços.   

As coisas, no entanto, se complicam. A polícia, mancomunada com a milícia que a persegue, está em seu encalço, distribuindo pela região cartazes ilustrados com a sua foto. Sentindo-se ameaçados e acuados, os moradores decidem exigir mais dela. Por não ter ligações orgânicas com o lugar, e em posição vulnerável, a agora indesejada visitante começa a ser subjugada por todas as famílias, violada pelos homens e impedida até de ir embora. O horror se naturaliza nesta “cidade do cão”. Não à toa, a trama acontece em plena depressão econômica pós-1929, que propiciou a ascensão ou consolidação de violentos regimes nacionalistas, como os de Mussolini na Itália e Hitler na Alemanha. Típica representação da xenofobia, a fugitiva cai em desgraça por simbolizar a figura do estrangeiro que, por presunção, desestabilizaria a paz e a harmonia da província.

Encenada pela primeira vez no Brasil pelas mãos de Zé Henrique de Paula, a peça é a versão cênica do dramaturgo e encenador dinamarquês Christian Lollike para o angustiante filme homônimo do conterrâneo Lars von Trier (2003). O controvertido cineasta estruturou o longa-metragem em linguagem teatral, desenvolvido em cenário único, sem paredes e muros, atulhado apenas com algum mobiliário. Sobre um chão preto, riscos de giz demarcavam as casas e espaços públicos.    

A montagem do texto tem início com um narrador mencionando o autor inglês Harold Pinter, que discorreu sobre a tênue linha entre a realidade e a ficção. A reflexão prepara o espectador para embrenhar-se em uma história marcada pela universalidade e diversas referências. Sob determinados aspectos, por exemplo, o enredo de Dogville remete à A Visita da Velha Senhora, do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt. Aqui, os valores éticos em uma cidadezinha são colocados à prova a partir da possibilidade concreta de todo mundo enriquecer às custas da morte de um de seus cidadãos. Nota-se também influências do teatro pedagógico de Brecht. A música Jenny dos Piratas, da Ópera dos Três Vinténs, desvela o desejo de vingança de uma humilde camareira de hotel desprezada pela comunidade inteira.

Bem cuidado e envolvente, o espetáculo se abastece da estética do cinema, na contramão da perspectiva teatral da famosa película. A ação ganha o reforço de vídeos pré-gravados e imagens captadas ao vivo durante a encenação. As telas e as cadeiras, que são manipuladas pelo elenco para retratar os ambientes e que funcionam ainda como representações humanas, compõem a medula do cenário de Bruno Anselmo. O viés cinematográfico, embora não tão indispensável assim, intenciona expandir e sublinhar a expressão dos intérpretes. As linguagens são costuradas de modo a dialogarem e não se estranharem, em feliz interação. Zé Henrique saiu-se bem do desafio de não emular a obra primária, cuidando de pôr a salvo a densidade do material disponível. Ele realça a aspereza do tema, a ausência de qualquer noção de civilidade daquela sociedade e a atitude pusilânime e recalcada de seus nativos. Se no filme a cena crucial do primeiro estupro transpira ultraje ao ser observada com indiferença pelos vizinhos, no palco o abjeto ato flui ao som do tradicional hino cristão anglicano Amazing Grace, entoado por um coro liderado por Martha (Anna Toledo). O arranjo da canção é assinado por Fernanda Maia, responsável pela competente trilha sonora original da produção.

A coesão, a sintonia e o vigor caracterizam a numerosa trupe de dezesseis atores. Dona de performance encorpada e sutil, Mel Lisboa irradia a pureza, o servilismo e a resiliência de Grace, que se subordina inerte ao comportamento patife daquelas criaturas por acreditar ingenuamente na dignidade humana. O prenome da personagem, aliás, faz irônica alusão à ideia da graça divina, a dádiva que o criador decidiu oferecer ao lugarejo. Intérprete do mentor filosófico, Rodrigo Caetano funde flama, insolência e vileza na composição de Tom, um sujeito que se dedica a promover reuniões regulares para polir o convívio e o aprimoramento moral da localidade. Valendo-se de registro vocal alterado, Eric Lenate imprime brilho, expressividade e persuasão ao narrador, que relata os acontecimentos como se fosse uma fábula infantil. Em dupla jornada, destila frieza e impiedade ao encarnar o velho gângster. Sem dificuldades, e estampando físico adequado ao papel, Fábio Assunção incorpora o ressabiado e insidioso Chuck, um cara bruto que não se acanha em confrontar a refugiada desde o início. Com menos falas, os demais preenchem suas funções exibindo firmeza e segurança, em intervenções pontuais e não menos importantes. Anna Toledo, Blota Filho, Bianca Byington, Chris Couto, Fernanda Couto e Selma Egrei, entre outros, vivem tipos suscetíveis, egoístas, insensatos, inclementes, que adornam esta aldeia irracional e bestializada.  

Ao longo de duas horas o público se vê diante de uma parábola de ares apocalípticos, dividida em um prólogo e nove capítulos, uma mordaz visão da natureza humana e seus instintos selvagens, taras inconfessáveis e espúria moralidade. Nesta tragédia nada lisonjeira, uma mãe chega a dar o mau exemplo de rancor e torpeza na frente de seus filhos. O diálogo final entre o pai e a filha é pontiagudo. Grace se convence de que o seu esforço genuíno resultou apenas em dor, martírio e desilusão. Ao resgatar um poder que sempre teve, mas que se recusara a exercê-lo, ela se insurge. O discurso de Lars von Trier soa veemente no epílogo. A repugnante Dogville terá de ruir e do vácuo aflorar uma nova utopia. Sintomaticamente o único poupado será o cachorro Moisés, espécie de sentinela deste inferno.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Renato Mangolin)

 

Avaliação: Ótimo

 

Dogville

Texto: Lars Von Trier

Adaptação Teatral: Christian Lollike

Direção: Zé Henrique de Paula

Elenco: Mel Lisboa, Fábio Assunção, Rodrigo Caetano, Eric Lenate, Anna Toledo, Blota Filho, Bianca Byington, Chris Couto, Fernanda Couto e Selma Egrei  e outros.

Estreou: 24/01/2019

Teatro Porto Seguro (Alameda Barão de Piracicaba, 740, Campos Elíseos. Fone: 3226-7310). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Ingressos: R$ 60 a R$ 90. Até 31 de março.

Teatro: De Volta a Reims

A jornada do personagem central em seu retorno à cidade natal de Reims, na França, é eivada de simbolismos. Tem o caráter de um confronto incômodo contra fantasmas antigos que ainda insistem em sobressaltar o seu presente. Três décadas se passaram, o funeral de seu autoritário pai recém-aconteceu e ele não quis chegar a tempo, porque declaradamente o desprezava. Trata-se de uma viagem com o intuito de se reconectar com o seu passado e sua família, após longa temporada de ausência estudando em Paris. Seu desembarque será uma experiência perturbadora. Desde sua partida, ainda jovem, vivenciou um turbilhão de mudanças. Virou um intelectual de respeito, assumiu a homossexualidade, superando o trauma dos insultos na infância, e galgou alguns degraus na pirâmide social, que o fizeram se apartar de vez de seu berço proletário. 

Inspirada na obra homônima do filósofo francês Didier Eribon, a dramaturgia assinada por Reni Adriano chega aos palcos com direção de Cácia Goulart e atuação solo de Pedro Vieira. Uma montagem potente, que escoa um conjunto acurado e atualíssimo de reflexões em torno de identidades de classe e sexual. O protagonista quer compreender as engrenagens do determinismo social, a gênese da homofobia e as razões que levaram nas últimas décadas parte de seus parentes, além de nacos expressivos dos trabalhadores locais, a dar votos para a populista e ultradireitista Frente Nacional, após anos votando entusiasticamente no Partido Comunista.

A história recente da política francesa, um fenômeno verificável em vários países, fornece pistas que podem explicar a mudança de comportamento do eleitorado operário. Ao chegar ao poder em 1981, e adotar algumas iniciativas neoliberais, os socialistas foram pouco a pouco se desprendendo dos estratos populares, que se enxergaram negligenciados. Por sua vez, a classe média esquerdista e liberal também se descuidou das demandas e pleitos dos setores menos favorecidos da população. Sem mais o sentimento de solidariedade e companheirismo que o engajamento político propiciava, as camadas operárias tornaram-se vulneráveis aos discursos xenófobos, homofóbicos e nacionalistas. Assim, progressivamente migraram para a extrema direita.

O agora letrado homem sabe que só escapou da sina de ter de largar cedo a escola e ir trabalhar, fado comum da gente pobre da região, graças aos esforços de sua mãe, que custeou a sua formação acadêmica ao acumular funções na fábrica e como faxineira. Peão, o pai desdobrava-se em dois empregos. Exposto à uma cultura de preconceitos, ele desenvolveu uma intolerável homofobia, embora cultivasse orgulho ao ver o filho na televisão, hoje abertamente gay e um bem-sucedido intelectual defensor de minorias. Toda a aversão do pai contra homossexuais não era fruto de uma perversidade genuína, mas moldada pela violência e insensibilidade do meio social em que vivia. Um ambiente desprovido de ideias e ideais, que marcou também sua mãe, exilada dos estudos antes de concluí-los. Como acreditava não ter condições de ficar escolhendo um príncipe encantado, ela se casou com o primeiro que apareceu, porque não podia esperar conhecer um fulano mais inteligente. É interessante como a peça desencava meditações improteláveis acerca dos mecanismos sociais que regem o mundo do trabalho e a seleção social que age no sistema educacional e produz um sistema para os ricos e outro para os pobres.   

Em um palco minimalista, preenchido por sons e imagens projetadas na parede e no corpo do ator, um sereno Pedro Vieira encontra a expressão adequada na composição desse sujeito que entrelaça confissões e análises sociológicas para tentar aclarar seu itinerário existencial. Ele nunca escorrega para o melodrama ordinário. Sua performance emana a inquietação e ansiedade que demarcam a trilha de quem ascende na escala social e os sentimentos conflitantes e contraditórios que assolam aqueles que vivenciam a ruptura dos laços familiares. Falando para si ou para o público, desnuda a dor de alguém flagelado por uma espécie de constrangimento subterrâneo de sua raiz humilde. Nas rodinhas eruditas que frequentava era mais descomplicado falar da sua homossexualidade do que admitir a sua proveniência. O texto, aliás, guarda pontos de conexão entre as narrativas de Eribon e o percurso de Vieira, que deixou o cotidiano de carências e sem perspectivas de Palmeira dos Índios, no agreste alagoano, para arriscar-se na carreira artística em São Paulo - durante a encenação ele chega a resgatar reminiscências, retratos e cantigas.

Há duas cenas emblemáticas neste drama confessional, temperado com sobriedade e sutilezas por Cácia Goulart, que optou por usar uma linguagem poética para fazer deslizar o enredo. Na primeira, a douta figura oferece uma taça de champagne a um espectador, num simulacro dos círculos sofisticados e eruditos a que havia aderido. Em outra, relembra da vez em que, na capital francesa, cruzou por acaso na rua com seu avô, pilotando uma mobilete. A caminho de seu ofício de limpador de janelas, o velho carregava escada e balde. Nesse momento, experimentou o temor de ser flagrado por alguém de seu mundinho burguês. E se tivesse de responder com quem conversava? Afligia-o a percepção de que já reproduzia os valores e julgamentos das elites dominantes.

A obra é um doído ensaio sociológico sobre identidade, genealogia, indulgência, vergonha e culpa. O personagem saiu do armário sexual, mas acabou num armário de classe. Vive a estranha sensação de não pertencer a campo social algum. Sente-se um forasteiro tanto na provinciana Reims quanto na cosmopolita Paris.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Cacá Bernardes)

 

Avaliação: Ótimo

 

De Volta à Reims

Texto: Reni Adriano, livremente inspirado no livro Retour à Reims, de Didier Eribon

Direção: Cácia Goulart

Elenco: Pedro Vieira

Estreou: 13/4/2019

Viga Espaço Cênico (Rua Capote Valente, 1323, Pinheiros. Fone: 3801-1843). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 30. Em cartaz até 26 de maio.

 

Teatro: Estado de Sítio

O ensaísta francês, nascido na Argélia, Albert Camus (1913-1960) tece aqui uma desconfortável alegoria política sobre o totalitarismo. Tudo se passa na cidade fortificada espanhola de Cádiz, intencionalmente escolhida pelo autor como símbolo das ditaduras que assolaram a Europa depois da Primeira Guerra Mundial, em especial o governo fascista liderado por Franco na Espanha a partir de 1936. A peça, que ganhou montagem oportuna de Gabriel Villela, se estrutura como uma tragédia grega, incluindo forte presença do coro. Após a passagem de um misterioso cometa, em um dos momentos mais encantatórios da encenação, o governador estabelece que o evento astronômico deve ser sumariamente ignorado e quem lembrá-lo será punido. Sua intenção não deixa dúvidas. Tudo deve continuar como está - a monotonia e estagnação servem de estratégias políticas e a ausência de ideais e ações coletivas são muito bem-vindas.

Claro que tais decisões irão abrir a porta para o despotismo e os oportunistas à espreita. Que chegam nas figuras da Peste (Elias Andreato) e sua secretária, a Morte (Cláudio Fontana), que logo derrubam o mandatário e iniciam um reinado de manipulação, demagogia e medo. Pessoas doentes, por exemplo, passam a ser identificadas com uma estrela negra – alusão evidente ao holocausto -, liberdades civis são suspensas, o toque de recolher é estabelecido. Apenas os jovens enamorados Diego (Pedro Inoue) e Vitória (Mariana Elisabetsky) afrontam a nova ordem e buscam ensejar uma revolta. Espécie de bufão e válvula de escape da região, o cínico e niilista Nada (Chico Carvalho) despeja doses de sarcasmo ao comentar a tragédia que se abateu sobre a população. Se não existe mais nada em que se possa acreditar, pontua, o negócio é apostar na destruição. Em trajetória tortuosa, Nada chega a aderir ao opressor. 

As metáforas e representações da obra de Camus casam bem com a linguagem barroca do diretor Gabriel Villela (também figurinista), que neste espetáculo deixou de lado o habitual colorido de seus trabalhos e optou por tons sombrios na composição dos vistosos figurinos. No palco há um desfile de personagens ostentando maquiagens grotescas, criadas por Claudinei Hidalgo, que se inspirou nas “pinturas negras” do pintor e gravador espanhol Goya. A iluminação fria de Domingos Quintiliano dialoga com a cenografia de J. C. Serroni, um espaço assombrado por uma estrutura de ramos negros contorcidos, espécie de nuvem sinistra que paira ameaçadora sobre o lugar. A direção musical, assinada por Babaya Morais e Marco França (também responsável pelos arranjos), combina uma variedade de cânticos, como músicas ciganas do bósnio Goran Bregovic e canções revolucionárias, caso do hino da Resistência Francesa.

O diretor reuniu elenco talentoso e extrai bom rendimento coletivo dos catorze atores em cena. Apoiados em desempenhos marcantes, Elias Andreato e Cláudio Fontana formam dupla congruente, destilando performances impregnadas de deboche e ironia. Dono de voz potente, Chico Carvalho imprime potência ao cético e pessimista Nada. Pedro Inoue se destaca na pele de um Diego carismático e vibrante. Ele compõe boa dupla com a intensa e sensível Mariana Elisabetsky. Cacá Toledo (Padre), Arthur Faustino (Governador), Rosana Stavis (mulher do Juiz) e Marco França (Juiz) oferecem desempenhos satisfatórios e seguros. Desenvoltos, Rogério Romera, Kauê Persona, Nathan Milléo Gualda, Zé Gui Bueno e Daniel Mazzarolo completam a trupe. 

Camus concebeu uma parábola do pesadelo recheado de diálogos emblemáticos, como os que envolvem Diego e a Peste. O dramaturgo revelou que se identificava especialmente com este texto, porque também cultivava o anseio de liberdade, o sentimento de ternura pelos oprimidos e a aversão a qualquer regime de força. Não por acaso gostava de reverenciar o universo do poeta, escritor e diretor francês Antonin Artaud, em sua obsessão mútua de ver a peste como uma poderosa metáfora teatral.

(Vinicio Angelici – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo 

 

Estado de Sítio

Texto: Albert Camus

Direção: Gabriel Villela

Elenco:  Elias Andreato, Cláudio Fontana, Chico Carvalho, Mariana Elisabetsky, Rosana Stavis e outros.

Estreou: 08/11/2018

Sesc Vila Mariana (Rua Pelotas, 141, Vila Mariana. Fone: 5080-3000). Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 40. Até 16 de dezembro.

Teatro: Sunset Boulevard

Baseado no clássico de Billy Wilder de 1950, aqui conhecido por Crepúsculo dos Deuses, o musical desembrulha bons diálogos, personagens cínicos, uma leitura impiedosa de Hollywood e envolvente trilha sonora de Andrew Lloyd Webber. Na trama, a decadente atriz Norma Desmond (Marisa Orth) não percebeu que sua carreira de sucesso já faz parte de um passado longínquo. Nos áureos tempos do filme mudo ela reinava absoluta, mas a ascensão e consolidação do cinema sonoro a jogou no limbo. Agora encastelada em sua lúgubre mansão, ainda acredita ser uma estrela reluzente, fantasia alimentada principalmente pelo mordomo Max (Daniel Boaventura), que escreve para ela cartas de fãs imaginários. Sua vida muda no momento em que bate à sua porta Joe Gillis (Júlio Assad), um roteirista fracassado que tem mais dívidas para pagar do que roteiros para emplacar. A chegada do rapaz é uma boa circunstância para ela tirar da gaveta o script de um longa que acalenta há anos, inspirado em Salomé, com o qual pretende retomar seu protagonismo sob a direção de outro ícone das telas, o cineasta Cecil B. DeMille. O novo hóspede acaba corrompido pela chantagem financeira e se deixa aprisionar nessa espécie de gaiola dourada.

A condução desse conturbado enredo está nas mãos seguras de Fred Hanson, responsável pela direção artística da produção brasileira. O encenador e o cenógrafo Matt Kinley optaram por uma cenografia simples e não realista, composta por três torres e uma plataforma giratória, que abriga ainda projeções que simulam ambientes da mansão. À vista do público, a orquestra de dezesseis músicos, sob regência do maestro Carlos Bauzys (também diretor musical), se posiciona na torre central e executa com maestria as belas canções - o libreto e as letras de Don Black e Christopher Hampton ganharam caprichada versão brasileira de Mariana Elisabetsky e Victor Muhlethaler. A coreógrafa e diretora de movimentos Kátia Barros se inspirou na estética do expressionismo para elaborar a dança e a gestualidade dos atores, além de ter concebido um balé para o entreato. Fause Haten criou figurinos típicos do período, com exceção dos modelos envergados por Norma Desmond, que reproduzem os anos 1920 e 30, exatamente o auge da popularidade da personagem nas telas.                                                                                                                                               

Toda a encenação transpira uma leveza bem diferente da montagem que este crítico viu na Broadway em 1995, protagonizada por Glenn Close, que reconstituía com toques pesados o casarão da história. O diretor Hanson assina algumas ousadias nesta versão nacional. Ele idealizou, por exemplo, um entreato que não existia no original. Nele, uma Norma jovem, vivida pela bailarina Juliana Olguin, aparece em seu apogeu artístico, vestida em tons de prata, preto e branco, como num filme sem cores. A figura ressurge em outras passagens, no alto do palco, dando corpo a um passado do qual a obsoleta celebridade não consegue se desvencilhar.

Marisa Orth tem a oportunidade de mostrar a sua versatilidade, turbinando seu lado dramático ao sublinhar as fragilidades da diva. Canta com emoção a sofisticada e difícil partitura da obra, com notas quebradas, variando do grave ao agudo em uma mesma frase. Sua grande cena acontece no segundo ato, na sequência em que Norma visita o estúdio da Paramount e é venerada pela equipe de filmagem – ela interpreta o hit As If We Never Said Goodbye (O Tempo Não Passou), que já foi gravado por grandes cantoras, como Barbra Streisand. No papel do taciturno mordomo Max, o veterano em musicais Daniel Boaventura exprime sua voz de barítono nas canções que entoa. Júlio Assad, que quase nunca sai de cena, é uma grata revelação como ator e cantor, desempenhando com garra o malogrado roteirista. Presença marcante no palco, e dona de voz harmoniosa, Lia Canineu está adorável como a jovem roteirista que se apaixona por Joe Gillis. Os atores Bruno Sigrist (Artie Green) e Sérgio Rufino (Cecil B. DeMille) ofertam boas participações.

O tema central do musical não perde a atualidade. A tragédia da decadência de quem um dia experimentou a glória e a fama é um monstro que não deve ser desprezado.  

(Vinicio Angelici – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(foto Marcos Mesquita)

 

Avaliação: Ótimo

 

Sunset Boulevard

Texto e Letras: Christopher Hampton e Don Black

Músicas: Andrew Lloyd Webber

Direção: Fred Hanson

Direção Musical: Carlos Bauzys

Elenco: Marisa Orthg, Daniel Boaventura, Júlio Assad, Lia Canineu, Bruno Sigrist, Sérgio Rufino e outros.

Estreou: 22/03/2019

Teatro Santader (Avenida Presidente Juscelino Kubitschek, 2.041, Vila Nova Conceição. Fone: 4003-1212). Quinta e sexta, 21h; sábado, 17h e 21h; domingo, 15h e 19h. Ingresso: R$ 75 a R$ 290. Em cartaz até 7 de julho.

 

Teatro: Eu Estava Em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse

O único filho homem de uma família retorna ao lar, após longos anos de ausência motivada por uma áspera briga com o pai. Cinco mulheres, todas sem nome e gerações distintas, o aguardaram ansiosamente por todo esse tempo. Desde que ele saíra, descontrolado e batendo a porta, elas mal conviveram entre si, tampouco efetuaram uma real troca de afetos. A sensação é a de que suas existências ficaram suspensas. Viveram entregues às fantasias e ao exercício do autoengano. Como se fossem personagens de Tchekhov e Beckett.  

A propósito, a presença do jovem não será vista pelo público. E mais enigmático ainda: não se sabe quem ele é, se voltou mesmo, se está vivo, se sua figura não passa de um devaneio compartilhado pelo quinteto e se tudo o que dizem dele deve ser encarado como verdade. Só o conhecemos por meio do olhar e dos relatos desse trágico coro feminino. O fato é que seu presumível regresso acabou pulverizando as ilusões e produziu um inevitável choque de realidade naquela casa.   

O texto do dramaturgo francês Jean-Luc Lagarce (1957-1995), que recebeu montagem envolvente assinada por Antunes Filho, se estrutura como um contínuo fluxo de pensamentos, memórias e imaginação. Uma dramaturgia que se configura a partir do tema da ausência, evoluindo sem pressa e em ritmo cadenciado. O espetáculo fisga o espectador pela energia poética emanada. O primeiro solilóquio, articulado pela Filha Mais Velha, lembra o prólogo das tragédias gregas e funciona como uma síntese da obra. “Eu estava aqui, em pé, como eu sempre estou, como eu sempre estive, imagino isso, eu estava aqui, em pé, e esperava que a chuva chegasse, que ela caísse sobre o campo, sobre as plantações, e sobre o bosque, e que ela nos acalmasse...”

A fala inicial aciona uma série de questões que serão desdobradas pelas demais mulheres, enredadas nessa ladainha de arrependimentos, penitências, frustrações e ressentimentos, pelo sentimento de desperdício de vida. São monólogos que eventualmente dialogam entre si e dão corpo ao faz-de-conta criado em torno das expectativas do retorno de quem partira. Por meio dessa narrativa lírica, o espectador passa não só a compreender as relações no interior desse destroçado núcleo familiar como a observar o looping mental a que estas criaturas passivas estão submetidas.

A rigorosa direção dribla a dificuldade natural de uma peça que exige dicção e sintaxe precisas, entradas e saídas em sincronia, gestos e movimentos meticulosos – o que se vê, afinal, é um falso naturalismo. A encenação escorre como um sonho, sem intenções de resvalar no melodrama. A simplicidade da cenografia de Simone Mina, com cadeiras espalhadas pelo palco quadriculado, símbolos da espera e da pausa, acentua a atmosfera onírica. O ambiente tanto pode significar os contornos do paraíso ou a geografia do inferno.

Antunes Filho reuniu elenco homogêneo e em sintonia com a proposta cênica. Um grupo de atrizes que desfia boas e afiadas performances, porque elas precisam trabalhar as palavras com articulação exata e sensível, sem soar antinatural, e encarnar tipos que vagam como fantasmas. Elas repetem, interpretam e reinterpretam os monólogos, num equilíbrio adequado entre martírio e ansiedade. O público é tocado por essa dor desmedida, tristeza e desassossego. No papel da Mais Velha de Todas, Rafaela Cassol é pungente e ensimesmada. Intensa, Suzan Damasceno destila histeria e dependência no papel da Mãe. Na composição da Filha Mais Velha, Fernanda Gonçalves ativa nuances e compaixão. Segura, Viviane Monteiro faz a Segunda Filha combinando doses de humor e lamúria. Daniela Fernandes concede vida à Filha Mais Nova, impregnando-a de luminosidade e desprendimento.

Este jogo nutrido de armadilhas psicológicas e digressões transforma o simples ato de aguardar alguém em um conto de horror. A história, aliás, permanece um mistério até mesmo para os seus personagens. Lagarce concebeu um poema de luto, um poema do tempo que transcorreu, do tempo que se perde indefinidamente. Certamente há quem ache o espetáculo afetado e pouco aprazível, por conta de seu enredo avesso à linearidade. Isso porque sua construção não é do tipo videogame. A plateia está diante de uma casa de bonecas fantasmagórica, que às vezes lembra A Casa de Bernarda Alba, de Garcia Lorca. Habitada por um clã de indivíduos feridos, para quem a reaparição de um ente desejado não vai significar mudança alguma.    

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Lenise Pinheiro)

 

Avaliação: Ótimo

 

Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse

Texto: Jean-Luc Lagarce

Direção: Antunes Filho

Elenco: Fernanda Gonçalves, Daniela Fernandes, Viviane Monteiro, Suzan Damasceno e Rafaela Cassol.

Estreou: 21/09/2018

Sesc Consolação (Rua Doutro Vila Nova, 245, Vila Buarque. Fone: 3234-3000). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 40. Até 16 de dezembro.

MITsp 2019: Politizado e provocante

A sexta edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, que aconteceu no mês de março na capital paulista, abrigou atrações internacionais de qualidade. Um dos badalados nomes do teatro europeu, o suíço Milo Rau desembarcou com três produções inteligentes e desafiadoras. A Repetição. História (s) do Teatro (1), que abriu a maratona teatral, provocou choque. O diretor revive um homicídio ocorrido em 2012 na cidade belga de Liége, à época assolada pela desindustrialização e desemprego em massa, para articular exame minucioso da banalidade do mal. Vítima de homofobia, Ishane Jarfi foi espancado e morto por um grupo de jovens, após sair de um bar LGTB. Seu corpo acabou descoberto em um campo apenas duas semanas depois, nu e mutilado.

Após um intérprete encenar trecho de Hamlet, que alude ao fantasma do rei assassinado, uma audição coloca atores amadores contando um pouco de suas biografias. Gradualmente eles vão se misturando aos seus personagens. Um deles revela que sua vida lembra à de um dos assassinos, a quem foi visitar na prisão: situação familiar igual, a mesma atividade profissional, uma angústia existencial semelhante. 

A montagem não faz só o desdobramento da tragédia em episódios. Extrapola o limite teatral para urdir uma aguçada reflexão sobre a natureza da arte teatral, a função dos atores, as fronteiras entre a ficção e a realidade. Em depoimentos, Rau revelou que o seu objetivo não é descrever o real, mas tornar a representação em si concreta. Projeções de vídeos pré-gravados adicionam camadas de leitura. Nem sempre o que se desenrola no formato cinematográfico e o que ocorre ao vivo estão sincronizados. Pequenas diferenças de tempo e discrepâncias de locais da ação sucedem de forma intencional. No angustiante capítulo cinco, Anatomia de um Crime, um carro adentra o espaço cênico. Em seu interior encontram-se o rapaz gay e os homens bêbados e desempregados que o espancaram e assassinaram. A câmera nunca desgruda de seu semblante, transformando o espectador em testemunha do horror.

Não se fica indiferente. O encenador investiga como os atos mais banais podem dizer muito sobre nossa humanidade. No desfecho, aquele que personificou Jarfi escala uma cadeira e enrola uma corda em seu pescoço. Se ninguém da plateia interferir, avisa, ele inevitavelmente morrerá enforcado. Um tapa nos espíritos passivos e inertes.

Cinco Peças Fáceis.Ousado e original, o espetáculo reuniu sete atores de 11 a 15 anos e um adulto para ressignificar a trajetória do pedófilo e serial killer Marc Dutroux. Na década de 1990, na Bélgica, ele estuprou e assassinou uma série de meninas, um evento que deixou traumas e gera reflexos ainda hoje.

O diretor não desembrulha um trabalho fácil. Com viés político, estabelece uma singular conexão entre o legado da colonização belga na África e os crimes abjetos perpetrados pelo psicopata – os primeiros minutos, por sinal, recapitulam a cerimônia da Independência da República Democrática do Congo e o assassinato do guerrilheiro congolês Patrice Lumumba. Na encenação, o elenco infantil desempenha os papéis do pai enfermo de Ducroux, o agente policial que investiga os terríveis acontecimentos, uma das garotinhas e os pais de outra. Elas são filmadas pelo único intérprete maduro no proscênio, na posição de diretor. Curiosamente, as cenas se iniciam com a projeção de um curta-metragem protagonizado por adultos, enquanto no tablado as crianças emendam e passam a agir em simultaneidade ao que está sendo apresentado no telão.

Há momentos angustiantes, caso da atriz mirim quase despida que recita a carta de uma das sequestradas, na qual relata detalhes de seu cativeiro. Seu rosto sobressai na tela grande. Um garoto encarna o genitor de uma das vítimas, abalado pela notícia do estupro e morte de sua filha. Outras passagens produzem da mesma maneira incômodo e mal-estar. O cenário é composto por quatro conjuntos sobre rodas, que delineiam a sala do velho Ducroux, uma delegacia de polícia, o porão onde o maníaco trancafiava as raptadas e a casa da família de uma das garotas desaparecidas. 

Sem fresta para sentimentalismo barato e pieguice, a obra não escancara apenas a infâmia. Em suas entrelinhas, deixa entrever temas imperiosos, relacionados à perda da colônia do Congo e o fechamento das minas de carvão na Bélgica, motor de previsíveis sequelas sociais. Simultaneamente, a peça evidencia o exercício da manipulação e o abuso de autoridade. Tanto dentro do teatro como fora dele também.  

Compaixão. A História da Metralhadora. São dois monólogos, com as faces das intérpretes projetadas em um telão. O palco está atulhado de lixo, destroços de um possível lar destruído em uma guerra civil.  Consolate Sipérius, uma jovem que escapou do massacre no Burundi, foi adotada por pais belgas e agora vive em uma cidadezinha na Bélgica, relata a sua dramática experiência. Sua emoção é contida, os olhos transmitem expressividade. Em sua vez, Ursina Lardi começa exibindo a imagem de uma criança síria morta em uma praia turca. Ela dá vida a uma professora que foi parar em uma organização de ajuda na África Central e viu a selvageria de perto – seu personagem é uma fusão de experiências alheias e do resultado das entrevistas e pesquisas conduzidas por Milo Rau e sua equipe.

Por meio dessas vozes duplas, a da expatriada e a da testemunha de genocídios, o diretor aborda a crise de refugiados na Europa, a consciência e o sentimento de culpa dos brancos europeus e o cinismo de nações que negociam armas para o continente africano com o intuito de prolongar as guerras civis e facilitar o acesso aos abundantes recursos naturais de territórios em conflagração. Sua metralhadora alveja ainda o ambíguo papel humanitário das ONGs em áreas de hostilidades no mundo. Em sua visão, são organizações coordenadas Lpor indivíduos privilegiados, tão exploradores e radicais quanto aqueles contra os quais lutam.

Rau discute até que ponto tais entidades não-governamentais são cúmplices nessas atrocidades que combatem. A professora, por exemplo, é encarada como uma espécie de turista, que tem necessidade de colecionar narrativas para contar e se sentir especial. Uma expressiva diferença se observa entre ambos os relatos servidos ao público. Uma foi pessoalmente afetada pelo horror do extermínio. A outra tinha a opção de abandonar a província bélica quando bem quisesse. O encenador não esconde o desejo de perscrutar a moralidade questionável e a compaixão conveniente e compreender como ambas se imiscuem na construção da identidade europeia. 

Mágica de Verdade. Outra criação instigante na grade da MITsp levou a assinatura do grupo inglês Forcedo Entertainment. Conhecida por sua inquietação, a trupe produz uma sátira corrosiva aos game shows e à inútil tentativa de buscar significado e sentido em programas com lógica e regras bizarras. Três criaturas estão enredadas no jogo. Um é o apresentador, o outro, de olhos vendados, é quem deve adivinhar a palavra que foi pensada por um terceiro competidor, vestido de frango.  

A cada rodada desse divertido e torturante ritual de erros, eles trocam de posto e de roupa. O trio repete sempre os mesmos vocábulos e jamais acerta. Nem aprende com a experiência. Ninguém consegue vencer, embora mantenham um fio de esperança. De repente "dinheiro" seja finalmente a resposta certa. Estão feitos reféns de uma diversão macabra.

Durante a batalha se revelam perplexos, frustrados, irritados, desesperados, exaustos. Todas as sequências têm um ritmo e ênfase próprios. Podem ser lentas ou extensas, hilárias ou sinistras, entediantes ou lúdicas. A contagem regressiva de um relógio, que parece uma bomba prestes a detonar, é acionada fortuitamente.  Aplausos enlatados e explosão de risadas vindos de um público invisível invadem o auditório. A crescente ansiedade chega a contaminar o público e algum espectador não resiste em interagir. Talvez para relaxar, porque as coisas não transcorrem como imaginam, os contendores protagonizam por vezes uma dança absurda. 

O que o diretor Tim Etchells dramatiza é a incapacidade do indivíduo em modificar sistemas opressivos. No lugar de transformar, de viver de forma diferente, o ser humano está fadado à ilusão de mudança. Ele se esforça para reinventar novas dinâmicas de vida e de poder, mas não logra êxito. Nessa peleja, todo mundo é um perdedor.

O Alicerce das Vertigens.  O diretor teatral congolês Dieudonné Niangouna nasceu no Congo em 1976, período em que explodiu a primeira guerra civil. Chegou a ser capturado por grupos rivais e quase foi executado. Urgente, aguda e figadal, a produção retrata uma nação à deriva, devastada pela sucessão de conflitos armados.  

Não se trata de uma mise-en-scèene de digestão suave. É uma performance vulcânica, verborrágica, violenta. Atores gritam, sons de rumba, guitarra e sirene impregnam o ar, projeções de vídeo difundem animais em processo de esfolamento. Arames farpados e sacos de areia estão à vista. A atmosfera embaraçosa espelha a montanha russa emocional dos personagens, que vivem na capital Brazzaville, fustigada pela delinquência, prostituição e drogas. Na trama, os irmãos Fido e Roger, um legítimo e um renegado, são apaixonados pela mesma mulher, que acabou sendo encontrada morta com sua filha.

Sem concessões, escorado em longos e tensos solilóquios, o enredo não se contenta em desfiar o percurso dos irmãos inimigos, confrontados com desaparecimentos familiares e o passado atroz de sua terra natal. Combina um jorro de sentimentos difusos a um inclemente discurso político sobre o Congo, da colonização aos dias atuais. Ocasionalmente lembra uma aula de história, ao entrelaçar as vivências de Fido e Roger e a espiral de violência que acomete um país rico em recursos naturais, mas com a maioria esmagadora da população vivendo em extrema pobreza.

 

Teatro: Tubarão Banguela

Uma praia pode ser o microcosmo de uma sociedade que se sente impotente e é refém da natureza imprevisível da vida. Nesta geografia espelhada pela peça, os personagens se relacionam, porém se mostram desorientados. Há um velho solitário, que perdeu os anos de predação sexual e agora compartilha a sua existência com um cachorro meio niilista. Duas amigas torram sob o sol escaldante, enfurnadas no tédio e marasmo. Um tubarão ronda perigosamente as águas, onde um surfista faz manobras sobre as ondas. A ameaça está também na pele de um dissimulado homem de camisa azul. De olho no movimento à beira-mar, um bombeiro precisa fazer resgate enquanto tenta salvaguardar o afeto em sua família. Uma filha se desespera ao procurar pelo pai. Uma criança quer entender o mundo dos adultos. O som de um helicóptero ensurdece os banhistas.

A promissora estreia na dramaturgia e na direção da jovem atriz Rita Batata acontece sem a pretensão de cavar profundezas emocionais ou psicológicas. Valendo-se de recortes de histórias conectadas, a trama pinça o flagrante em um plácido dia de verão. A fissura na calmaria advém de um acidente no mar, nunca visto e apenas narrado, estopim de um curioso encadeamento de pontos-de-vista de personagens direta ou indiretamente envolvidos com o episódio. O que aflora a partir daí são os sentimentos, as motivações ocultas, os desejos mascarados, a índole humana dessas testemunhas oculares absorvidas pela desgraça ocorrida. O texto ignora qualquer perspectiva de alcançar a verdade absoluta, ciente da impossibilidade de alcançá-la. Sem se preocupar em seduzir ou encantar, os fragmentos narrativos passam pela borda da consciência crítica. No entanto, transpiram certa poesia, mesmo que transfigurada por eventos dolorosos. O público acompanha um enredo, estruturado em justaposições e sobreposições, que expõe indivíduos às voltas com impasses, reveses, mal-entendidos, acasos felizes ou não.  

Algumas vezes a construção cênica exala a estética de uma história em quadrinhos, especialmente na sequência inicial, um mosaico de tipos quase inertes à beira mar ilustrando molduras. Movida por diálogos vivos e cenas enérgicas, a montagem desliza em ritmo ágil e seguro, sem nunca perder o ímpeto. Expressões gestuais de sentidos inusitados sublinham a encenação – por exemplo, as cocotas se contorcem na areia e uma personagem gira em círculos, manifestando o desequilíbrio emocional vivido naquela hora. Soluções simples e sugestivas, como a simulação de sangue na água em jarras posicionadas à frente do palco, são acionadas. Um pouco de atenção e é possível observar que a autora borrifou a representação com características da linguagem de origem japonesa haicai. No caso, a descrição sem artifícios dos acontecimentos, os fatos que sucedem no momento presente e o homem em simbiose com a natureza.

Esta espécie de meditação acerca da perplexidade de todo ser humano diante de inevitáveis perdas e danos, é materializada em cena por um elenco desenvolto e expansivo, que parece exibir felicidade em atuar. Nenhum deles está desconectado do clima geral do trabalho e eventualmente se multiplicam em narradores e figuras secundárias, como um policial, um repórter, o moço da xerox. Rafael Lozano brilha na composição de um cachorro à procura de identidade. Bella Marcatti se sobressai ao dar vida a uma criança esperta e de perguntas incômodas. Mariana Leme empresta impetuosidade e viço à filha perseverante e incauta no amor. Leandro D´Errico, o velho ranheta, e Rafael Pimenta, o pai atônito, exprimem firmeza e potência. Todos evitam sucumbir à caricatura ou efeitos fáceis. Os figurinos de desenhos dissonantes de Bia Pieratti e Carol Reissman, a competente luz de Aline Santini e a atilada trilha sonora de Thiago Iglesias enriquecem o espetáculo.

Nesta obra desafetada, não há grandes verdades, mas pequenas crenças. O texto soaria bem como uma parábola a respeito da condição em que vivemos, sobre essa suspeita de que o tempo só serve para fazer as pessoas esquecerem das velhas tragédias até o instante em que produzem outras novas.

(Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Daniel Spalato)

 

Avaliação: Bom

 

Tubarão Banguela

Texto e Direção: Rita Batata

Elenco: Rafael Lozano, Bella Marcatti, Leandro D´Errico, Mariana Leme e Rafael Pimenta.

Estreou: 26/10/2018

Teatro Sérgio Cardoso (Rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista. Fone: 3288-0136). Sexta e sábado, 19h30; domingo e segunda, 20h. Ingresso: R$20. Até 26 de novembro.

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