EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

  • Font size:
  • Decrease
  • Reset
  • Increase

Teatro: O Escândalo Philippe Dussaert

Uma dúvida percorre a trama: afinal, quem é o pintor Philippe Dussaert (1947-1989), criador de uma controversa obra nos anos 1980, que abria mão do que havia de animal e humano nas telas e preservava apenas os seus cenários de fundo? O autor da peça, o ator e comediante francês Jacques Mougento, se utiliza da trajetória dessa polêmica figura para urdir um comentário cortante sobre a arte contemporânea, abarcando a crítica especializada, instituições de arte e o Ministério da Cultura francês. Com direção competente e segura de Fernando Philbert, a montagem estrelada por Marcos Caruso é inteligente, estimulante e engraçada.

O texto é encenado como se fosse uma palestra. Todos os clichês desse tipo de evento são acionados, como projeções de slides, colóquio informal e bem-humorado com a plateia, improvisos pontuais, citações e explicações a partir de recortes de jornais e trechos selecionados de catálogos. Na cenografia, assinada por Natalina Lana, há apenas um banco, mesinha, jarro d’água, livros e anotações. O encontro começa com o palestrante repassando a vida desse enigmático artista iconoclasta que, embora presente em museus, galerias e coleções particulares, encontra-se estranhamente no limbo da mídia. Seu trabalho é tido como indefinível e sem rótulo fácil. Ele assustou a crônica por pincelar, por exemplo, Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, removendo a mulher da pintura. Repetiu a mesma fórmula minimalista em outras telas consagradas, de nomes como Manet, Cézanne e Vermeer. Isso seria arte? O espetáculo proporciona a chance de imergir nas entranhas do universo um tanto insólito e atrevido da Arte Pós-Moderna, que valoriza mais o conceito, a atitude e a ideia do que necessariamente o objeto final.

O caso que dá título à peça ocupa a segunda parte da conferência. Trata-se de uma celeuma enredando Dussaert, que incendiou a cena cultural e política europeia no início da década de 1990, justamente durante a Guerra do Golfo. Por conta do noticiário concentrado no conflito militar, poucos puderam acompanhar as discussões e querelas que cercaram o leilão de seu último trabalho, uma representação daquilo que estaria por trás da paisagem. Ou seja, o nada. A polêmica respingou até no governo da França, impiedosamente acusado de desperdiçar dinheiro público por adquirir por oito milhões de francos uma criação radical sem moldura e conteúdo. Um vazio absoluto. Símbolo, segundo os críticos, dos desvios da vanguarda artística. Aquilo era uma produção transgressiva ou somente uma provocação com intenções midiáticas? Como se forja o juízo artístico de uma obra de arte? A dramaturgia despeja tais questões de forma irônica e inacreditável.

Philbert conduz a encenação com ritmo adequado e engendra marcações fluídas, fazendo com que tudo pareça realmente uma combinação de aula e teatro. Ele valoriza movimentos que aproximam o personagem da audiência, transformando-a em aliada. Em seu primeiro monólogo em mais de quatro décadas de carreira, Marcos Caruso desembrulha performance sedutora. Em momento algum deixa a ação perder fôlego. Ancorado em malícia, desembaraço, irreverência e carisma transbordante, rompe a quarta parede e estabelece fina sintonia com o público. O ator infunde humanidade a um orador que nunca esconde a admiração sentida por Dussaert, que espeta análises minuciosas, conta anedotas, esclarece e dá nexo aos fatos. Um desempenho que consegue dar leveza a um assunto presumivelmente pesado e pedante, trafegando de um gênero ao outro sem esforço aparente e de maneira sutil.

Não é a primeira vez que a arte contemporânea e suas idiossincrasias vira mote para o teatro. Na ótima Arte, a dramaturga francesa Yasmin Reza põe em cena três amigos se digladiando em torno de um quadro totalmente branco. Ali a autora expunha o sentido intangível e ininteligível que ronda os critérios valorativos da arte ao mesmo tempo em que desnudava as relações humanas, de como aos poucos os instintos afloram e o verniz social se esgarça. Já Mougenot desdobra outro debate paralelo, o atrito entre realidade e ficção, o real e o fictício, como explode no surpreendente desfecho.     

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Paula Kossatz)

 

Avaliação: Ótimo

 

O Escândalo Philippe Dussaert

Texto: Jacques Mougenot

Direção: Fernando Philbert

Elenco: Marcos Caruso

Estreou: 05/04/2018

Teatro Faap (Rua Alagoas, 903, Higienópolis. Fone: 3662-7233). Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 40 e R$ 80. Até 01 de julho.

Teatro: Se Meu Apartamento Falasse

Não é a primeira vez que a versão desse clássico da sétima arte é montada no Brasil. No início da década de 1970 uma adaptação ganhou os palcos cariocas protagonizada pelo humorista Moacyr Franco, a cantora Rosemary e o inesquecível Jardel Filho. O espetáculo, inclusive, manteve o título original da Broadway (Promises, Promises), traduzido para o português como Promessas, Promessas. A oscarizada comédia estrelada por Jack Lemmon e Shirley MacLaine foi um estouro. Chegou aos cinemas em 1960, com direção de Billy Wilder, e logo atraiu grandes plateias – na ocasião, este crítico era menor de idade e se frustrou por não poder ver a obra na telona, na idílica cidade interiorana de Barra Bonita. Em 1968 foi parar no teatro, no formato musical, com texto de Neil Simon, fiel ao roteiro original do longa-metragem (de Billy Wilder e I. A. L. Diamond). As canções foram compostas por Burt Bacharach (sua primeira e única incursão no teatro musical) e as letras assinadas por Hal David. Permaneceu mais de três anos em cartaz na Broadway, obteve sete indicações ao cobiçado prêmio Tony e ganhou badalada remontagem em 2010.

Com direção de Charles Moeller, a atual montagem passou rapidamente pelo Rio de Janeiro e agora cumpre curta temporada na capital paulista. Ambientada nos anos 1960, a história é oportuna por colocar no centro um dos temas mais discutidos hoje em dia, o assédio como uma ferramenta de opressão. Baxter (Marcelo Médici) é o solitário contador de uma seguradora, que disponibiliza seu apartamento para escusos encontros amorosos dos colegas do escritório. Como são casados e precisam de discrição, eles acabam pedindo emprestado o imóvel do empregado solteiro, localizado a poucos metros da organização. De olho no contracheque, o intuito do locador bom camarada é conquistar aumento salarial e ser lembrado em uma possível promoção. O presidente da companhia, Sheldrake (Marcos Pasquim), está no rol dos usuários e se vale do quarto e sala para seduzir a garçonete do refeitório Fran (Malu Rodrigues), imigrante polonesa incapaz de notar a paixão platônica que Baxter nutre por ela. Na peça, Simon embute uma discussão sobre as relações de sexo e poder nos ambientes corporativos. O que se vê são homens em posição de comando persuadindo funcionárias do andar de baixo da empresa (secretárias, datilógrafas, telefonistas, ascensoristas) para fins sexuais.

O diretor conseguiu bom rendimento do elenco de dezenove atores. Marcelo Médici se mostra bem à vontade no papel desse servidor generoso com os companheiros de repartição.  Ele destila nuances variadas, passeando da alegria à tristeza, da euforia à melancolia, muitas vezes quebrando a quarta parede e se dirigindo aos espectadores, transformados em confidentes. Merece destaque a cena no final do primeiro ato, quando o ator exprime dor e angústia ao descobrir o romance clandestino da garçonete. Na hora de cantar, sua performance é mais comedida e não brilha na execução de algumas partituras mais difíceis. Malu Rodrigues imprime doçura na composição de Fran, exibindo belíssima voz nos números musicais – ela canta em tom mais grave que seu habitual. Dono de um tipo adequado para interpretar o chefão mulherengo, Marcos Pasquim foi poupado nos segmentos cantados, soltando a voz apenas em um dueto ao lado de Médici.

Mesmo com presença ligeira no espetáculo, Maria Clara Gueiros rouba as duas cenas de que participa. A atriz está impagável ao incorporar a bêbada Marge Macdougall, que conhece o contador num bar, no instante em que ele afoga sua fossa, e arranca entusiasmados aplausos da plateia. Com performance bem-humorada, André Dias dá corpo ao tresloucado Dreyfuss, o médico vizinho do apartamento, que acredita ser Baxter um xavequeiro insuperável. O quarteto formado por Antonio Fragoso (Eichelberger), Fernando Caruso (Dobitch), Rafa Maia (Kirkeby) e Ruben Gabira (Jesse Vanderhof) é responsável por sequências cômicas, especialmente no trecho musical Prá onde levar a mulher? Por sua vez, Juliana Rolim (Miss Olson) oferece bons momentos como a secretária do presidente, assim como Jullie na criação da enfermeira Kreplinski. Apesar da cena curta, Patrick Amstalden valoriza o papel do bravo irmão da garçonete. Completam o elenco Carol Truzzi (Ginger), Lola Fanucchi (Sylvia), Patrícia Athayde (Vivien), além das Bacharach Girls, uma trupe que soma Duda Ramos, Marianna Alexandre, Mayra Veras e Yasmin Lima.

Antigos parceiros da dupla Moeller & Botelho estão reunidos na ficha técnica do musical, resultando numa produção elegante e bem cuidada. Rogério Falcão criou um cenário em tom sépia, para lembrar a época em que se passa ação, incluindo skyline de Nova York ao fundo. Marcelo Marques fez boa pesquisa histórica e concebeu figurinos sofisticados, que aludem ao glamour daqueles tempos. A iluminação de Paulo César Medeiros realça todo o conjunto. A orquestra de oito músicos, com regência e direção musical de Marcelo Castro, sublinha as belíssimas canções. Estas, por sinal, se tornaram clássicos do repertório de Burt Bacharach, como I’ll Never Fall in Love Again, um grande sucesso na voz de Dione Warwick, e I Say a Little Prayer, popularizada por Aretha Franklin. A cereja do bolo foi a inclusão especial de Close to you, entoada sem tradução por Malu Rodrigues. Alonso Barros e Charles Moeller elaboraram coreografias interessantes, muito bem desempenhadas pelo grupo, com destaque para a nonsense natalina Festa do Peru, que encerra o ato inicial. Trata-se de comédia que começa como sátira, desenvolve-se como drama e termina romântica, sem vítimas ou vilões absolutos.

(Vinicio Angelici – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Léo Aversa)

 

Avaliação: Bom

 

Se Meu Apartamento Falasse

Texto: Neil Simon

Músicas: Burt Bacharach

Letras: Hal David

Tradução do Texto: Maria Clara Gueiros e Edgar Duvivier

Tradução das Músicas: Cláudio Botelho

Direção: Charles Moeller

Elenco: Marcelo Médici, Malu Rodrigues, Marcos Pasquim, Maria Clara Gueiros e outros.

Estreou: 21/01/2018

Teatro Santander (Shopping JK. Avenida Juscelino Kubitschek, 2041, Itaim Bibi. Fone: 4003-4858). Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Ingresso: R$ 50 a R$ 190. Até 24 de fevereiro.

 

Teatro: Diálogo Noturno com um Homem Vil

Um escritor está em sua casa e pede calmamente que o intruso entre. O anfitrião já sabia que mais cedo ou mais tarde o tal visitante bateria à sua porta. O sujeito aguardado é um executor do Estado, uma espécie de burocrata da morte, que aporta ali com a incumbência de assassiná-lo. A partir desse encontro singular noturno, os dois passam a entabular diálogos vivos e vigorosos, saturado de intenções e desejos. Curiosamente, as palavras que ambos trocam são simples e sem afetação, que traduzem sentimentos como humildade, resignação e compreensão. No entanto, o assunto de fundo é terrível. Eles tratam da pena capital em um mundo que solapa a justiça, artistas vão parar na prisão, têm sua criatividade bloqueada, são asfixiados economicamente ou simplesmente eliminados. Escrito em 1953 para a rádio, o texto do dramaturgo suíço Friedrich Durrenmatt é explosivo e recebeu versão eficiente e adequada dirigida por Roberto Lage, que inteligentemente foi reverente à obra original. 

Sem maniqueísmos, o drama funciona como uma parábola sinistra, na qual um julgamento injusto e incompreensível, como o que enredou o personagem Joseph K. em O Processo, de Franz Kafka, transcorre com o único propósito de silenciar uma presumível sublevação. Afinal, sabe-se, os estados totalitários não costumam tolerar gente que dissemina ideias tidas como revolucionárias. É o caso desse amante das letras, um ativista que se tornou figura perigosa para o sistema por defender a liberdade artística e o livre exercício da expressão. Como consequência dessa conduta que afrontou o poder, ele caiu em desgraça e acabou sendo desdenhado até pelos amigos. Durante o embate, o algoz invoca suas razões para perpetrar o ato extremo, descreve as várias maneiras como mata e as diferentes atitudes assumidas por aqueles que sucumbiram sob sua faca. Alguns morrem com naturalidade e não se rebelam, crentes de que seus ideais são maiores e irão perdurar. Por isso o carrasco avança com desprezo e repulsa sobre aqueles que não se revoltaram contra o destino fatal.

Tomado por violência emocional, o espectador é instigado a entrar num jogo pesado de culpa e responsabilidade, que começa um tanto leve e segue o itinerário da miséria humana. A direção mantém o espetáculo na exata atmosfera de suspense e tensão. Evita que o excesso de falas e a pouca ação física atropelem o ritmo e faça a encenação despencar na monotonia. Porque parece que nada acontece em uma produção que expõe discussão espessa e filosófica sobre o medo da opinião, do pensamento e a arte de morrer em nome de uma causa. Lage realiza uma mise-en-scène sóbria, que valoriza a verdade interior, dá nitidez aos problemas e clareza na hora de resolvê-los. Em momento algum o interesse do público esmorece.

A entrega carnal dos atores dilui de certa forma a rigidez dessas criaturas. Na pele do verdugo, Celso Frateschi impressiona por meio de uma performance sólida e potente, concedendo expressões sutis e nervosas ao assassino, um fulano que acredita piamente na importância de sua missão. Num desempenho com espaço para crescer mais em densidade, um contido Aílton Graça incorpora o intelectual acuado. O ator escapa de cair no clichê da vítima piedosa e indulgente e consegue transmitir a lucidez e a tragicidade de quem sabe que sua vida corre por um fio. 

Em pouco menos de uma hora, a plateia acompanha uma meditação ferrenha sobre os mecanismos da violência, igual em todos os lugares. Não por acaso o espaço e o lugar da trama são indefinidos. Na austera cenografia, de Sylvia Moreira, uma oportuna foto da vereadora assassinada Marielle Franco estampa um porta-retratos. Ao fundo do palco se destaca uma reprodução da obra Relatividade, do polêmico artista holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972). Sugestiva alegoria, a litografia subverte a certeza da realidade única – habitantes caminham lado a lado utilizando escadas de maneira oposta, sem contato um com o outro, como se habitassem mundos distintos, apesar da proximidade.  

A montagem ilumina o olhar pessimista e amargo que o dramaturgo tem da natureza humana. Aqui, os personagens não são psicologicamente profundos, mas a aparente superficialidade é explorada com argúcia. Eles valem pela função que assumem dentro do contexto e não por suas personalidades. Durrematt é fascinado pelo tema da justiça – o conceito é visto tanto pela ótica moral quanto pelo seu sentido jurídico. Em A Visita da Velha Senhora, sua obra-prima, um indivíduo condenado pela sociedade aceita a sina e entrega-se ao sacrifício. Parece que o autor aposta na redenção de quem se conforma ao papel de mártir. É a força de um fado que se cumpre. Há uma frase naquela peça que facilmente caberia nesta. Um professor diz ao homem prestes a morrer: “Também para nós chegará uma velha senhora e então se passará conosco o que agora se passa com o senhor”.   

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto João Caldas)

 

Avaliação: Ótimo

 

Diálogo Noturno Com um Homem Vil

Texto: Friedrich Durrenmatt

Direção: Roberto Lage

Elenco: Celso Frateschi e Aílton Graça

Estreou: 16/03/2018

Sesc Ipiranga (Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga. Fone: 3340-2004). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 30. Até 22 de abril

 

Teatro: Hollywood

A mítica meca do entretenimento, Hollywood, seria uma cova de depravação e imoralidade, sustentada pelo poder, sucesso e dinheiro. Ao menos é o ponto de vista do dramaturgo americano David Mamet, que desembrulha o raciocínio de que essa fábrica de sonhos se move pela ausência de idealismo, vácuo moral e pela convicção de que a arte pode ser boa para a consciência, mas que um filme jamais deixará de ser uma mercadoria que precisa render lucro, e quanto mais melhor. A indústria cinematográfica produz enredos que efetivamente as pessoas têm necessidade de ver?, é uma das questões embutidas na peça. A montagem da inquieta Cia Teatro Epigenia dispõe o tema no palco, em um momento em que blockbusters se tornam cada vez mais fantasiosos e alienantes. A ironia aqui é o fato de que um texto escrito três décadas atrás continua imune aos efeitos do tempo. 

Dois magnatas de Hollywood, encarnados por Rubens Caribé (Tony Miller) e Iuri Saraiva (Daniel Fox), são amigos de longa data e adoram trocar elogios mútuos, como exemplo de fraternidade. O escorregadio Miller acabou de assumir o posto de diretor de produção de um influente estúdio de cinema e o ansioso produtor Fox desembarcou na sala dele acenando com uma proposta tentadora, capaz de gerar milhões de dólares. No caso, um melodrama de prisão com muito sangue e ação a ser protagonizado por uma grande estrela da tela, que exige uma resposta em até 24 horas sobre a anuência ao projeto para assinar o contrato. A prosa entre estes dois profissionais semeará uma das passagens mais patéticas do espetáculo, quando ambos vomitam piadas machistas e trocadilhos infames e começam a divagar acerca da boa vida que irão desfrutar, acreditam, a partir do presumido estouro desse novo produto de venda. 

Um terceiro personagem, a aparentemente ingênua secretária substituta Karen (Luciana Fávero), surge para modificar o rumo da história e exacerbar um pouco mais o comportamento cínico daqueles seres humanos. Miller recebeu um livro, enviado por um agente ao chefão do estúdio, que ele deveria ler por cortesia de olho numa eventual versão cinematográfica. Trata-se de um conto esotérico sobre o fim do mundo, que ele repassa à funcionária com a incumbência desta de preparar um relatório a respeito. Claro, a estratégia do figurão é levá-la para cama, o que motivou uma aposta com o amigo - é assim que homens do naipe deles costumam lidar com as mulheres que trabalham nesse segmento.    

Estamos diante de um colchão de clichês, porém o autor investe em diálogos pungentes, com torções surpreendentes, humor frenético e tensão cumulativa, especialmente depois de Miller ter sido convertido naquela mesma noite pela retórica de Karen e a tentativa dela de persuadi-lo a encampar primeiro esta ideia e não mais a do projeto do longa-metragem comercial ambientado no presídio. Com nítido entusiasmo, a moça relata o pensamento visionário implícito na obra, cuja adaptação para a telona navegaria na contramão da fórmula padrão de Hollywood. Karen deseja, inclusive, trabalhar nessa produção. 

Embora a assistente seja um papel teoricamente menor, é em torno dela que gira o eixo da trama. Sua conduta é diligentemente disciplinada e convincente. À jato, Miller passa de carreirista empedernido, daqueles que não se acanham de assinar produções ruins desde que estourem na bilheteria, ao de idealista de última hora, disposto a produzir um filme de arte que apaziguará o seu espírito. Se ele e Fox são amigos, também é verdade que são concorrentes num mesmo negócio. Como será preciso definir qual script vingará inicialmente, abre-se uma fissura que impulsionará o drama, detonando um jogo de colisões de forças, discursos destoantes e evidente manipulação. Numa cena de impacto, um irritado Fox só admite sair do escritório após ouvir a resposta de Karen sobre uma dúvida que o incomoda.     

A direção de Gustavo Paso faz a encenação fluir com desenbaraço e interesse, instaurando marcas dinâmicas que dão relevo aos conflitos alavancados. Como os personagens estão em constante procedimentos de interrupção – falas fragmentadas e simultaneidade de vozes -, pausas pontuais foram concebidas para necessários respiros. É um trabalho sóbrio e inteligente, que valoriza a ironia e a mordacidade da dramaturgia. Os atores circulam por um escritório ainda com mobília acondicionada em plástico bolha. Assinada por Paso, a cenografia desse ambiente inacabado funciona como signo da condição emocional e existencial daquelas criaturas em embate. Na cena no apartamento de Miller, a iluminação de Paulo César Medeiros desenha criativamente o espaço, que se transforma em uma espécie de quarto de motel. 

Em desempenho harmonioso, o elenco transmite veracidade à situação. Rubens Caribé vaza humor ao expressar a vaidade de Miller em sua nova função de comando. No entanto, circunstâncias imprevistas forçam o medalhão a uma mudança de atitude, dividido entre os instintos comerciais, ardis sexuais e inseguranças. O ator exibe potência e nuances ao externar a fragilidade e o descaramento de um sujeito que acredita que todos, nesse ofício, agem como verdadeiras prostitutas. No mesmo diapasão febril, Iuri Saraiva alcança expressões sinceras e é eloquente como Fox, o produtor que esperou o bilhete premiado para galgar posições e agora observa o mesmo escoando de seus dedos. Na composição da secretária, Luciana Fávero combina toques de candura, dissimulação e esperteza, humanizando uma figura que fareja oportunidades nessa engrenagem. A personagem chega a se comprazer ao envolver-se nesse jogo frenético de manipulação e arbítrios. O choque entre Karen e Fox é uma das sequências mais vigorosas que o público acompanha. 

Mais do que uma sátira afiada sobre os meandros de Hollywood, aflora um estudo acerca do assédio em um universo sexista, o conceito de arte no mundo de hoje e a transitoriedade da ética nas relações interpressoais. Por meio de diálogos inflamados, o texto transmite a impressão de que a linguagem é apenas um mecanismo de disfarce e não um real instrumento de comunicação.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

(Foto Gabriela Bilo)

 

Avaliação: Ótimo

 

Hollywood

Texto: David Mamet

Direção: Gustavo Paso

Elenco: Rubens Caribé, Iuri Saraiva e Luciana Fávero.

Estreou: 11/01/2018

Teatro Sesc Pinheiros (Rua Paes Leme, 195, Pinheiros. Fone: 3095-9400). Quinta a sábado, 20h30. Ingresso: R$ 7,50 a R$ 25,00. Até 10 de fevereiro.

 

 

Teatro: Love Love Love

Henry está em seu pequeno apartamento londrino, aguardando a chegada de sua recente namorada, e pede para o irmão mais novo, Kenneth, que deixe a sala para não estragar o momento íntimo. Sandra aparece e começa a flertar com o caçula, com quem logo se identifica. Não é por mero acaso que a peça começa embalada em uma traição. Inédito no Brasil, o texto do dramaturgo inglês Mike Bartlett (Contrações)é uma sátira mordaz à Geração Baby Boomer, que nasceu após a Segunda Guerra Mundial, alcançou a idade universitária em plena ebulição da década de 1960 e cresceu acreditando ser o motor que iria mudar o planeta. Com direção de Eric Lenate, a montagem leva a assinatura do inquieto Grupo 3 de Teatro, de trabalhos elogiados como A Serpente e O Amor e Outros Estranhos Rumores.  

Ambientado em 1967, no dia em que a tevê transmitia ao vivo o hit All You Need Is Love, dos Beatles, o primeiro dos três atos flagra a gestação da rebeldia juvenil. Já aliciado pelo establishment, Henry, 23, tem trabalho fixo, porém enfadonho. Quatro anos mais jovem, Kenneth é um estudante com bolsa de estudo que nunca termina tarefas prosaicas e necessárias, como fazer compras e faxinar o local em que vive. O atrito entre eles é visível, reforçado pela presença incendiária da chapada Sandra, 19, também caloura universitária, uma predadora sexual que age sem se importar com as consequências.

A trama salta para 1990. Os hedonistas Kenneth e Sandra estão casados, residem em uma atraente casa no subúrbio e são pais negligentes de dois adolescentes, a desajeitada Rose, 16, e o sem noção Jamie, 14. Em que pese a cômoda situação econômica, inexiste unidade familiar e a comunicação interpessoal é um fracasso. Sinal de que o casamento desmorona, ambos mantêm casos extraconjugais e decidem se separar, justamente na noite de aniversário da garota.

2011. Envolvidos em outros relacionamentos, os sexagenários Kenneth e Sandra são amigos, vivem bem de suas confortáveis pensões e ainda creem preservar a chama revolucionária do passado. Rose não vingou como promissora violinista e Jamie tornou-se um nerd obcecado por videogame. Os filhos, vítimas da recessão de 2008, mal conseguem se sustentar. Em uma passagem perturbadora, a quase quarentona Rose acusa a geração dos pais pelo seu fracasso pessoal, por terem elegido políticos como Margareth Thatcher, fechado os olhos para a destruição dos sindicatos e apoiado a redução de impostos.

A crítica do dramaturgo à trajetória dos baby boomer é inclemente. Ele insinua que muitos daqueles que adotaram o sonho dos anos 1960 envelheceram como indivíduos autoindulgentes, presunçosos e egoístas, após terem surfado a onda de prosperidade da década de oitenta. Ou seja, eles migraram da contracultura para venturosos exemplares da classe média alta. Aquela geração que projetava transformações radicais, era afeita ao amor livre e consumidora de álcool e maconha, não mudou o mundo, mas o comprou, como vomita Rose durante a reunião familiar.

Eric Lenate realça a frieza e insensibilidade deliberadas desses protótipos monstruosos, instaurando marcas eficientes que impulsionam ao grau máximo os embates e fricções. Os saltos no tempo acontecem de forma natural, com clara opção brechtiana no desenho de cena. O diretor não camufla o trabalho de contrarregragem, institui troca de figurinos e perucas diante da plateia a deixa os atores por vezes no palco, mesmo quando fora da ação. A cenografia (André Cortez), os figurinos (Fábio Namatame) e a iluminação (Gabriel Fontes e André Prado) contribuem para uma encenação que desliza por pouco mais de duas horas sem fatigar o público.

O elenco infla caracterizações incisivas, energizando os diálogos agudos e o peso emocional das várias situações expostas. A destreza das atuações facilita a proximidade com o cotidiano dessa família disfuncional. Yara de Novaes (Sandra nas fases adulta e madura) se movimenta com fulgor e vivacidade na composição de uma mulher desagradável e cheia de desdém, que se mostra totalmente alheia aos sentimentos dos outros. Sua performance infunde alma e personalidade à uma figura que ajudou a destroçar seu casamento e agiu de forma tóxica com os filhos. No mesmo diapasão sublime, Débora Falabella encarna uma Sandra flutuante e subversiva na primeira parte e, nas sequências seguintes, uma Rose que parece um baú de misérias e angústias. Um desempenho contagiado de potência e expressões humanas, que dá efetividade a uma jovem que tentou o suicídio em resposta aos pais e berra sua indignação e fratura existencial. 

Augusto Madeira cria Kenneth em sua versão adulta com segurança e virtuosismo. Ele é convincente na hora de incorporar um tipo que evita sempre a responsabilidade, revela-se gentil apenas na aparência e derrete-se em covardia. Também dividido em dois papéis (Kenneth na adolescência e o filho Jamie), Alexandre Cioletti exala espontaneidade, trafegando da atitude descontraída e imprudente da juventude ao perfil desajustado e apático da maturidade – possivelmente Jamie é a principal vítima desse núcleo familiar em frangalhos. Centrado em um personagem menos desenvolvido, Mateus Monteiro concede vida ao tímido, levemente agressivo e bom perdedor Henry. Espertamente passa ao largo de uma presumível caricatura.        

Nesta obra sombria, o espectador espreita a tragédia a cada minuto. A dramaturgia não chega a parir uma discussão densa sobre a degeneração dos valores e ideais ao longo dos tempos de uma gente no fundo cínica. Mas o autor cutuca o comportamento dessa geração e seu notável talento para queimar a mensagem do título, extraída da famosa letra da canção dos Beatles. Eles apregoaram a paz e o amor sem posse, controle ou nome, mas se deixaram seduzir pela revolução tecnológica e o status quo. Venderam seus valores a preço de banana e hoje vivem enclausurados em seus casulos impenetráveis. Atrofiados emocionalmente, ressentidos e depenados pela realidade brutal da crise, Rose e Jamie personificam a Geração X, a que sucedeu a dos pais e contrária à filosofia hippie. Descontrolada, Rose chega a reivindicar o direito a um imóvel, quer tenha ou não razão ao implorá-lo. Em um dos momentos mais deploráveis, Kenneth e Sandra dançam como se quisessem deixar de lembrar de seus demônios interiores. Dersfecho amargo – talvez um alerta? - para quem um dia acreditou em promessas de transformações políticas, sociais e comportamentais e agora não passam de seres moralmente miseráveis.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Leekyung Kim )

 

Avaliação: Ótimo     

 

Love Love Love

Texto: Mike Bartlett

Direção: Eric Lenate

Elenco: Débora Falabella, Yara de Novaes, Augusto Madeira, Alexandre Cioletti e Mateus Monteiro

Estreou: 23/03/2018

Teatro Vivo (Avenida Dr. Chucri Zaidan, 2.460, Morumbi. Fone: 3279-1520). Sexta, 20h; sábado, 21h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 50 e R$ 60. Até 27 de maio. 

Teatro: Pequenas Certezas

Nesta peça, nunca vemos o personagem central, mas seu nome jamais deixa de ser citado pelos demais. O tal fulano é Mário, para cuja ausência ninguém consegue encontrar uma razão pertinente. Irmão mais novo de João, ele decidiu sair de casa depois de ambos terem discutido rispidamente, quando se ouve uma forte batida de porta. A trama é detonada a partir desse sumiço sem rastros, com o envolvimento de cinco personagens, todos implicados com ele em graus variados, que se entregam ao exercício de perscrutar uma pessoa que, no fundo, ninguém conhecia por completo. Mário é o eixo, mas em momento algum o espectador acompanha sua trajetória através de seus olhos. Só o apreendemos pela fala e ponto de vista dos outros, pelo juízo daqueles que o cercavam. 

Dirigida por Fernanda D´Umbra, a montagem da peça da dramaturga mexicana Bárbara Colio transcorre em um porão teatral. É nessa atmosfera que um drama familiar, ou melhor, dois núcleos dramáticos em alvoroço se cruzam, num enredo que parte da cidade do México, onde residem mãe e filha, e desemboca no município de Tijuana, terra natal do sujeito desaparecido. Existe um suspense em torno do acontecimento, às vezes assumindo contornos policiais. Pelas frestas, no entanto, se esgueira um tipo de humor negro, traduzido por diálogos de alguma comicidade em plena situação trágica. A história da ansiosa fotógrafa Natália, de sua sensitiva mãe especialista em fazer bolos de chocolate, da extrovertida amiga Olga e dos irmãos desesperados João e Sofia é gradualmente desfiada, com sutis referências à natureza simbólica da fotografia - a ideia de que uma foto tanto pode ser a evocação da lembrança de alguém quanto uma maneira de capturarmos sentimentos profundos emanados da imagem. A autora ainda trabalha com um tema recorrente em seu país: a morte, celebrada com o mesmo peso e culto que se atribui à vida.

Natália viajou com o intuito de revelar ao companheiro, com quem teve um rápido romance, que está grávida dele. João e Sofia nem sabiam da existência de uma namorada na vida de Mário. Por sua vez, a Mãe mantém uma relação epidérmica com a morte e sua liturgia. As coisas se complicam porque uma herança teria sido deixada para a namorada sem que ela e os irmãos dele soubessem a respeito. Aspectos surpreendentes do sumido, que permaneciam velados, veem à tona. Até a morte deixa de ser algo assustador, afinal, ela está produzindo interessante conexão entre eles.

O que se tem são duas famílias sem contato prévio e separadas geograficamente unidas por conta de uma figura ausente. Quatro personagens precisam elucidar o paradeiro de Mário e buscar uma solução cordial para o pecúlio a ser dividido. A chegada posterior da efusiva Olga faz os choques interpessoais subirem um degrau. Com mais matizes do que suscita em um primeiro olhar, o texto transita por tópicos como identidade, abandono, legados, obsessões, impasses, pequenas certezas diárias.

A diretora enfrenta com empenho a complicada incumbência de dar sentido à organização dos ambientes – casa e seus diversos cômodos, rua, consultório médico, funerária. A encenação flui com ritmo vivo e agilidade e as marcações preenchem recantos, vazios, vigas de concreto, mezanino e escadas, requerendo permanentes mudanças na disposição dos poucos elementos cênicos. Por vezes a direção se deixa seduzir pela abrangente arquitetura do espaço subterrâneo e dispersa demais as cenas, num efeito contrário a um minimalismo que ressoaria mais adequado e aproximaria o público do drama. A cenografia de Luiza Gottschalk e Marcelo Maffei, e a iluminação de Aline Santini, são funcionais e inteligentes.

O elencoexibe sintonia ao dar vida a estes indivíduos em estado vulnerável, trespassados por perdas e tristezas. A Mãe, em performance persuasiva de Chris Couto, impõe-se como a figura mais rica em nuances, boa parte por conta de seu peculiar relacionamento com a morte e sua vocação de procurar sepulcros para gente insepulta. Mariana Leme injeta suavidade na composição de Natália, jovem confusa e insegura, sempre sob a sombra de sua mãe e que almeja uma fotografia de seu parceiro para ter a certeza de que ele não era um fantasma. À vontade no papel, Maria Fanchin interpreta Olga, jovem que procura ocupar seu vazio existencial por meio da absorção de experiências alheias. Ivo Muller transmite autenticidade ao incorporar um João às voltas com inseguranças e medos. Em desempenho expressivo, Rita Batata faz da geniosa Sofia uma personagem que tenta camuflar sua instabilidade exibindo uma inexistente determinação.

Nessa adaptação que tangencia a realidade social do México e pisca para o realismo fantástico – a Mãe, por exemplo, é capaz de sentir presenças -, o desfecho é surpreendente. A sensação, porém, é a de que a escritora urdiu uma saída um tanto inconsistente para finalizar a peça. O expediente não chega a desidratar uma obra que ironiza, no título, o fato de que ninguém pode ter convicção de nada na vida. Exceto a certeza da morte.

Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto: Edson Kumasaka)

 

Avaliação: Bom

 

Pequenas Certezas

Texto: Bárbara Colio

Direção: Fernanda D´Umbra

Elenco: Chris Couto, Ivo Müller, Maria Fanchin, Mariana Leme e Rita Batata

Estreou: 01/12/2017

Centro Cultural São Paulo – Espaço Cênico Ademar Guerra (Rua Vergueiro, 1000, Liberdade. Fone: 3397-4002). Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Ingresso: R$ 20. Até 28 de janeiro de 2018.

 

Teatro: MITsp 2018

Acabou a quinta edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo e o saldo é favorável. Embora o teatro continue enclausurado numa espécie de gueto cultural e enfrenta dificuldades para ampliar o número de frequentadores - a média de público da MITsp, por exemplo, continua na casa de dezoito mil espectadores totais por ano -, o evento movimentou a capital paulista e trouxe trabalhos de linguagens arrojadas. Na opinião deste crítico, entre as oito atrações internacionais, cinco se destacaram.  

Árvores Abatidas (foto da capa) foi a mais comentada e elogiada da programação. Um dos nomes expressivos da cena teatral polonesa, o diretor Krystian Lupa desembrulhou uma adaptação vigorosa a partir do romance do escritor austríaco Thomas Bernhardt. Na trama, um dramaturgo é chamado para um jantar por um casal, quando os três se encontraram no funeral de uma velha amiga em comum. Supostamente organizada para relembrar a falecida, a ceia reúne outros comensais e um convidado de honra, um famoso ator local. 

O que se nota durante o jantar da elite cultural vienense (nesta versão, polonesa) é que, no fundo, ninguém queria estar ali. À medida em que a noite avança, estes personagens cínicos e narcisistas começam a vociferar seus temores, despeitos, reivindicações, presunções e invejas. O cardápio inclui ainda calúnias, preconceitos e indisfarçáveis trocas de farpas. Com quase cinco horas de duração, a mise-en-scène se vale de gravações de vídeo, projeções de imagens e música, incluindo uma sequência inteira de Bolero, de Ravel, e sons atonais. A ação transcorre no interior de uma impressionante caixa de vidro giratória que, ao rodar, revela outros ambientes.

Trata-se de uma obra poderosa, que escancara verdades inconvenientes sobre as ilusões da carreira artística e os artifícios, sistemas e poderes que regem o universo da arte. Na melancólica sequência final, numa asfixiante sala de música, a fogueira de vaidades queima impiedosamente a todos. Lupa pincela essa tragédia com humor amargo, engendrando uma reflexão penosa sobre as dissimulações e mentiras que enredam nossas existências.

Outra produção implacável foi Palmira (foto ao lado), do grego Nasi Voutsas e do francês Bertrand Lesca. Fábula sobre a guerra civil na Síria, cujo título leva o nome da cidade invadida pelos militantes do Estado Islâmico, o espetáculo transporta do plano político para o campo pessoal o espírito beligerante do ser humano, que parece sempre disposto a destruir e separar no lugar de criar e agregar. 

Logo no início, os clowns Lesca e Voutsas se aproximam um do outro enquanto brincam de skates. Os laços de aparente generosidade e cooperação, no entanto, mascaram ambições subterrâneas e impulsos marciais. Lentamente a relação de companheirismo se decompõe e o trágico se infiltra, com a brincadeira dando lugar a um desconcertante jogo de poder, opressão e violência psicológica. Não por acaso, em pouco mais de uma hora o palco asséptico se encontra maculado por milhares de pedaços de pratos esmagados, aqui símbolo dos templos arruinados durante a ocupação de Palmira pelo grupo radical islâmico. Há uma passagem em que um dos personagens confia um martelo para alguém da plateia. Um carismático Lesca deseja que o escolhido o entregue a ele. Um silencioso Voutsas suplica que não o faça. Determinados, ambos lutam pela atenção e controle da audiência.

De atmosfera tensa, a montagem se utiliza de poucos e pontuais recursos para corroborar a tese de que conflitos podem estourar, as emoções saírem do controle e os comportamentos se radicalizarem numa rapidez enervante. Simbolicamente, a peça mostra a batalha pelo domínio das narrativas da guerra e da representação dos papeis de vítima e agressor nessas circunstâncias. Camadas de significados emanam dessas figuras que têm a espantosa habilidade de impor violência um ao outro.

Sem consenso algum, o interessante King Size (foto ao lado) revelou-se uma nova maneira de abordar o gênero musical, com a adição de elementos do absurdo, surrealismo, vaudeville e comédia de costumes. O diretor suíço Christoph Marthaler ressignificou a configuração clássica dos musicais, promovendo uma desconstrução da linguagem cheia de códigos e parâmetros de um teatro que que combina música, dança e representação. A encenação tem repetições intencionais, andamento desacelerado e um tempo bastante singular. A trilha sonora emaranha Bach, Jackson Five, Eric Satie, Schumann e outros estilos musicais díspares. De certa forma, todas tratam do amor e suas variações.   

Um quarto de hotel, com uma cama enorme, é o cenário por onde circulam quatro personagens - um esquisito cantor pianista careca, um casal que mal se toca e uma senhora de atitudes excêntricas. Quem procurou linearidade na trama, um fio condutor lógico, conexões entre uma coisa e outra e personagens óbvios se perdeu. Vagamente temos a história de um homem e uma mulher que tentam dormir, que sonham ou não e que começam a cantar sem propósito visível. Situações esdrúxulas acontecem a cada minuto. A senhora escala um banco e se esforça um bocado para pegar algo na parede que nunca saberemos de que se trata. Do interior de uma bolsa sai espaguete. Uma geladeira está situada acima da porta do armário, numa altura que dificulta se apanhar uma bebida. Uma mulher canta debaixo da cama.

Nada disso faz nexo, claro, mas o que é apresentado agrada e diverte. O elenco interpreta bem, dança coreografias peculiares e entrega pantomimas curiosas. Talvez seja possível entendê-la como uma alegoria da incomunicabilidade humana e da busca incansável por um sentido na vida.   

Suíte nº 2 (foto ao lado), do artista francês Joris Lacoste, abriu a MITsp e dividiu opiniões. Num espaço cênico esvaziado, sem figurinos específicos, cinco atores-cantores com microfones dão voz e expressão a um espectro de documentos verbais, pesquisados e sistematizados, de diferentes lugares, contextos, situações e idiomas. O efeito é estranho, com fragmentos de comunicação que transitam do romântico ao insólito, do sinistro ao surpreendente. Sem comentários, apenas replicados, respeitando-se entonações, emoções, ritmos e articulações originais.

Em uma passagem típica de uma babel, o longo e monótono discurso de um ministro português sobre economia é entrecortado por diálogos de um vídeo pornô e a reclamação furiosa de uma cliente contra seu provedor de internet. Uma família conservadora rejeita o filho gay, um imigrante sem teto no metrô de Paris berra contra o destino, um aspirante ao terrorismo na Austrália faz ameaças. Há ainda, entre outros registros, uma aula de ginástica na televisão croata, a síncope nervosa de um participante de BBB, o texto comovente de uma atriz premiada no Oscar, o contato entre um piloto do avião e o controle de trafego aéreo, pouco antes da queda da aeronave.   

Lacoste efetiva um tributo ao poder da palavra, suas idiossincrasias e dissonâncias, um estudo sobre o comportamento humano e sua expressão por meio da linguagem verbal. Com cortes precisos em sua extensão e menos sobreposições, a direção poderia dar relevo maior a algumas falas preciosas. A criação é meticulosa, curiosa e de fácil envolvimento, porém uma mordaça que, ao cabo, não leva o assistente para outro lugar.

Em Campo Minado (foto ao lado), a diretora argentina Lola Arias recrutou ex-combatentes (três argentinos e três ingleses) que lutaram na Guerra das Malvinas, que opôs Argentina e Reino Unido em 1982 em torno do domínio da ilha, desde então sob o domínio britânico. O espetáculo soa como terapia em grupo, um retorno ao passado para compreender emocionalmente o presente. Os depoimentos são, em alguns momentos, justapostos pelos discursos do presidente argentino Leopoldo Galtieri e da primeira-Ministra Margareth Thatcher, ironicamente apresentados por meio de máscaras realistas.  

Os quase sexagenários homens revivem o processo de recrutamento, a chegada à ilha, a tensão no front de batalha, o orgulho ferido da derrota ou o sentimento vazio do triunfo, o previsível estresse pós-traumático a partir da experiência dolorosa de ter combatido em um conflito que durou dois meses e meio. Para reforçar os relatos, a diretora utiliza vídeos, imagens da época, efeitos sonoros e música ao vivo – um dos latinos virou músico de uma banda que homenageia os Beatles. 

Dois instantes são especialmente emotivos. Em uma simulação de sessão terapêutica, o agora atleta Marcelo Vallejo revisita sua biografia para David Jackson, hoje psicanalista, marcada pelo alcoolismo e consumo de drogas que quase o levaram ao suicídio. O professor Lou Armour sofre ao lembrar de um soldado inimigo que morreu em seus braços.

Os testemunhos pessoais emocionam e a direção não se propõe a promover juízos de valor ou discutir a soberania. Estruturado em capítulos, o espetáculo se mostrou menos profundo do que poderia ser. Questões como a do despreparo dos soldados argentinos e a estratégia da criação de um patriotismo tardio ficaram pela borda. O paradoxo de ser visto como herói em uma nação governada brutalmente por militares também não foi para a cena.   

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Fotos: Guto Muniz)

Teatro: Se Existe Eu Ainda Não Encontrei

Ao longo de uma hora e meia os personagens dessa peça se destroem. Basta acompanhá-los em seu desolado cotidiano para notar o vácuo em que caíram. A peça do dramaturgo inglês Nick Payne é o retrato de uma família que não é um modelo a ser seguido. Mas o comportamento disfuncional desse clã não salta à vista como um drama pesado. Entre golpes e ruídos de comunicação há espaço para o riso e alguma dose de humanidade, pulsões que encontram equilíbrio na eficiente montagem assinada por Daniel Alvim. O texto busca uma analogia, não totalmente satisfatória, entre a situação do meio ambiente no planeta e a condição de uma família tipicamente classe média, como ambos podem se atravessar e aclarar a trajetória um do outro.

Um tanto amarga e só na aparência simples, a trama reúne seres autoabsorvidos em suas rotinas e fustigados por sérias dificuldades de convívio. A isolada Anna é uma adolescente de 15 anos acima do peso, sem amigos e vítima de bullying na escola secundária. Seu pai, o compulsivo George, tornou-se um ambientalista obcecado com o aquecimento global e emissão de carbono, que não viaja de avião e está escrevendo um livro destinado a salvar o mundo. A mãe, a impotente Fiona, leciona teatro no mesmo colégio onde estuda a filha única. Os dois mantém um casamento cada vez mais estéril, mal detectam a solidão e negligenciam na educação da garota. Sem que estivesse sendo esperado, o irmão mais novo de George, o errático Terry, reaparece do nada e se instala na casa – ele está desassossegado por causa da paixão por uma mulher comprometida. Ao perceber o desastre da falta de diálogo naquele núcleo, o visitante passa a ser uma espécie de catalizador de mudanças, um sujeito capaz de despertá-los do retiro e atribuir importância aos relacionamentos interpessoais.   

A história adquire calor afetivo por meio da conexão entre os desajustados Terry e Anna. No momento em que a vulnerável menina é suspensa das aulas, após episódio de agressão física, o afetuoso tio passa a cuidar dela durante algumas semanas. Lentamente eles desenvolvem uma amizade que, de maneira sutil, comporta uma não assumida atração sexual. Não é de espantar que se aproximem, afinal, falam a mesma língua, sentem igual pesar existencial e parecem à margem da dita normalidade. No intuito de contribuir na sua função de mentor, Terry acaba trocando as mãos pelos pés, especialmente quando os pais descobrem que ele havia dado um preservativo para a adolescente usar em um encontro com um colega.

Todo o enredo transcorre em um espaço despojado, cenografia de André Cortez, forrado por objetos cênicos movimentados pelos atores permanentemente no palco - às vezes estão fora da ação, meio que camuflados da visão da plateia. A onipresença é um recurso interessante porque obriga o público a lembrar-se sempre da crise que atormenta aquelas figuras emocionalmente instáveis. Alvim faz a encenação escorrer sem percalços, propondo marcações criativas que facilitam a compreensão dos eventos e a transição entre as cenas. A direção teve o cuidado de regular a intensidade dos vínculos interpessoais com o intuito de evitar a materialização de um reles melodrama. Com isso, as explosões emocionais acontecem quase de maneira silenciosa.

O elenco funciona bem em conjunto. Na pele do desenraizado e impulsivo Terry, o ator Luciano Gatti empenha performance vigorosa, frenética e compassiva. Ele faz do tio uma pessoa solidária e de coração aberto, que propiciará à sobrinha a sensação de autoestima. É um papel que permite dar vazão a um conjunto meticuloso de expressões faciais, atitudes e sentimentos profundos, que o ator assume com desembaraço e total veracidade. Leopoldo Pacheco destila nuances na composição do gaguejante e alheio George, um acadêmico enfastiado, que no decorrer dos acontecimentos ganha consciência de sua miséria como pai e marido, embora sofra com recaídas durante a trajetória – há uma sequência em que ele decide passar algum tempo ao lado da filha, mas decide interromper o encontro para atender o telefonema de alguém. Pacheco chega a ser visceral em um monólogo de George, cujo cerne põe em dúvida a necessidade de salvação da raça humana.  

Com desempenho pungente, Helena Ranaldi ilustra a fragilidade de Fiona, uma mulher frustrada no casamento e alienada em sua própria atividade profissional. A jovem atriz Lyv Ziese revela-se uma surpresa. Sua interpretação da angustiada Anna, uma moça que não pede nada nem espera nada, é segura e crível, sem risco de cair no clichê da adolescente estridente. Ela soma vulnerabilidade e potência ao dar vida a uma garota que tem um exemplo em casa do que não fazer.    

Por meio de diálogos ágeis e precisos, o autor desdobra uma profunda compreensão do campo minado que é uma família em desalinho e míope para os problemas mútuos. Payne se safa de um juízo de valor e apenas observa. O título acaba soando cruel porque brinca com a impossibilidade da existência de uma fórmula para lidar com a vida e suas inconstâncias. A cada segundo busca-se uma saída, mesmo sem saber exatamente qual. O espetáculo é engraçado e tocante. Uma fotografia sincera da vida em marcha.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Priscila Prade)

 

Avaliação: Ótimo

 

Se Existe Eu Ainda Não Encontrei

Texto: Nick Payne

Direção: Daniel Alvim

Elenco: Helena Ranaldi, Leopoldo Pacheco, Luciano Gatti e Lyv Ziese

Estreou: 30/09/2017

Teatro Eva Herz (Conjunto Nacional – Livraria Cultura. Avenida Paulista, 2073, Jardins. Fone: 3170-4059). Sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 50. Até 10 de dezembro.

 

Modo de visualização:

Style Sitting

Fonts

Layouts

Direction

Template Widths

px  %

px  %