EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

  • Font size:
  • Decrease
  • Reset
  • Increase

Teatro: Hora Amarela

Não há indicação precisa de onde se passa a história, os propósitos do conflito que estoura nas ruas e quem são os agressores. Sabe-se que há uma guerra em curso, econômica, política ou religiosa, tanto faz, e o caos está instalado. Na trama do dramaturgo americano Adam Rapp (Inverno da Luz Vermelha), os homens são sumariamente castrados, as mulheres recebem marcação no pescoço e as crianças se tornaram mercadoria. Doenças infecciosas dizimam as populações. Ouvem-se bombas, explosões e tiros ensurdecedores. Em algum momento, é dito que os atos terroristas respondem ao comando e controle de um consórcio internacional sem identidade revelada.

Pela primeira vez montado no Brasil, com assinatura da diretora Monique Gardenberg, o texto é o tempo todo sombrio, com ares de pesadelo futurista. A ação transcorre no porão de um prédio localizado em uma cidade em estado de sítio. Logo nos primeiros minutos, um fugitivo de idioma incompreensível (Daniel Infantini) invade o local e é assassinado à queima roupa pela enfermeira Ellen (Deborah Evelyn). Ela se refugia nesse bunker mal iluminado há três meses e espera o retorno do marido, desaparecido após deixar o esconderijo em busca de suprimentos. Em situação vulnerável, acuada e de posse de uma arma, ela faz de tudo para sobreviver, alimentando-se de pêssego em conserva.  O título da peça, aliás, refere-se ao curto espaço de tempo em que a conflagração cessa e é possível uma pessoa se arriscar a sair de seus domínios para caçar água e comida.

No decorrer, a sobressaltada protagonista é surpreendida pela chegada de estranhos, assustados, inseguros e dispostos a propor barganhas. As visitas são a única forma de Ellen de saber como andam as coisas do lado de fora. Uma dessas figuras é Maude (Isabel Wilker), uma jovem mãe viciada em drogas à procura de abrigo, que carrega um bebê dentro da mochila. Entre as duas não se estabelece uma relação fácil, porque a tensão é potencializada pelos avanços sexuais de uma delas.    

Outro a despencar ali é o professor Hakim (Michel Bercovitch), tradutor de árabe, que porta notícias sobre o marido de Ellen. A descrição das torturas a que ele e outros prisioneiros foram submetidos é desfiada com detalhes angustiantes. Mais adiante, um casal misterioso, o metódico médico Michel (Michel Bercovitch) e a insensível assistente Claire (Daniele do Rosário), trazem consigo o adolescente Douglas (Darlan Cunha). O rapaz teria crescido em uma fazenda isolada e desconhece o ambiente bélico em que o mundo mergulhou. Até por conta de uma troca de seres humanos, sugere-se que a tal colônia dirigida por homens brancos pretende purificar a raça humana.   

Rapp desembrulha esse choque entre a violência do mundo exterior e os resquícios de humanidade dos que tentam resistir no espaço interior. Diálogos pontuados por humor negro afloram, como quando alguém pergunta por que um cadáver em decomposição não foi removido do lugar e a justificativa é a de que ele faz parte da decoração. O enredo, no entanto, não passa incólume a algumas inconsistências. O odor de um corpo morto que permanece o tempo todo no local não chega a incomodar? Que misteriosa organização consegue coexistir intocada num cenário banhado em guerra?

A direção de Monique Gardenberg trabalha o material de difícil digestão tentando dar o tratamento de um drama psicológico, tangenciando o registro de ficção científica que parece contaminar a peça. Não chega a consolidar o intento, mas oferece um espetáculo de tonalidade soturna, inquietante e impregnado de claustrofobia. As marcações ágeis, a alternância entre claros e escuros e a sugestiva trilha sonora que embala a narrativa favorecem a dimensão cinzenta a que estão relegados os personagens. Em sua leitura, o apartamento do texto original foi substituído pelo subterrâneo para ressaltar que o terror vem de cima, até como um desígnio de Deus. Seria uma metáfora um tanto inflada da existência humana. 

O elenco reunido se entrega ao jogo com motivação, embora nem todos exibam desempenhos calibrados. Na pele de Ellen, Deborah Evelyn realça as camadas de dor, coragem e compaixão de alguém frente a uma realidade hostil. Isabel Wilker interpreta Maude, uma figura de atitudes dúbias, navegando na superfície, sem maior interiorização. No papel de Hakim, Michel Bercovitch projeta o horror de quem vive do lado de fora. Já na criação de Michel, sua expressão gélida condiz com o nebuloso trabalho do médico que pertence a uma instituição secreta. Daniele do Rosário poderia desbastar alguns graus na composição antinatural de Claire. O adolescente de fala mansa incorporado por Darlan Cunha é construído em cima de trejeitos. Em cenas rápidas, Daniel Infantini faz com intensidade o intruso perturbado que não consegue se comunicar com Ellen.   

A montagem é efetiva no tocante aos elementos técnicos. O conjunto dá consistência à linguagem articulada pela direção e contribui decisivamente para adensar a carga de estresse da história. Daniela Thomas e Camila Schmidt traduziram o universo claustrofóbico por meio de uma caixa cênica retangular de teto rebaixado, povoada por móveis justapostos e uma banheira. A iluminação de Maneco Quinderé preenche o ambiente com faixas de luz originadas de várias fontes – em algumas passagens, os personagens usam lanternas para se locomoverem. Lourenço Rebetez elaborou uma trilha sonora que comenta e ilustra a ação. Os figurinos de Cássio Brasil evitam concessões fáceis.   

O público não deve esperar um espetáculo ameno. Na cética visão do autor, a humanidade pode estar caminhando para a extinção. É possível intuir que Rapp fala sobre a paranóia que se abateu sobre os Estados Unidos pós-11 de Setembro, o crescimento do fanatismo religioso ou sobre as recentes rebeliões político-sociais eclodidas em certos pontos do planeta. O que importa, na verdade, são os efeitos e as conseqüências do conflito em cada pessoa. Numa visão menos apocalíptica, a peça expõe os medos contemporâneos de nossa sociedade, que não são poucos.   

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(foto Divulgação)

 

Avaliação: Bom

 

Hora Amarela

Texto: Adam Rapp

Direção: Monique Gardenberg

Elenco: Deborah Evelyn, Isabel Wilker, Michel Bercovitch e outros.

Estreou: 20/02/2015

Sesc Bom Retiro (Alameda Nothmann, 185,  Bom Retiro. Fone: 3332-3600). Quinta e sexta, 20h; sábado, 19h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 30. Até 29 de março.

 

Comente este artigo!

Modo de visualização:

Style Sitting

Fonts

Layouts

Direction

Template Widths

px  %

px  %