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Teatro: Inferno - Um Interlúdio Expressionista

É uma dramaturgia temperada por situações extremas e personagens no limite. Escrita pelo dramaturgo americano Tennessee Williams (1911-1983) aos 27 anos, que se inspirou em um caso real na época, a peça permaneceu no limbo até a atriz britânica Vanessa Redgrave ressuscitá-la em 1998, enquanto pesquisava um texto diferente do autor – no ano seguinte, uma versão teatral estreou na Broadway e colheu seis indicações ao prestigiado Tony. Trata-se de uma criação mais política e menos lírica em comparação aos seus trabalhos posteriores como, por exemplo, À Margem da Vida (1944) e Gata em Teto de Zinco Quente (1958).

Sob direção de André Garolli, a surpreendente montagem de Not About Nightingales (Nada Sobre Rouxinóis) pela Cia Triptal alavanca uma história que transcorre em uma prisão instalada na península da Pensilvânia, de fuga considerada impossível. Crua, áspera e chocante, a trama explode a partir de uma greve de fome dos reclusos, que reclamam das duras condições de vida no local e da péssima alimentação servida. O protesto veemente tem como alvo um sistema de encarceramento abusivo que há muito abandonou qualquer pretensão de reabilitação social.

Nesse universo angustiante, algumas criaturas sobressaem. Butch é o autodeclarado líder dos revoltosos, um sujeito que sonha estar sendo aguardado por uma garota do lado de fora. Apelidado de canário, e odiado pelos demais cativos, o presidiário Jim atua no escritório da direção e relata o que está acontecendo no interior do pavilhão, além de redigir artigos para a revista da penitenciária. Há ainda a recém-contratada secretária Eva, que precisa de qualquer jeito do emprego naqueles tempos bicudos de depressão econômica, e o bestializado diretor Whalen, que assedia a nova colaboradora ao mesmo tempo em que tenta quebrar o movimento rebelde ameaçando-o com um castigo terrível. No caso, confiná-los no Klondike, localizado nas entranhas da cadeia, uma caldeira superaquecida que assa corpos a uma temperatura de até 150 graus. Uma punição que antecipa as temíveis câmeras de gás do Holocausto. Num sarcasmo intencional, o nome batiza uma das regiões mais geladas do Canadá.   

A direção manipula com perícia os elementos desse drama vigoroso e expressionista, instituindo uma gama de movimentos estilizados precisos e marcações convincentes o suficiente para levar o enredo adiante, mantendo o interesse do público até o desfecho. Em uma cena referencial ao cinema de Lars von Trier (O Anticristo) e Roman Polanski (Repulsa ao Sexo), a funcionária roda por braços estendidos das celas e, em outra passagem, é apalpada por diversas mãos, um delírio que transmite a sensação aterrorizante que ela vivencia. Nesta sala pequena, sentado na borda do espaço cênico, o espectador parece sentir cada pontapé e os golpes atrozes desferidos entre os detentos amontoados, os guardas e o diretor.

Os protagonistas projetam performances nítidas e detalhadas. No papel da desiludida e indignada Eva, a atriz Camila dos Anjos despeja paixão sincera e contida. Athos Magno mostra empatia na composição de Jim, o preso autodidata e um potencial poeta que sabe ter feito um acordo com o diabo para se salvar, às vésperas de conquistar a ansiada liberdade condicional. Atraídos um pelo outro, Eva e Jim estão submetidos ao abuso físico e emocional pelo superior Whalen, um corrupto que faz o que quer quando quer. Um fulano capaz de alternadamente acariciar um patinho de brinquedo, que planeja dar à filha, e açoitar um amotinado empunhando uma mangueira de borracha. Fabrício Pietro injeta intensidade e repugnância à essa alma maligna. Com força e gana, Fernando Vieira interpreta o ameaçador líder Butch, de inteligência acima da média entre os seus colegas, um cara que oscila entre a compaixão e a frieza. Simone Rebequi exibe determinação no desempenho de uma mãe perturbada e financeiramente desesperada.

Selecionados para o projeto Homens à Deriva, pilotado por Garolli, jovens intérpretes personificam os condenados, uma trupe de desajustados e outsiders que representam várias etnias, credos e preferências. Jhonathan Hoz encarna um enclausurado negro evangélico, que morre na solitária. Wes Machado é um delicado homossexual que se preocupa com suas unhas e traz a cultura gay para dentro de um ambiente eminentemente masculino. Alan Recoba vive um ex-atleta olímpico encarcerado por uma acusação violenta, que encontra seu fim trágico. Lucas Guerini dá vida a um marinheiro que enlouquece no xadrez e é severamente torturado. Com poucas ou nenhuma fala, Guilherme Maia, Rafaelly Vianna e Fernanda Otaviano, entre outros, completam o grupo dos aprisionados, todos entregando desempenhos apaixonados.

A cenografia, assinada por Garolli e César Rezende, destaca o bloco de cadeiras que, num design criativo, desenham tanto a masmorra quanto a solitária. Um andaime revestido de cortina transparente ilustra a apavorante sauna a vapor Klondike, um dos momentos mais dolorosos do espetáculo. Aline Santini engendrou um tipo de iluminação que captura o crepúsculo perpétuo do cárcere, lançando mais sombras do que luz ao ambiente.

Com viés de uma poesia de sarjeta e espécimes cínicos e miseráveis, a obra transborda uma realidade de opressão e luta, um contexto de descontrole que exige uma resposta radical. A violência deflagrada não chega a ser revolucionária, mas uma necessidade de autodefesa frente a um cenário concreto de um genocídio em marcha. O texto adianta temas que Tennessee Williams defenderia mais adiante em suas produções, como a intolerância humana, abusos sexuais, a ruína das relações familiares, homossexualidade, o sentimento de culpa do indivíduo, a pequenez da sociedade norte-americana vista por meio do microcosmo de uma situação. Ele esbanja maestria na concepção de seres mentalmente frágeis, que vê na rebelião uma tentativa desesperada de romper a solidão. É recorrente em suas narrativas a presença de figuras femininas traumatizadas à mercê de homens irracionais. No clássico Um Bonde Chamado Desejo (1947), a decadente Blanche travava um embate psicológico extenuante com o machão Stanley. Aqui, Eva se vê psicologicamente subjugada por Whalen.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Alexandre Inserra)

 

Avaliação: Bom

 

Inferno - Um Interlúdio Expressionista

Texto: Tennessee Williams

Direção: André Garolli

Elenco: Camila dos Anjos, Fernando Vieira, Fabrício Pietro, Athos Magno e outros.

Estreou: 30/08/2019

Espaço Cia da Revista (Alameda Nothmann, 1135, Campos Elíseos. Fone: 3791-5200). Terça a quinta, 20h. Entrada gratuita. Em cartaz até 31 de outubro.

Teatro: Lazarus

É uma estranha viagem estética, musical e dramática, o epitáfio artístico e existencial do cantor e compositor britânico David Bowie (1947-2016). Nesta produção, ele revisita o alienígena que encarnou na icônica ficção científica O Homem Que Caiu na Terra (1976), de Nicholas Roeg, levada às telas a partir do livro homônimo de Walter Tevis (1963). Situada décadas depois, o extraterrestre tornou-se um ser deprimido e alcoólatra, que vive recluso em seu apartamento, refugiado de um mundo que não compreende direito.

Com alicerce narrativo nada óbvio e linear, uma singularidade se comparado aos tradicionais musicais americanos, o que Bowie escreveu em parceria com o dramaturgo irlandês Enda Walsh é uma sequência do longa-metragem. A espinha dorsal do enredo, que não se preocupa em fornecer pistas e informações do que aconteceu no passado, é a tentativa do forasteiro de deixar a sua existência terrena e retornar ao seu planeta de origem, de forma literal (via foguete) ou simbólica (pela morte). Empresário de sucesso na Terra, hoje Thomas Jerome Newton está à beira da insanidade, assombrado por vozes reais ou imaginárias, delírios sobre sua família distante e fantasias de um romance perdido.  

A obra ganhou a sua primeira montagem brasileira, assinada por Felipe Hirsch, nome consolidado no cenário teatral brasileiro. Engana-se quem espera um passatempo digestivo. Trata-se de um trabalho labiríntico, porque concebido por um artesão iconoclasta e camaleônico, responsável por um influente legado sonoro, que foi moldado conforme as suas aspirações estéticas no momento da criação. Bowie o concebeu durante o período em que lidava com uma doença terminal. É este produto sinuoso, onírico, encharcado de energia selvagem e melancolia que avulta no espaço cênico. Na trama, um amargo humanoide (papel de Jesuita Barbosa), presumivelmente imortal, sobrevive à base de doses de gim e sitiado por figuras realistas e espectrais. Entre outras, a acompanhante Elly (Carla Salle), que se apaixona por ele e tenta substituir a musa do seu passado, uma garota sem nome (Bruna Guerin) e o enigmático Valentine (Rafael Losso), indivíduo de temperamento perturbador e propensão à violência.       

Com atmosfera opressiva, adensada por um jogo de imagens duplicadas, a encenação evidencia a sensação de apatia e isolamento que acomete um personagem existencialmente à deriva. Esse estado de deslocamento propaga-se por meio de sequências fragmentárias e estilhaçadas, embaladas por um conjunto de dezoito canções de Bowie, que transcendem o estereótipo de signos dramáticos e despertam percepções lisérgicas. A trilha inclui hits conhecidos como Changes e Life on Mars? e composições especialmente desenvolvidas para o espetáculo, exemplos de Killing a Little Time e When I Meet You. Executadas integralmente ou apresentadas como interlúdios ao longo da representação.      

Na direção, Hirsch enfrenta o desafio de dar sentido à natureza kafkiana do texto. Sem falsear a matéria prima, deixa que o conteúdo se expresse sem amarras e instaura uma espécie de imersão, capturando o espectador com estímulos visuais e auditivos. Ele recupera de outra empreitada que dirigiu, Pterodátilos (2010), o procedimento de usar sobre o palco uma plataforma móvel, que produz inclinações diferentes e desestabiliza a movimentação dos atores. O desequilíbrio provocado, além de ilustrar a ideia da gravidade, serve para simbolizar o ziguezague emocional daquelas criaturas em cena. Hirsch reuniu um elenco que se entrega com naturalidade a uma mis-em-scène intensa e expressionista, capaz de entonar com vigor as sofisticadas partituras. 

Jesuita Barbosa consegue sem esforço nítido extrair do homem que quer deixar a humanidade o sentimento de prostração e indiferença de alguém que contempla o fim da vida – o nome do personagem central, aliás, faz referência ao bíblico Lázaro que, segundo a Bíblia, estava morto e foi ressuscitado por Jesus. Enfática e convincente, Bruna Guerin materializa as figuras femininas relacionadas de alguma forma à história do estrangeiro, possivelmente frutos de sua psique delirante. A interpretação que a atriz concede à melodiosa Life on Mars? cativa a plateia. Carla Salle presta-se muito bem ao papel da confusa Elly, dividida entre a relativa estabilidade de seu casamento sem amor com Zach (Vitor Vieira, em performance correta) e o fascínio exótico por Newton. Rafael Losso defende-se a contento na pele de um sinistro agente da morte, talvez o id do protagonista – o seu desejo inconsciente de autodestruição.    

O cenário de Daniela Thomas e Felipe Tassara, com destaque para um espelho gigante ao fundo, tem sintonia com o ambiente de sonho, imaginação e excentricidade. As sugestivas projeções de vídeos e retratos futuristas, de acento irônico, se sobrepõem e se fundem com a ação física. Maria Beraldo e Mariá Portugal assinam a direção musical. A dupla investe em releituras e arranjos personalizados, compondo uma hipnótica paisagem sonora.   

Não é uma peça imune a impasses. Os diálogos, por exemplo, nem sempre estão à altura dos temas complexos ali embutidos. Nota-se certa assimetria entre a exaltação extravagante da arte de Bowie e o senso de diversão, gerando uma (equivocada) impressão de monotonia. E os números musicais muitas vezes brotam sem razão alguma aparente. São embaraços, no entanto, que não profanam um ensaio que empina uma visão especial da mente criativa do artista. Lazarus é uma envolvente meditação sobre a vacuidade da existência, o poder retilíneo do amor e a fragilidade da experiência humana. Uma obra com ares de fábula, estranhamente sedutora em torno da angústia da imortalidade.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Flávia Canavarro)

 

Avaliação: Ótimo

 

Lazarus

Texto: David Bowie e Enda Walsh

Direção: Felipe Hirsch

Elenco: Jesuita Barbosa, Bruna Guerin, Carla Salle, Rafael Losso, Vitor Vieira e outros.

Teatro Unimed (Alameda Santos, 2159, Cerqueira César). Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 80 a R$ 180. Até 27 de outubro.

Estreou: 22/08/2019

 

Teatro: Chaves - Um Tributo Musical

Embalada em riso incessante, com personagens atrapalhados e cheios de trejeitos, a peça presta homenagem ao legado artístico do dramaturgo mexicano Roberto Gómez Bolaños (1929-2014). Ele é inventor do emblemático Chaves, seriado que se transformou em fenômeno cult e há mais de três décadas emplaca carreira na televisão brasileira. Escrita pela diretora musical Fernanda Maia, a história da famosa vila no subúrbio e seus moradores pobres e remediados sobe aos palcos em versão musical e linguagem circense - a autora decidiu, inclusive, reverenciar o circo nacional ao colocar em cena a figura de Benjamim de Oliveira (1870-1954), o primeiro palhaço negro do Brasil.   

Com direção de Zé Henrique de Paula, a montagem começa quando Bolaños, mais conhecido por Chespirito (Pequeno Shakespeare), está morto e não consegue passaporte para entrar no céu dos palhaços, justamente por não estar trajado a caráter nem portar o nariz de bola, mas roupas comuns. Alguém assim seria capaz de fazer o público rir? Por conta disso, uma excursão à Terra é organizada para tentar averiguar a veracidade do que fala Chespirito. O comboio, capitaneado pelo palhaço Dr. Zambeta e seu assistente Formiga, desembarca no planeta e será encaminhado pelo comediante aos bastidores do programa que ele idealizou e caiu no gosto popular. No espetáculo, Chaves ganhou registro um tanto melancólico, porém sem perder o dom de se embaraçar à toa. Ele é um menino pobre e órfão, sempre com fome e alvo da desconfiança da turma que o rodeia. O perfil juvenil e a condição social do personagem chegam a ser questionados na peça. Como é possível produzir humor em torno de uma criança naquela situação de vulnerabilidade?

O diretor conduz a ação sem perder o equilíbrio, assinando um trabalho ao mesmo tempo comovente e engraçado. Extraiu bom rendimento do elenco homogêneo de dezessete atores. No papel de Chaves, o ator Mateus Ribeiro vence o desafio de retratar as várias facetas do moleque que vive da caridade dos outros, mesclando encanto e uma vaga tristeza. Carol Costa compõe com graça a malcriada Chiquinha. Diego Velloso mostra talento na construção do garoto bochechudo Quico. A experiente Andrezza Massei está impagável na pele da vaidosa Dona Clotilde, a “bruxa do 71”. Eficiente, André Pottes dá vida ao Seu Madruga, o pai de família consumido pela preguiça, sempre às turras com a viúva Dona Florinda, encarnada de forma convincente por Maria Clara Manesco. Patrick Amstalden desempenha com desenvoltura o culto professor Girafales, especialmente na sequência que transcorre na escola. Ettore Veríssimo exibe energia na criação de Nhonho e do burguês gordo Sr. Barriga, dono de todas as casas do lugarejo – em uma passagem hilária, o rico proprietário interrompe uma tentativa de sedução para cobrar o aluguel atrasado de um dos moradores.                                                                                                                                              

Na trupe circense, Fabiano Augusto imprime sinceridade e cativa na interpretação de Chespirito. Ele emociona a audiência ao cantar um poema que Bolaños havia composto para a sua mulher na vida real, Florinda Meza, aqui musicado pela primeira vez. Em outro momento, criador e criatura se encontram e ativam diálogo tocante. Com performance segura, Milton Filho faz o líder do Palhacéu. Completam o time dos arlequins, transpirando desempenhos solares, Dante Paccola (Dr. Zambeta), Davi Novaes (Tufo), Larissa Landim (Patinete), Lucas Drummond (Tatuzinho), Marcelo Vasquez (Formiga), Nay Fernandes (Paçoquinha) e Thiago Carreira (Wladimir).

Na direção musical, Fernanda Maia concebeu trilha sonora à base de canções clássicas, exemplos de Aí vem o Chaves, Se você é jovem ainda e Que Bonita Vizinhança, e composições originais, executadas pela banda de seis músicos sob a regência de Rafa Miranda. Tanto o corredor para entrada no céu, quanto a vila e a escolinha do Professor Girafales foram delineados de maneira inventiva pelos cenógrafos Eron Reigota e Bruno Anselmo. A arquitetura cênica é realçada pela minuciosa iluminação de Fran Barros. Fábio Namatame mergulhou em pesquisa detalhista para figurinos e visagismos. As coreografias, de Gabriel Malo, são bem assimiladas por todo o conjunto de intérpretes. Chaves é um musical povoado por criaturas que não são heróis nem anti-heróis e exala um tipo de humor aparentemente tosco, que bebe na mesma fonte de Chaplin, Os Três Patetas e O Gordo e o Magro.

(Vinicio Angelici – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Rafael Beck)

 

Avaliação: Ótimo

 

Chaves – Um Tributo Musical

Texto: Fernanda Maia

Direção: Zé Henrique de Paula

Elenco: Fabiano Augusto, Mateus Ribeiro, Carol Costa, Diego Velloso, Patrick Amstalden e outros.

Estreou: 23/08/2019

Teatro Opus (Shopping Villa Lobos – Avenida das Nações Unidas, 4.777, Alto de Pinheiros. Fone: 3515-6650). Sexta, 21h, sábado, 16h e 20h; domingo, 15h e 19h. Ingressos: R$ 75 a R$ 140. Em cartaz até 20 de outubro.  

Teatro: Hedda Gabler

A aristocrática, temperamental e impulsiva Hedda se encontra no limite. Presa em um casamento burguês do século 19, está fora do tempo e do lugar, num mundo de primazia masculina. Como não pode suportar o projeto de uma vida sem luxo, ela trocou uma possível liberdade pela segurança conjugal, mesmo considerando-a maçante. E para piorar as coisas, é capaz de cavar seu próprio buraco e se afogar, arrastando junto todo o seu entorno.

A Não Companhia de Teatro encena essa obra do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) sem mergulhar profundamente no drama. Opta por uma estudada leveza, talvez mais até do que o necessário, sem comprometer a força e essência da peça. Dirigida por Márcio Macena, a trama se inicia após o fim da lua de mel de Hedda (Mel Lisboa) com seu marido Tesman (Dudu Pelizzari). Ele desfruta de uma bolsa de estudos da Universidade e aproveitou os seis meses da viagem de núpcias para desenvolver suas pesquisas. Por sua vez, ela se mostra desinteressada pelos estudos do companheiro, embora torça para que uma ansiada promoção aconteça para ele e ambos possam se estabilizar economicamente.   

O que agrava o cotidiano dessa fêmea dissimulada é a existência de pessoas perdidas que integram o seu círculo afetivo mais íntimo. Esquivo e narcisista, o marido é uma espécie de fóssil erudito, mais afeito aos livros que aos tormentos da sua esposa. O ex-amante dela, Lovborg (Rafael Maia), personifica o intelectual talentoso e meio autodestrutivo, com quem manteve uma relação presumivelmente abusiva no passado. Hoje ele se tornou um potencial rival para a cátedra de Tesman e recebe auxílio em seu trabalho da doce e passiva Thea Elvsted (Carol Carreiro), que Hedda trata com fingida simpatia. Há ainda o juiz Brack (Samuel de Assis), sujeito sarcástico e ladino, disposto a consumir carne e espírito da protagonista. Finalmente Berte (Yael Pecarovich), a enigmática empregada que a tudo acompanha com ares de desconfiança.            

A peça cheia de sutilezas, encharcada de camadas psicológicas e sociais, escancara um estilo de vida civilizado e sofisticado tão impossível de permanecer em pé que não demora a desmoronar. Porque Hedda, que não tem para onde ir e mal consegue disfarçar seu sentimento de naufrágio, exercitará seu poder, com trágicas implicações e consequências. Observa-se, aliás, algo libertador em seus atos. Um par de pistolas, herança de seu pai general, e o sumiço de um essencial manuscrito, serão elementos fundamentais na cascata de acontecimentos no palco.          

O diretor Márcio Macena ignora firulas, sublinha a atemporalidade do enredo e aporta energia no rendimento dos atores. Busca valorizar a palavra, a ironia dos diálogos e desenha marcações que asseguram o ritmo uniforme do espetáculo. Mesmo o público familiarizado com a história poderá ser capturado pela tensão subjacente em cena.

Sem performances arrebatadoras, mas com entusiasmo e energia de sobra, o elenco coeso emana as complexidades e contradições da instigante dramaturgia de Ibsen. Mel Lisboa incorpora Hedda, evocando tanto a altivez quanto a vulnerabilidade dessa madame entediada e caprichosa, que trata o marido com nítido desdém e desprezo. A atriz transmite a natureza peçonhenta da personagem, cruel em seus comentários e exímia na arte da manipulação.   

O crédulo Tesman ganha consistência no desempenho de Dudu Pelizzari. Ele encarna esse fulano ao mesmo tempo ambicioso e frágil, bem-intencionado e carinhoso com a mimada Hedda, embora alheio ao descontentamento dela. Samuel de Assis interpreta o juiz Brack, um indivíduo calculista e de modos desleixados, que parece se divertir ao proferir insinuações lascivas e buscar o controle da situação. Na composição de Lovborg, vítima dos desejos de Hedda, o ator Rafael Maia projeta segurança e naturalidade. Carol Carreiro constrói Thea Elvsted com fisicalidade tímida e nervosa. É convincente no retrato dessa mulher determinada, que deixou o matrimônio para trabalhar com Lovborg e vira presa fácil de Hedda. Um tipo intrigante, testemunha silenciosa dos eventos em curso, a empregada Berte é vivida com desembaraço e humor pontual por Yael Pecarovich. A cenografia de Macena e Morena Carvalho, com caixotes e cortinas, os figurinos de Macena e Carol Badra, de feições de época, e a iluminação climática de César Pivetti e Vânia Jaconis contribuem para endossar as qualidades da produção.

É interessante notar como mais de um século depois a condição da personagem-central não perdeu atualidade. Mulheres aprisionadas em relacionamentos sem amor, reféns de convenções sociais, são mais comuns do que se pode imaginar. O retrato de uma sociedade de classe média no século XIX desdobra-se no tempo e não amarela. Na dramaturgia de Ibsen, que vai à raiz da questão, são sempre os homens que detém a ascendência e domínio enquanto o sexo feminino vaga à procura de seu espaço no mundo.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Guto Garrote)

 

Avaliação: Bom 

 

Hedda Gabler

Texto: Ibsen

Direção: Márcio Macena

Elenco: Mel Lisboa, Dudu Pelizzari, Samuel de Assis, Rafael Maia, Carol Carreiro e Yael Pecarovich.

Estreou: 14/6/2019

Espaço Parlapatões (Praça Roosevelt, 158, Centro. Fone: 3258-4449). Sexta e sábado, 21h; domingo, 20h. Ingresso: R$ 50. Em cartaz até 28 de julho. 

Teatro: Chernobyl

Foi o mais grave desastre tecnológico do século XX. No dia 26 de abril de 1986, uma sequência de explosões devastou um reator nuclear da central elétrica de Chernobyl, no norte da Ucrânia. Uma gigantesca nuvem de partículas radioativas se formou e se alastrou na atmosfera de boa parte da Europa, provocando mortes e doenças no decorrer dos anos seguintes. Em poucos dias, a cidade de Pripyat, inaugurada em 1970 para abrigar trabalhadores da usina e suas famílias, teve que ser evacuada às pressas. 

A catástrofe virou tema teatral em 2017 pelas mãos da dramaturga francesa Florence Valéro, nascida no mesmo ano da tragédia e hoje um dos nomes mais importantes do teatro e do cinema contemporâneo francês. E chegou aos palcos brasileiros em uma atraente montagem assinada por Bruno Perillo, com elenco formado pelas atrizes Carolina Haddad, Joana Dória, Manuela Afonso e Nicole Cordery.

Sem escorregar no didatismo e ao largo da intenção documental, o texto não reconta a calamidade, já revisitada e esmiuçada em livros, séries televisivas e reportagens. Busca privilegiar os desdobramentos do evento por meio da trajetória de uma família residente no entorno, que, indefesa, se vê forçada a abandonar sua casa, sem tempo de organizar e levar os seus pertences. Todo o processo que culmina no longo exílio desse núcleo familiar é acompanhado pelos olhos de uma boneca narradora, que pertence à filha pequena e tem lucidez e discernimento suficientes para compreender a magnitude dos acontecimentos – a autora pode ter se inspirado em centenas de fotografias de residências esvaziadas, muitas delas estampando bonecas largadas no chão. 

Com altitude poética e refúgio na fábula, a obra fisga o espectador e o faz submergir no horror da situação. O envolvimento da audiência não transcorre apenas pela relevância histórica do que sucedeu décadas atrás na União Soviética. A direção estilizada implementa uma linguagem cênica próxima do público moderno. Intérpretes e personagens dialogam, narram, veiculam ideias e expressam seus pensamentos, num emaranhado surpreendente de vozes. Cenas são pulverizadas. Há um movimento quase incessante e todo o ambiente cênico é preenchido de maneira engenhosa. A proposta de esgueirar-se da abordagem burocrática, em harmonia com a dramaturgia de alicerce fragmentário, concede dinamismo, vitalidade e energia à montagem. É uma criação que se conecta com a estética cinematográfica e seus signos característicos, como a dilatação e contração do tempo, o domínio do espaço, as imagens que priorizam o detalhe e constroem intimidade.             

A encenação sem ornamentos desnecessários, que nunca perde o equilíbrio e jamais procura assumir o primeiro plano, se nutre ainda de depoimentos colhidos no livro Vozes de Tchernóbil (2015), da premiada escritora e jornalista ucraniana Svetlana Aleksiévitch. Os relatos de pessoas que viveram o infortúnio de Chernobyl e sentiram na pele a violência do acontecido foram inseridos de maneira genuína e sensível. São histórias que potencializam o estofo dramático e emprestam à narrativa uma brutalidade às vezes chocante, empática e sempre eloquente. Como o testemunho da mulher grávida de um bombeiro destacado para trabalhar no reator explodido, que morreu contaminado e seu corpo foi hermeticamente embalado em saco plástico. Outra diz que “nós éramos educados a entender que o perigo só poderia vir da guerra e aqui nos disseram que era um incêndio comum. Mentira! Chernobyl foi a minha guerra.”

A trupe reunida mostra coesão e sintonia fina, oferecendo performances bem trabalhadas e expressivas. As quatro afiadas atrizes incumbem-se de encarnar nove personagens, entre eles um empregado do parque de diversões, soldado, a boneca, pai, mãe e um casal de filhos. Não há protagonismo, ninguém destoa. Carolina, Joana, Manuela e Nicole, ora usando máscaras antigás, sublinham as tensões e dão consistência ao desenvolvimento da representação. A equipe técnica contribui à altura. Projeções de luz e sombras, por exemplo, chegam a esculpir na parede o interior de um ônibus que transporta os moradores do local afetado e também ilustram o conto infantil de uma baleia de olhos dourados – a eficiente arquitetura de iluminação leva a assinatura de Grissel Pinguillem. A cenografia, com suas caixas de múltiplos usos, e os figurinos, à base de calças e casacos funcionais, são de Chris Aizner e servem adequadamente à mise-en-scène. A trilha sonora de Pedro Semeghini, uma textura melódica e de ruídos, pontua e tonifica a ação.

Permeado por símbolos e um desejo claro de ecoar a atualidade do assunto, o espetáculo alavanca outras discussões a partir da sua espinha dorsal. Ele também é uma reflexão sobre o desenraizamento e o aniquilamento de hábitos e valores. O caos de Chernobyl obrigou uma população inteira a se deslocar para outras geografias, sem poder voltar para seus lares. Memória e tradição foram vilipendiadas. O mesmo se processa com povos que precisam fugir de suas terras de origem por causa de guerras, da miséria e desgraças ambientais. Incômoda, a peça confronta a plateia com os custos humanos do progresso e da civilização. E faz pensar no tipo de sociedade que somos e estamos construindo.  O terrível acidente nuclear não apenas matou e gerou patologias. Arruinou emocionalmente a vida de adultos e crianças. Estas deixaram para trás seus brinquedos e suas infâncias.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Guy Pichard)

 

Avaliação: Ótimo

 

Chernobyl

Texto: Florence Valéro (com excertos do livro Vozes de Tchernobyl, de Svetlana Aleksiévitch)

Direção: Bruno Perillo

Elenco: Carolina Haddad, Joana Dória, Manuela Afonso e Nicole Cordery.

Estreou: 09/09/2019

Sesc Consolação – Espaço Beta (Rua Doutor Vila Nova, 245, Vila Buarque. Fone: 3234-3000). Segunda e terça, 20h. Ingresso: R$ 20. Em cartaz até o dia 22 de outubro. 

Teatro: As Comadres

Questões como a repressão e a depreciação das demandas femininas, bem como as ilusões e as frustrações de uma classe média contaminada por moralismos, fantasias e invejas são assuntos que encorpam esta inspirada montagem assinada pela mítica diretora francesa Ariane Mnouchkine, a célebre fundadora da companhia Théatre Du Soleil.

Escrita pelo dramaturgo canadense Michel Tremblay em 1965, é tida como marco inicial do teatro canadense contemporâneo em língua francesa. Colecionou elogios e foi considerada revolucionária ao colocar em cena não só mulheres da camada trabalhadora falando em dialeto popular "vulgar" como alavancando temas do universo das classes baixas. A trama se passa na província canadense de Quebec, de idioma francês, que, na época, buscava afirmar a sua identidade cultural - até então as peças eram escritas em inglês e apresentavam maneirismos britânicos.

A protagonista é a dona de casa suburbana Germana, que ganha um milhão de selos promocionais trocáveis por uma variedade de produtos. É a chance de decorar a sua casa e mudar o padrão de vida. Para dar conta da hercúlea tarefa de colar esse volume de adesivos, ela decide convocar catorze amigas, vizinhas e parentes, as tais comadres do título. Rapidamente o encontro vira uma espécie de sessão coletiva de psicanálise, na qual elas compartilham ressentimentos, sonhos e idiossincrasias, ao mesmo tempo em que cobiçam a sorte da anfitriã.

Se o caráter transgressivo que tanto incomodou na estreia se desidratou ao longo do tempo, ainda hoje subsistem sociedades movidas pelo patriarcado e mulheres insatisfeitas com sua condição subalterna de passar roupa, cuidar dos filhos, lidar com maridos opressores e não poderem se divorciar. Exatamente como mostra este envolvente texto. Aqui, o conjunto feminino expõe seus dramas pessoais por meio de monólogos e solos musicais. Uma delas, por exemplo, frequenta escondida clube noturno e outra disfarça gravidez indesejada. O interesse para a plateia reside justamente nas relações reveladas e desenvolvidas durante a animada algazarra na residência da personagem central.

Dinâmico, fluído e vertiginoso, o espetáculo desperta a atenção com alguma facilidade. Pela primeira vez trabalhando fora da França, e com atrizes brasileiras, Ariane reproduz em parte a feição e a essência da encenação do dramaturgo e diretor René Richard Cyr (2010) - certamente é a razão de ela constar como supervisora na ficha técnica. Nesta produção, a encenadora recorre à alguns elementos observados em suas criações, como a concentração emocional no palco. 

O numeroso elenco reúne vinte atrizes, que se reveza pelos quinze papéis, proporcionando novas leituras para os espectadores dispostos a assistir mais de uma vez. A trupe feminina apresenta desempenho uniforme, com destaques individuais. Janaína Azevedo tem forte presença cênica, voz potente e encanta como a protagonista Germana. Apenas com participações esporádicas durante a temporada, Laila Garin revela delicadeza na pele de uma mulher tímida e solitária que se apaixona por um vendedor ambulante de escovas. Iza Eirado rouba a cena como Mariângela, a vizinha invejosa. Primeira visitante a chegar, faz seu discurso com muita graça e logo conquista a audiência. Em uma passagem hilária, na pele de Ivete, a carismática Sirléia Aleixo interpreta uma canção que relaciona os nomes das dezenas de convidados presentes à festa de casamento de sua filha, com direito a bis. Ana Achcar diverte como Lisette, uma figura metida a rica e viajada. Pietra, a irmã caçula da felizarda, é encarnada de maneira convincente por Júlia Marine. Paradoxalmente, a personagem, criticada pelas demais pelo estilo de vida obsceno, acaba sendo a única a dar a mão à Germana no desfecho. Juliana Carneiro da Cunha (Gabriela) e Fabiana de Mello e Souza (Romilda) exibem boas performances.

O cenário original de Jean Bard, que recria uma estilizada cozinha, foi realizado e adaptado no Brasil por Mina Quental, com destaque para uma geladeira Frigidaire típica da década de 1960. Tiago Ribeiro criou figurinos interessantes e coloridos, que caracterizam um visual de registro suburbano. Com direção musical competente de Wladimir Pinheiro, três exímios músicos (piano, percussão e baixo) dão conta da trilha sonora.

O autor desconstrói a noção da família idealizada, uma vez que elas vivem sob máscaras sociais. Explicita a inserção do capitalismo selvagem no cotidiano, por meio da cultura de fidelização, recompensas e promessas de enriquecimento rápido. Desnuda o poder da Igreja Católica - elas ajoelham ao ouvir diariamente missa pela rádio. Mostra a hipocrisia da fé católica pois, apesar de pregarem amor e generosidade, elas entregam-se ao exercício de falar mal umas das outras, reprovando mães solteiras, idosos, quem burlou costumes sexuais. Nesta mistura de drama e comédia, as moças e senhoras ali amontoadas cobiçam os selos e chegam a roubá-los, porque não suportam a ideia de que uma delas possa sobressair financeiramente dentro da comunidade.

(Vinicio Angelici - O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Lina Sumizono)

 

Avaliação: Ótimo

 

Texto: René Richard Cyr

Direção: Ariane Mnouchkine  

Elenco: Juliana Carneiro da Cunha, Janaína Azevedo, Laila Garin, Iza Eirado, Sirléia Aleixo, Fabiana de Mello e Souza e outras.

Estreou: 05/07/2019

Sesc Consolação (Rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque. Fone: 3324-3000). Quarta a sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 14 a R$ 40. Em cartaz até 28 de julho.

Teatro: Eu/Telma

O espetáculo transpira um emocionante tributo ao pai da atriz, falecido em 2013. Apinhado de influências e impressões, o trabalho de Nicole Marangoni tem como ponto de início uma experiência particular, que passa a ganhar cores e feições universais conforme o enredo se desenvolve. Como a morte de um ente querido ecoa na mente e no coração de uma pessoa, que terá de lidar com o sofrimento do luto? O solo ignora a tentação de querer sumariar os eventos que culminaram na doença fatal. Há uma busca, não realista, mas subjetiva. O material biográfico da intérprete se entrelaça ao drama ficcional de uma cuidadora de idosos, que cedo perdeu a mãe. Ou seja, as reminiscências de uma menina que viu o progenitor falecer se embaralham às lembranças de uma outra garota destituída da figura materna. Embora a dor não seja transmissível, todo mundo consegue senti-la e a montagem se vale dessa percepção.  A consequência é uma obra lírica, orgânica, comovente, sobre o amor que a personagem sente por seu pai e os processos de despedida a que todos algum dia irão vivenciar.

Numa aposta ousada, e bem-sucedida, a representação prescindiu da presença do diretor e foi esculpida a partir do olhar externo de provocadores cênicos convidados. Eles cumpriram o papel de interferir tanto na marcha de criação quanto no resultado artístico alcançado. Em cena, Nicole captura com relativo êxito a marca do tempo. Aqui e ali é possível vislumbrar referências a filmes que, direta ou indiretamente, vasculham as relações familiares. Há alguma coisa do longa Amor (2012), de Michael Haneke, em sua leitura introspectiva e nada grandiloquente da perda. Sonata de Outono (1978), de Ingmar Bergman, forneceu a ideia das estações e dos ciclos da vida, detonadores de marcas profundas. Do humanista Ondas do Destino (1996), de Lars Von Trier, emerge a reflexão de como o ser humano consegue se relacionar com seus limites.  

A encenação em nenhum momento deturpa o sentido da meditação sobre o destino inexorável da existência. A protagonista evita as armadilhas de abordar o assunto como se tivesse deitada num divã de psicanalista. Com espontaneidade e comunicação, ela cria uma fala natural, nunca enfadonha ou ingênua. Atinge o poético por meio do trivial. Uma performance temperada pela vitalidade e a composição serena.

Fios invisíveis costuram os universos biográfico e ficcional. Cenas sugestivas evocam sensibilidades diferentes. Logo no início se fala da sororoca, o som dos últimos suspiros de quem está se despedindo d. Há uma sequência na qual um palhaço sem graça pilota um jogo infantil, com desfecho inusitado. Em outra passagem, o despertar sexual tem como ambiente o mar. Em momento agudo, a filha revela que sente falta da mãe, de alguém para dizer se a roupa que está vestindo é boa ou não. A mise-en-scène não carrega nas tintas, prefere o meio-tom das emoções veladas. Tudo se entrosa e cheira paixão. A pureza, a simplicidade e o rigor inscrevem o público num clima tocante.

Lastreada nesse princípio minimalista, a peça propõe ressignificar o conceito da morte que, mesmo sendo inevitável, poucos ainda sabem encará-la bem. É uma experiência triste e dolorida, sabe-se, mas pode ser também uma janela para a transcendência, a possibilidade de aproveitar essa circunstância de maneira mais generosa. Em ambos os planos narrativos as personagens se encontram num instante de fragilidade, vulneráveis, porém nunca deixam de trocar benquerença e carinho com quem está partindo. Não é incomum alguns espectadores chorarem ao final da sessão.  

Recursos despojados abolem o supérfluo e desempenham função essencial na hora de embalar as tramas. Um gramado sintético amarelo simboliza o jardim de flores. A cuidadosa iluminação de Yuri Cumer acompanha as modulações emocionais em circulação pelo palco – a luz demarca ainda a transição entre as esferas do eu e de Telma. A acanhada sala produz uma intimidade desejada. A atmosfera neste espaço é plácida e imperturbável. A força do relato está na segurança com que as histórias, os encontros e as conversas são combinados. Diferentemente de um produto sentimental, o que aflora é uma espécie de poética do afeto.   

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto: Rafael Latorre)

 

Avaliação: Bom

 

Eu/Telma

Texto e Atuação: Nicole Marangoni

Estreou: 20/07/2019

Aliança Francesa - Sala Atelier. (Rua General Jardim, 182, Vila Buarque. Fone: 3572-2379). Segunda, 21h. Ingresso: R$ 30. Em cartaz até dia 29 de setembro.

Teatro: Tebas Land

As coisas não são como parecem ser neste drama febril, que subverte o olhar do espectador. Logo no início, o narrador/dramaturgo informa à plateia que está escrevendo sobre o tema do parricídio, cujo ponto de partida é a história de um filho que, despossuído do amor paterno e acometido por surto de violência, matou o pai autoritário, golpeando-o com 21 golpes de garfo no peito e pescoço. Sua vontade, inclusive, era a de que o assassino atuasse no espetáculo, mas o seu plano acabou interditado pela Justiça. Sem outra opção, convocou um ator para encarná-lo no palco.  

Com direção de Victor Garcia Peralta, a instigante dramatização do texto de Sérgio Blanco, autor uruguaio radicado na França, se desenvolve por meio das entrevistas semanais entre este homem confinado e o escritor. Aos poucos, o relacionamento inicialmente frio adquire contornos de intimidade e de mútua afeição. A intenção, no entanto, não é reconstituir o crime, até porque as minúcias do episódio já constavam no dossiê policial. Em gestação pelo dramaturgo, a peça dentro da peça pretende compreender esse tipo de crueldade e construir uma metáfora teatral moderna da milenar tragédia grega Édipo Rei. O título desta produção, por sinal, faz alusão à cidade-natal dessa figura mitológica que, segundo a profecia de um oráculo, estava destinada a casar com a sua mãe e matar o seu pai.   

Vista como um processo artístico, a mise-en-scène compatibiliza dois planos - o passado (encontros no presídio e os ensaios do trabalho) e a atualidade (aquilo que está sendo exibido ao público). O que se vê é uma sedutora sobreposição de camadas do tempo, incrementada por uma não menos envolvente discussão sobre ética e estética. Como a dramaturgia vai se estruturando ao longo da ação, o embaralhamento entre a realidade e sua representação é proposital. Cabe à audiência sair de seu conforto e não se afligir diante desse expediente nada padronizado. Todo o enredo é desfiado num espaço simples, ora acontecendo em uma quadra de basquete cercada ora sucedendo no estúdio onde o projeto vai tomando forma e sentido.

Despreocupada em imergir na seara dramática ou escavar elementos psicológicos, a direção imprime ritmo e robustez ao jogo metalinguístico. Peralta institui marcações que fazem rolar suavemente a encenação, entrelaçando de maneira inspirada o raciocínio e o afeto daquelas pessoas nutridas de valores e humanidade. Pode-se questionar se o que era incomum nos primeiros momentos passou a ser previsível a partir da percepção da engrenagem que rege a narrativa. Ainda assim, o tom surpreendente mantém intacto o interesse. 

Em plena harmonia, Otto Jr. e Robson Torinni insuflam performances firmes e eficientes. Eles demonstram desembaraço nos diálogos e na fricção entre as duas trajetórias de vida dos personagens. Otto Jr incorpora um dramaturgo que, cativado pelo mito de Édipo, quer compor uma obra que extrapola a definição primária de parricídio. Enfático e crível, ao mesmo tempo afável e tempestuoso, ele age com o intuito de dar nexo e significados ao que está sendo contado. Um desempenho sem excessos ou clichês. Robson Torinni acumula os papeis do parricida e do ator que o interpreta, buscando a distinção pelos trejeitos corporais, o vocabulário e a inflexão verbal. Não é uma tarefa fácil de antemão. Sua habilidade nesse deslocamento, muitas vezes sem hiatos entre e um outro, propicia humanizar ambas as criaturas. Assinada por José Baltazar, a operativa cenografia esfumaça os dois ambientes – a “gaiola” e a sala de criação. Soma-se à competente iluminação de Maneco Quinderé, a pontual trilha sonora de Marcello H. e aos corretos figurinos, criados coletivamente.  

A montagem disponibiliza não só uma investigação vigorosa sobre o complexo ofício teatral como propõe uma reflexão pertinente sobre as instâncias do real e do ficcional e a comunicabilidade possível entre indivíduos de histórias e sentimentos distintos. Sobra uma incômoda questão: entre eles se desenrola um vínculo de compreensão e empatia ou exploração e abuso? Não é por acaso que a cena final soa dúbia e enigmática. 

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )   

(Foto Rodrigo Lopes)

 

Avaliação: Bom

 

Tebas Land

Texto: Sérgio Blanco

Direção: Victor Garcia Peralta

Elenco: Otto Jr. e Robson Torinni

Estreou: 21/6/2019

Sesc 24 de Maio (Rua 24 de Maio, 109, Centro. Fone: 3350-6300). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 40. Até 21 de julho.

 

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