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Babenco: "Muitos longas brasileiros só deveriam ter meia hora"

Um dos poucos cineastas brasileiros com projeção internacional, Hector Babenco faz pouca questão de ser simpático nas entrevistas. Certa vez, na Livraria Cultura, durante o lançamento do DVD de um de seus filmes, chamou de bolha um irônico e inconveniente repórter do CQC e o afastou, golpeando-o com uma revista que trazia nas mãos.  Filmada, a cena andou circulando por aí durante um bom tempo. “Um jornalista que vem me entrevistar deveria ver todos os meus filmes e aí cotejá-los comigo”, reclama. Visto como melindrado por alguns colegas de profissão, ele também não faz parte de nenhuma igrejinha e critica sem piedade o cinema brasileiro. 

 

Com 64 anos de idade, este cineasta argentino naturalizado brasileiro desde 1975 já foi pintor de prédios e lavador de pratos durante a juventude, quando viveu na Europa. Não é uma figura fácil. Costuma ser daqueles entrevistados que não têm o hábito de medir palavras ao dizer tudo o que pensa. “No cinema nacional, existem longas interessantes e outros que não deveriam passar de curtas-metragens. Às vezes, boas idéias não resistem à meia hora. Há filmes com falta de maturidade. Detesto aquele cinema brasileiro sem alma, com ar de publicidade.”

 

Desde o final de 2009 estão desembarcando nas locadoras, via Europa Filmes, edições restauradas e remasterizadas digitalmente de sua filmografia. É uma saborosa coleção de DVDs para quem curte o cinema autoral e de difícil catalogação de Babenco. Os primeiros títulos que saíram foram Pixote – A Lei do Mais Fraco (1981), Brincando nos Campos do Senhor (1991), Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977), O Beijo da Mulher Aranha (1985) e O Rei da Noite (1975).

 

Até meados desse ano chegarão Coração Iluminado (1996), Carandiru (2003) e O Passado (2007). Apenas Ironweed (1987), estrelado por Jack Nicholson e Meryl Streep, ficou de fora por empecilhos durante a negociação dos direitos. “Foi um verdadeiro trabalho artístico, a cópia do Pixote está melhor que o original do cinema”, orgulha-se. Abaixo, a entrevista concedida por telefone pelo diretor.

 

Edgar Olimpio de Souza

 

Por que você faz cinema?

Curto e grosso: porque não sei fazer outra coisa. Não sei como acontece com as outras pessoas, mas sempre gostei de contar as minhas histórias, de falar de uma forma menos racional. Preciso trabalhar. Como vou pagar meu dentista, aluguel, comida? Eu gosto do que faço e sou muito crítico. Faço porque eu não me sentiria bem comigo mesmo se deixasse de fazer. São histórias que eu vejo e preciso dar forma a elas de alguma maneira. Nunca fiz um filme com a intenção de mudar o mundo. Não se muda o mundo com filme, novela, peça de teatro. Não vou me preocupar também com o que o público pensa, se não nem sairia de casa. Sou um contador de histórias. 

 

Como você escolhe as histórias que pretende filmar?

Vá perguntar ao Ronaldo como ele faz gols. Não se pergunta isso. Há momentos em que certas coisas são imperativas e se tornam viscerais botar para fora. Não existe regra, matemática, fórmula. Os filmes vão surgindo, é simples assim. Um dia visitei uma unidade da Febem com uma amigo fotógrafo e fiquei emocionado com o que vi. Aí surgiu Pixote – A Lei do Mais Fraco.

 

Acha normal Pixote estar na lista dos 100 melhores filmes de todos os tempos?

O filme é considerado um clássico, talvez tão importante quanto uma obra de Antonioni, Truffaut. Mas na época que filmei, eu era tão ingênuo que nem sabia que existiam festivais. Não o inscrevi para o Oscar porque não sabia como pegar os papéis. Na verdade, nem sei se deveria estar entre os 100 melhores. Não tenho que concordar, se algum maluco faz uma lista que deixe assim. Vou brigar? Não tenho lista individual, preferências. Prefiro encarar assim: cada filme é um filme e representa um momento.

 

Demorou, mas enfim estão sendo relançados os DVDs de sua filmografia...

Nunca me interessei em produzir o lançamento dos meus filmes. Se tivesse que rolar, teria de ser automaticamente. O mercado dos DVDs está nas mãos das majors, as grandes produtoras de cinema. A comercialização não faz parte de meu cardápio de atividades, não sentia tesão para trabalhar a sobrevivência dos longas. Percebi que os filmes mais insignificantes tinham presença no mercado de vídeo. Os meus trabalhos mais antigos haviam saído em VHS e nunca sido editados.

 

Nunca teve propostas?

Propostas eu até tive, mas não sentia segurança. A pirataria começou a crescer também. Agora pintou a oportunidade de lançar todos os meus filmes, até os americanos, incluindo os making ofs, produzidos ao longo dos anos. O Pixote, por exemplo, reúne um monte de entrevistas. Como os negativos estavam muito gastos, restauramos e remasterizamos digitalmente todos os longas, quadro por quadro. Foi um verdadeiro trabalho artístico. A cópia do Pixote está melhor que o original lançado no cinema. 

 

Como você definiria o seu cinema?

Não sei se existe uma identidade amarrando todos os trabalhos. Como as pessoas estão em constante processo de crescimento, tentando não se repetir, nunca parei para pensar nisso. Eu sou um cineasta sem gênero, um franco atirador, nunca integrei um movimento, nem tive seguidores. Há diretores que se sentem protegidos quando têm quem os sigam. A modernidade não aceita mais o que é certo ou errado, as coisas são como elas são. A minha função é de fazer enquanto a de outros é a de consumir.

 

Há diferença entre trabalhar com atores brasileiros e internacionais?

Goleiro na frente do pênalti é igual em todos os lugares. Temos de parar com essas regras velhas, que precisam ser jogadas no lixo. É bobagem esse negócio de que ator inglês é mais técnico, que ator brasileiro é mais criativo. São estereótipos, caricaturas, reducionismos. Ou melhor, balela. No lançamento do filme O Passado, uma revista deturpou o que eu disse sobre o Gael (N.R.: Babenco teria dito que escolhera o ator mexicano Gael Garcia Bernal por ter sido o melhor ator com quem trabalhara). Virou uma resposta que parecia jogar atores brasileiros contra atores estrangeiros. Como eu estava fazendo um filme falado em espanhol, eu não considerava que houvesse ator brasileiro que pudesse fazer o papel que o Gael ia fazer. Não desmereci ninguém.  

 

Ocinema internacional te agrada?

Hollywood tem feito menos filmes por ano e cada vez mais caros. Os festivais de cinema são cada vez mais populares e populistas. Eu poderia ficar viajando com um único trabalho por uns três anos pelo mundo com tudo pago. Um filme que vi e adorei foi Anticristo, do Lars Von Trier. Inteligente, falou com a minha cabeça, me fez pensar. Não sou de acompanhar um diretor com mais atenção do que o outro. Aliás, vou pouco ao cinema para não me deseducar. Quero manter o purismo, não desaprender.

 

Que avaliação você faz da produção cinematográfica brasileira atual?

Existem longas nacionais interessantes e outros que não deveriam passar de curtas-metragens. Às vezes, boas idéias não resistem à meia hora, há filmes que padecem de falta de maturidade. As comédias predominam, desde a época da Atlântida, muitas caem no gosto popular porque se aproximam da linguagem televisiva. Eu não gosto de dividir o cinema nacional em linhas, escolas, gêneros. Você senta no escurinho e gosta ou não, se encanta ou se chateia. Detesto aquele cinema brasileiro sem alma, com ar de publicidade. É uma necessidade dos medíocres de encontrar referências para ser compreendido. São aqueles que têm medo de fazer algo muito diferente.

 

A sua relação com a mídia é boa?

Detesto cometer generalizações, não dá para falar que tudo é igual, mas percebo banalizações que são decorrentes da falta de tempo para se pensar e trabalhar melhor. Muitos jornalistas são fracos. As pessoas falam porque são famosas ou celebridades, ninguém quer saber de seus trabalhos de uma maneira mais profunda. Nem os filmes são vistos. Um jornalista que vem me entrevistar deveria ver todas as minhas obras e aí cotejá-las comigo. Mas não, me procuram para saber o que penso sobre diversos assuntos. Afinal, querem falar comigo ou abordar o meu trabalho?”

 

Sente-se mais brasileiro ou argentino?

Sinto-me brasileiro, mas nascido na Argentina.

 

(Fotos cedidas pela HB Filmes)

 

Assista cenas de Pixote – A Lei do Mais Fraco:

 

 

Teatro: Credores

Escrito em 1889, o texto do dramaturgo sueco August Strindberg (1849-1912) é uma obra memorável e recebeu encenação impecável de Eduardo Tolentino. A peça integra o repertório do grupo Tapa há mais de uma década – foi montada pela primeira vez em 2012. O próprio diretor foi responsável pela tradução da obra (Edusp, 2023) e destaca que “o título original tanto pode estar no singular como no plural, no masculino ou no feminino”. A opção pelo nome escolhido em português “não só busca equilibrar a força entre os três personagens, mas também atribuir um caráter sobre as cobranças da própria existência.”

Ao entrar no Galpão do Tapa, o público se depara com um ambiente que remete a uma sala de estar. Quando ouvimos o terceiro sinal, apagam-se as luzes. Aos poucos a luz retorna. Dois homens suados e com toalhas amarradas à cintura dividem uma sauna. Um deles é o pintor Adolfo, marido da escritora Tekla. O outro é Gustavo, ex-companheiro dela. Em alguns momentos, ambos falam olhando para um espelho. É um momento importante na trama. Nasce ali, no expectador, uma pergunta: eles falam para si mesmos?

Quando Tekla pisa no palco pela primeira vez, ela descortina um espelho na sala. Nele vemos refletido o espelho que emoldurava a sauna da primeira cena. A partir desse momento, as palavras dos personagens fazem parte de um jogo de espelhos. Toda a montagem é entrecortada por apagões que deixam no ar a expectativa do que virá na sequência. Sombras e luzes remetem a peça a um labirinto onírico, traduzido por impressões verbais em busca de interpretações. Desenhada por elenco e direção, a iluminação contribui para a atmosfera de sonho.

O espetáculo imerge no universo imaginário de três personagens entregues a um exercício de acerto de contas. Adolfo e Gustavo se encontram em um hotel de veraneio. Eles amam a mesma mulher e buscam desesperadamente o seu amor. O encontro tece dores, moléstias, inveja, solidão, vingança e depreciação amorosa. Nesse balneário cenográfico são expostos conflitos, dilemas e feridas amorosas.

Bruno Barchesi interpreta esplendidamente o pintor que abandona a pintura para se dedicar à escultura. Uma peça de gelo inacabada, de uma mulher, está posta sobre uma pequena mesa, às vezes sob um véu. O objeto derrete aos poucos, numa metáfora, dissolvendo a paixão daqueles dois seres por uma amada inalcançável. Frágil e amparado por uma muleta, Adolfo implora amor como uma criança desamparada da sua mãe.

Com performance potente, André Garolli encarna o primeiro cônjuge. Não podendo aprisioná-la como quer, Gustavo procede à degradação do objeto amoroso: ele quer destrui-la com acusações ao desejo feminino. Magnífica, Sandra Corveloni representa a mulher por eles desejada, oscilando entre a figura livre e a maternal. Tekla quer a ambos. Mais que isso: almeja uma aliança com o seu desejo.

Ao longo do enredo move-se pelo espaço cênico um jovem, em silêncio, incorporado por Felipe Souza. Seu personagem parece um serviçal, mas a impressão é irreal. Ele circula como um objeto de desejo dos outros três. Está ali à mão, mas lhes escapa. Com sua veste alva, ele nos lembra que l’amour ne connais pas la loi. O amor é um pássaro rebelde, como expressa a cigana Carmem, de Bizet. Stringberg nos lembra que temos uma dívida com o nosso desejo e ela deve ser paga.

Não é a primeira vez que o Tapa bebe na dramaturgia do escritor sueco, engenhoso em investigar o inferno das relações conjugais. No repertório da companhia constam montagens de Camaradagem, Senhorita Júlia, Brincando com Fogo e A Mais Forte. Ao revisitar Credores, a companhia oferece um dos melhores espetáculos da atual safra teatral paulistana.

(Geraldo Martins – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: ótimo

 

Credores

Texto: August Strindberg

Direção: Eduardo Tolentino

Elenco: André Garolli, Bruno Barchesi, Felipe Souza e Sandra Corveloni

Estreou: 06/07/2023

Galpão do Tapa (Rua Lopes Chaves, 86, Barra Funda). Segundas, 20h. Ingressos: R$ 25 e R$ 50. Em cartaz até 28 de agosto.

 

Teatro: Top Girls

A abertura é extravagante e perturbadora. Organizado pela bem-sucedida executiva Marlene, recentemente promovida na empresa onde trabalha, o jantar reúne cinco convidadas de diferentes épocas, egressas da história, literatura, arte e mitologia. Todas envergam figurinos singulares. Há uma arrogante concubina japonesa da era medieval. Uma menina paciente, abnegada e obediente, da obra do escritor inglês Geoffrey Chaucer. Uma intrépida escritora e viajante vitoriana. Uma transgressora que se disfarçou de homem, se elegeu papa na Idade Média, mas comprometeu o seu disfarce ao parir durante uma procissão. Uma camponesa, tema de um quadro do pintor belga Brueghel, que lidera um exército feminino contra demônios no inferno.  

A experiência em comum dessas comensais é, além de perder dinheiro, ter e perder bebês. A contemporânea Marlene, por exemplo, abandonou a própria filha. À medida que o vinho escorre, e o humor continua servindo de tempero, a conversa torna-se gradualmente mais confessional. A heterogênea confraria passa a compartilhar suas biografias conturbadas e os horrores que viveram. Nota-se que cada uma delas pagou um preço terrível pelo seu sucesso no mundo dos homens. 

Inédita no Brasil, a peça da dramaturga inglesa Caryl Churchill examina os papeis disponíveis para as mulheres na sociedade moderna contra o pano de fundo das lutas contra a opressão e os valores patriarcais. Situada nos anos 1980, sob o governo selvagemente liberal de Margaret Thatcher, que entre outras ações fragilizou o movimento sindical, ganhou montagem competente assinada por Laerte Mello. Ele está à frente do inquieto grupo Teatro Fatal Companhia, criado em 2013, que pela quinta vez visita a dramaturgia britânica – a última foi Avenida Cyprus, de David Ireland, no ano passado.

Na sequência da festiva celebração no restaurante, e agora banhada com tintas naturalistas e brincadeiras em torno de estereótipos machistas, a trama desemboca no escritório de recrutamento profissional. Entrevistas com candidatas almejando ascensão se sucedem, em pequenos retratos da ambição feminina. As pretendentes são julgadas com certo desdém, por sua roupa, aparência e idade. Uma das entrevistadas é induzida a não revelar ao futuro empregador o seu plano de casamento com filhos. Pelas outras colegas, o público toma conhecimento de que Marlene merecia upgrade na agência em detrimento de outro aspirante – em uma passagem devastadora, a esposa aparece para defender a promoção do marido. O segundo ato traz ainda duas adolescentes enredadas em um cotidiano vazio, brigas e bullying. Uma delas nutre o desejo de eliminar a mãe.   

No desfecho, ambientado na casa de sua infância, no interior da Inglaterra, Marlene visita a sua irmã mais velha Joyce, abandonada pelo cônjuge tóxico e que sobrevive trabalhando em subempregos. Ela é a típica representante da classe trabalhadora de baixa renda. As duas estão em polos contrários do espectro ideológico. Não demora o confronto. Na verdade, trata-se mais de uma luta de classes, salpicado por segredos dolorosos e sacrifícios pessoais. 

A cuidadosa direção desarma a cilada de lidar com uma dramaturgia discursiva, estruturada com diálogos sobrepostos, especialmente no terço inicial. O diretor torna o fio narrativo coerente, dá ênfase à ótica dos personagens e articula uma encenação sem efeitos estridentes e agradável de se acompanhar. A unidade do conjunto é um ponto forte. Trata-se de uma produção simples, apoiada em espaço cênico minimalista, trilha sonora pontual de Felipe Sales e iluminação correta de Gabriel Savino e Thiago Winter.

Com diferentes níveis técnicos e sem destaques ou solos especiais, o elenco efervescente de nove atrizes, algumas dobrando funções, se esmera em dar credibilidade às criaturas representadas, buscando torná-las tridimensionais. Carol Gomes dedica-se a desenhar com autoridade e musculatura a obstinada Marlene, que deixou para trás os laços familiares e se recusa a marrar a sua história enquanto as demais falam de seus filhos, amantes e maridos. Acredita piamente que o futuro pertence a pessoas como ela.     

A desajeitada Angie, que herdou o impulso materno de se projetar a qualquer custo na vida, é encarnada sem afetação por Katrinny. A menina se mostra problemática desde o começo e sua vulnerabilidade eclode no final desconcertante. Ancorada em desempenho seguro, Claudia Piassi delineia Joyce como alguém envaidecida pela luta por sua própria independência. Fernanda Versolato rende satisfatoriamente na dupla composição de Papa Joana e da companheira do homem que tomou atitude radical ao se ver preterido no trabalho. As demais intérpretes transpiram energia e tensão ao habitar figuras femininas que precisaram se sacrificar para alcançar o pico num universo regido pelo patriarcado. 

Ainda assustadoramente relevante, o texto começa épico, contaminado por comicidade absurda, e desliza para um realismo mordaz. Não por acaso, em ironia rasgada, a agência se chama Top Girls. Aqui elas são parecidas com tubarões. Joyce não teve a chance de estar no topo e a imposição da maternidade acabou se transformando em um fardo complicado de suportar. A iludida Marlene, que se compraz da vitória de pirro num ambiente dominado por homens, desistiu insensivelmente de sua filha e adotou o individualismo thatcherista. 

Caryl discute o que permaneceu igual e o que mudou ao longo dos séculos para o sexo feminino. A relativa facilidade com que algumas conseguem triunfar não abre necessariamente o dique para o progresso das outras. Aquelas que se confraternizaram no jantar de Marlene só saíram de alguma forma vitoriosas quando negociaram com o poder masculino. Uma fala, proferida por umas personagens, dimensiona a questão: “eu não vivi como mulher. Não posso opinar”.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Caco)

 

Avaliação: Bom

 

Top Girls

Texto: Caryl Churchill

Direção: Laerte Mello

Elenco: Carol Gomes, Claudia Piassi, Giovanna Amato, Katrinny, Marcelle Lemos, Nanda Versolato, Raquel Paim, Thais Costa e Tammy Hammal. Apoio: Carol Gonzalez e Duda Meneghel.

Estreou: 24/11/2023

Teatro de Arena Eugênio Kusnet (Rua Teodoro Baima, 94, Vila Buarque). Sexta e sábado, 19h; domingo, 18h). Ingresso: R$ 40. Em cartaz até 17 de dezembro.

 

 

 

Crítica: O Nome do Bebê

O contexto está arranjado para uma noite de conversa entre amigos, estimulada por boa comida e vinhos refinados. Um programa bem ao gosto da classe média. O jantar no apartamento do estressado casal de professores Pierre e Babú, no entanto, escorrega dos trilhos à medida em que chegam os convidados, o prestigiado trombonista de orquestra Claude, o irmão caçula da anfitriã, o bem-sucedido Vicente, e sua esposa grávida Anna, atrasada para o banquete por se encontrar em uma reunião de negócios.

O pavio é aceso no instante em que o futuro pai exibe o exame de ultrassom do bebê e revela o nome surpreendente que planeja dar a ele, inspirado no personagem-título do romance de 1816 do escritor suíço Benjamin Constant. A revelação é mal-recebida pelo grupo por associarem o nome à outra figura histórica e nefasta. Horrorizados, tentam dissuadi-lo dessa ideia. Uma cascata de reações e contra-argumentos brota e ameaça arrasar tanto a ceia quanto os relacionamentos.

Atracada em diálogos afiados, na mais pura tradição do teatro boulevard, a comédia dos dramaturgos franceses Matthieu Delaporte e Alexandre de la Patellière se movimenta a partir dessas criaturas que de repente se comprazem em arremessar dardos uns contra os outros. A partir da discussão preliminar sobre bom gosto e sensatez, logo emergem mágoas antigas, ressentimentos profissionais, apelidos insensíveis, longevas rivalidades, verdades abafadas e feridas conjugais. Os visitantes, por exemplo, elogiam o cabelo de Babú e ela responde que o marido não gosta. O instigador Vicente vira vidraça e se se torna alvo de piadas por conta de suas expressões faciais.    

A montagem assinada por Elias Andreato é justa e nunca perde tração conforme a tensão e a raiva aumentam. O diretor deixa fluir de forma natural as relações febris entre os velhos camaradas, explorando habilmente o humor e as passagens mais nervosas, num estreito equilíbrio entre momentos cordiais e duelos duros.

A ação acontece em uma sala de visita projetada por Rebeca Oliveira, com estante de livros e mesa de jantar ao canto. Neste ambiente de ares claustrofóbicos, iluminado por Wagner Pinto, o elenco entrega porções de afeto e insultos. Todos têm seus momentos de destaque. Nenhum dos personagens é especialmente cativante ou singularmente antipático.  

Cesar Baccan concede uma combinação de vaidade intelectual e vulnerabilidade emotiva à Pierre, que em dado instante decide resgatar um rancor do passado contra o cunhado. No papel de Babú, a atriz Bianca Bin é expressiva no retrato da mulher que relegou a carreira para ser a mãe perfeita e acabou como esposa frustrada. A professora passa a maior parte do tempo tentando uma pacificação coletiva, mas eventualmente desterra um discurso cheio de insatisfação.

O charmoso provocador Vicente ganha corpo no desempenho vibrante de Eduardo Pelizzari, que também quebra a quarta parede para narrar fragmentos da história e unir as pontas soltas. O ator capta a comicidade de uma figura presunçosa e um bocado cínica. Com performance segura, Lilian Regina incorpora Anna, que oscila entre abrandar a fervura e atiçar mais fogo ainda aos entreveros. Marcelo Ullmann infiltra sensibilidade ao observador Claude, que guarda seus próprios esqueletos no armário e relutantemente é atraído para os embates.

A peça explora cuidadosamente o conceito de identidade e como os nomes podem moldar nossas personalidades. E alavanca um minucioso estudo sobre companheiros que, apesar dos longos anos de convívio, ainda estão buscando chegar a um consenso sobre quem eles são um para o outro. O espetáculo é um microcosmo da vida desses pequeno-burgueses amáveis, educados, espirituosos e cultos que, em segundos, ficam furiosos e degeneram para o ridículo e vulgar. O abismo entre a banalidade do debate inicial e a veemência das consequências explicita que a suposta polidez de uma certa classe média não passa de um engodo.

Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

Foto (Evelson de Freitas)

 

Avaliação: Ótimo

 

O Nome do Bebê

Texto: Matthieu Delaporte e Alexandre de la Patellière

Direção: Elias Andreato

Elenco: Bianca Bin, Cesar Baccan, Eduardo Pelizzari, Lilian Regina e Marcelo Ullmann

Estreou: 14/07/2023

Sesc Ipiranga (Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga). Sexta e sábado, 20h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 12 a R$ 40. Em cartaz até 20 de agosto. 

Teatro: Escute As Feras

Um encontro quase mortal entre uma mulher e um urso nas montanhas da Sibéria, na Rússia, e as questões políticas, sociais e psicológicas daí decorrentes mobilizam esta magnética adaptação teatral do livro homônimo da antropóloga francesa Nastassja Martin. Na obra, a autora engendra uma reflexão sobre o desmoronamento de seu mundo interior a partir desse incidente e de como o evento traumático a mergulhou em um processo de reconstrução pessoal. Com direção de Mika Lins e solo da atriz Maria Manoella, a montagem entrelaça memórias, drama, identidade e cultura, temas que funcionam para espessar uma discussão sobre a relação entre o humano e a natureza.    

Em 2015, a antropóloga desenvolvia um estudo com os povos nativos evens na península de Kamchatka. Em uma incursão pela geografia local, foi atacada por um urso, que lhe arrancou parte da mandíbula e dois dentes. Só conseguiu se livrar do enorme bicho ao feri-lo na pata com um machado de gelo que carregava consigo. Após ser resgatada por um helicóptero, foi levada para um hospital da província, onde acabou sendo submetida a variadas cirurgias de reparação facial.  

Sua descida ao inferno prosseguiu na França, para onde retornou e foi novamente internada. Passou dias amarrada na cama, suportando um tubo enfiado em seu nariz e garganta, e enfrentou novas intervenções cirúrgicas, algumas para corrigir procedimentos supostamente equivocados executados pela equipe médica russa. Os médicos franceses decidiram, por exemplo, substituir a placa de metal instalada em seu rosto por um protótipo ocidental. Seu queixo havia se transformado no cenário de uma Guerra Fria médica franco-russa.

O espetáculo permite uma abordagem psicanalítica e emana uma estranheza que prende a atenção do início ao fim. O público acompanha os acontecimentos relacionados à agressão do urso, as internações e as impressões colhidas do contato com os nativos das aldeias pesquisadas. Uma das passagens que mais lhe perturbou foi o massacre das renas a céu aberto para a venda de suas cobiçadas carnes. Há resenhas curiosas, como uma inquirição feita pela polícia secreta russa, desconfiada de que ela poderia ser uma espiã infiltrada no país. “O que fazia uma jovem francesa nos arredores da base militar e como é possível que tenha conseguido sobreviver ao ataque de um urso?”, ouve, perplexa.

Durante o período de reclusão no leito hospitalar, chegou a assistir um filme protagonizado por uma mulher atrás de seu amor, transfigurado em animal por conta de uma maldição. Espanta-se ao enxergar alguns nexos com a sua história. Lembra-se da visita da mãe, do irmão e de amigos, pessoas tão diferentes entre si que era difícil imaginá-las lado a lado. Uma psicóloga lhe perguntou como se sentia. “Porque, você sabe, o rosto é a identidade.”  

Partindo desse material pulsante, Mika Lins imprimiu uma mis-en-scène intimista. Deixa as falas em primeiro plano e transmuta o rígido molde literário em ação física. A engrenagem cênica vibra sem parecer fora do lugar ou excessiva. A encenação se potencializa ainda por uma hipnotizante trilha sonora executada ao vivo por Lúcio Maia, um tecido sonoro que ecoa vento, chuva, ruídos de floresta.

Em atuação centrada e contagiada de nuances, Maria Manoella adentra no corpo e alma desta figura que está aprendendo mais sobre si mesma do que dissecando a vida dos outros. Sob a luz precisa de Caetano Vilela, ela transpira a inquietação de alguém que vislumbra na peleja contra a fera um marco de ressignificação da sua identidade e de reelaboração existencial. Em certo momento, ela dá voz ao urso, num esforço em capturar e expressar a sua perspectiva. Escrito por Ana Paula Pacheco, o discurso adiciona camadas ao relato. Desdobra um jogo de projeções, cada um transferindo ao outro seus pensamentos e emoções.   

Em instante algum o espetáculo deseja fisgar de qualquer maneira a autopiedade da plateia. O propósito aqui é compartilhar a ansiedade da personagem em entender o que lhe sucedeu. Em seu regresso ao lugar de seu trabalho, é investida de novo status. Aos olhos da nação even, ela havia se tornado uma miêdka, um híbrido de humano e animal, uma condição que provoca tanto repulsa quanto fascínio na comunidade indígena. 

Nastassja não procura o vitimismo, uma moral da história, um flagrante de redenção e superação. Seu martírio prescinde de um símbolo, de um clichê. Tampouco se regozija com a agressividade do urso nem tenta aliciar o espectador para o caráter insólito do caso. Não existe uma cadeia de ressentimentos que precisa ser expiada ou destroçada. Se representa um peso difícil de estimar, o trauma serviu para ela impulsionar uma profunda meditação sobre as imprevisibilidades e incongruências da aventura humana.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Ariela Bueno)

 

Avaliação: Ótimo

 

Escute As Feras

Texto: Nastassja Martin

Adaptação: Fernanda Diamant, Mika Lins e Maria Manoella

Direção: Mika Lins

Elenco: Maria Manoella

Estreou: 11/11/2023

Sesc Ipiranga (Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga). Ingresso: R$ 15 a R$ 50. Sexta e sábado, 20h; domingo, 18h30. Em cartaz até 3 de dezembro.

Teatro: Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto

O massacre de Caldeirão da Santa Cruz do Deserto foi um episódio significativo na história brasileira e convenientemente apagado, ao contrário, por exemplo, do perpetuado conflito de Canudos, no sertão baiano (1896/97). O inquieto Grupo Clariô de Teatro, que há dezoito anos desenvolve trabalhos para, sobre e com a periferia da cidade de São Paulo, decidiu revisitar os eventos ocorridos nos anos 1920 e 1930 na região de Cariri, no Ceará. A empreitada de reavivar a memória da chacina resultou em um documento histórico de valor inestimável.   

Com texto musicado e estruturado quase todo em versos do escritor cearense Alan Mendonça, direção e dramaturgia compartilhada por Naruna Costa e Cleydson Catarina, a atraente produção se movimenta inspirada na estética do Reisado Cearense. Trata-se de um folguedo popular em forma de cortejo com danças, músicas, brincantes e seres fantásticos, como os cômicos Mateus, o híbrido humano/animal Jaraguá, e Miolo, aquele que transporta sobre os ombros o boi cenográfico.

Para tonificar o sentido da montagem, o autor resgata e celebra ainda Maria do Araújo, a beata preta que em 1889 fez a hóstia virar sangue na frente de todo mundo e foi silenciada – o milagre, por sinal, inaugurou as romarias em Juazeiro do Norte. A trama gira em torno do beato paraibano preto José Lourenço, descendente de escravos alforriados, que fundou e liderou duas irmandades no interior cearense, destruídas em momentos diferentes por uma aliança entre a Igreja Católica, Poder Público, coronéis e latifundiários.

Envolvido por uma roda de jongo, de origem africana, que louva os antepassados e celebra a ancestralidade negra, o público ingressa na sala em estado de descontração. Nesse instante, o espetáculo abre alas para a entrada de mestre Joaquim, egresso do mundo dos mortos. Em livre criação, ele foi um menino sobrevivente do Caldeirão e seus descendentes irão desfiar sua trajetória ao longo do enredo. 

Recursos épicos são empregados para alternar o passado, ambientado no sitio Baixa Dantas e na fazenda Caldeirão Santa Cruz do Deserto, e o presente ficcional, em São Paulo. A ponte entre os dois períodos e geografias é um dos códigos para se compreender a peça, que estabelece um oportuno paralelo entre a repressão ocorrida naquela época e a perseguição nos dias atuais aos povos da Favela do Moinho, Pinheirinho, Aldeia Tekoa Piau, Yanomamis e tantos quilombos, aldeias e terreiros urbanos Brasil afora. Aqui, uma emblemática confraria de Boi-bumbá é cerceada pelo Estado em sua tentativa de existir na periferia paulistana. “A idolatria a um animal vai contra os princípios do legado cristão”, justifica Cabeção, representante do Poder Público, um estafeta de olhos esbugalhados e assimétricos. 

Em Baixa Dantas, o devoto Lourenço instaura uma comunidade religiosa fraterna, onde todo homem produzia conforme a sua capacidade e recebia de acordo com a sua necessidade. Eles ganham de Padre Cícero um boi zebu, batizado de Mansinho e venerado pelos seus moradores. Não demora e o culto ao novo hóspede passa a incomodar a província, avessa a esses “loucos desvairados de fanatismos”. Uma guerreira do reisado anuncia a conflagração iminente. Floro Bartolomeu, um político venal a serviço dos poderosos da vizinha Juazeiro do Norte, esquarteja o animal e prende Lourenço, solto dias após.     

Com a venda da propriedade pelos seus donos, e consequente expulsão, o beato e seu grupo se instalam na fazenda Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, cedida por Padre Cícero. O projeto autossustentável é reiniciado e a sua fama atrai levas de romeiros, deserdados, peregrinos e retirantes, pessoas em busca de uma saída da miséria.

A experiência outra vez acendeu o estopim de uma fúria punitiva por parte da elite local, que a via como uma nova Canudos, com iguais métodos e princípios, florescendo sob a liderança de um guia espiritual. Era necessário aniquilar a identidade daquela “sociedade comunista”. Em 1937, o Caldeirão foi invadido pela segunda vez e dizimado totalmente.  

A fusão entre o remoto e o contemporâneo, quando o capataz Floro Bartolomeu e o porta-voz do Estado repetem as mesmas falas e ações e dois bois são sacrificados sob o olhar resignado da população, é uma das boas sequências desembrulhadas. Várias outras têm similar impacto. Como a dos encantados José Lourenço e Maria do Araújo, que cruzam as fronteiras do tempo para celebrar a gênese de um boi. Ou o diálogo entre o discípulo Severino Tavares e o religioso, no qual o primeiro sugere reagir com violência às investidas dos poderosos. “Ou a gente mata ou a gente morre”, ele resume, uma fala prontamente refutada por Lourenço. Placas são fincadas na borda do espaço cênico com as palavras nascimento, batismo, morte e renascimento. Traço dos festejos do Boi-bumbá, a liturgia expressa o ciclo da vida.

Colheres, garfos, pratos, canecas, espigas de milho e ervas espalham-se na cena como símbolos que contrapõem a fartura produzida pelo povoado à seca que flagelou o Nordeste em 1932. Na passagem da carnificina do Caldeirão, um pequeno avião de madeira desliza no alto. Simultaneamente aviõezinhos de papel cruzam o ar, em alusão ao bombardeio aéreo sobre o lugar. Na morte de Padre Cícero, abre-se um guarda-chuva preto com chapéu cobrindo a ponta. A cela da prisão se transforma em boleia de caminhão na horizontal. Maria de Araújo é representada por máscara e corpo coberto de véu preto. Coronéis surgem com cabeça de papelão estilizado.

A direção cozinha habilmente esses ingredientes e consegue solucionar uma narrativa apinhada de informações e estímulos visuais e sonoros. Ao som de uma pluralidade de expressões musicais, a encenação mantém-se sempre fluída e ágil, desprende o grau de tensão dos acontecimentos e jamais se fecha sobre si mesma. Há uma luminosidade vital que emana do elenco, que se desdobra em vários personagens e narradores. Os atores extraem o encantamento estético do que é bruto com entusiasmo e competência. Não há destaques individuais, mas um conjunto homogêneo a serviço da mis-en-scène. Figurinos (Martinha Soares), maquiagem (Naloana Lima), cenário e iluminação (ambos de Alexandre Souza e Rager Luan), bonecos (Rager Luan) e o trio feminino de musicistas (Giovana Barros, Thaís Ribeiro e Naruna Costa) refletem e acentuam a representação da tragédia.   

A intrépida trupe demonstra dominar o material dramático. Faz um mergulho consciente no semiárido nordestino para recompor o genocídio de camponeses que queriam apenas viver de forma digna. Ao capturar o seu nexo e fundamento, a obra irradia questões universais e atemporais. É um teatro político, social, sagrado e lúdico, construído de modo direto, baseado em muita convicção e sem concessões.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

(Foto Sergio Fernandes)

 

Avaliação: Ótimo

 

Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto

 

Texto: Alan Mendonça

Direção e Dramaturgia: Naruna Costa e Cleydson Catarina

Elenco: Alexandre Souza, Augusto Luna, Cleydson Catarina, Martinha Soares, Naloana Lima, Paloma Xavier, Rager Luan, Uberê Guelè e Washington Gabriel.

Musicistas: Giovana Barros, Thaís Ribeiro e Naruna Costa

Estreou: 18/05/2023

Teatro Sesc Pompeia (Rua Clélia, 93, Pompeia). Quarta a sábado, 20h30; domingo, 17h30. Ingresso: R$ 12 a R$ 40. Em cartaz até dia 11 de junho.

 

Teatro: O Incidente

A trama começa avassaladora. É madrugada e a professora de psicologia Kendra encontra-se agoniada em uma delegacia de polícia de Miami, na Flórida. Ela é uma mulher negra e está em busca de informações sobre o seu filho adolescente, que havia saído de carro com amigos na noite anterior e sumiu após uma blitz policial. Desde então ele não responde às suas mensagens de texto ou chamadas telefônicas. O ex-marido Scott, um investigador branco do FBI, chega dali a alguns minutos. Ambos desejam saber tudo do paradeiro de Jamal, mas os poucos detalhes são fornecidos meio a contragosto pelo novato guarda de plantão, que destila racismo a conta-gotas – ele afirma ser necessário seguir o protocolo de pessoas desaparecidas e que os pais devem aguardar a vinda do chefe do departamento.

O mote da vulnerabilidade de jovens negros diante da polícia preside a peça do dramaturgo americano Christopher Demos-Brown, assinada por Tadeu Aguiar. O texto expõe as entranhas do preconceito e dos estereótipos, que vitimam até os casamentos interraciais. Parte do enredo, por sinal, se concentra nas brigas do casal, separado há quatro meses e com mágoas ainda não curadas. A questão da raça permeia obviamente a trajetória deles, da mesma forma que o papel de gênero se tornou uma rixa no interior da relação. Kendra se queixa de que ele é um pai pouco efetivo na vida do rapaz. Scott refuta qualquer ideia de vitimização de Jamal e argumenta que o filho poderia esquivar-se do racismo evitando usar trancinhas e deixando de portar adesivo no automóvel com mensagem desfavorável aos policiais.

A direção segura de Aguiar conserva a ação em constante fervura e produz uma montagem que nunca escorrega para a polêmica estéril. Mesmo que em alguns momentos soe um pouco didático, o texto evoca questões de inegável atualidade, como racismo, brutalidade injustificada da polícia, família e injustiça. A delegacia fria e estilizada de amplas janelas, concebida por Natalia Lana, é um barril de pólvora prestes a explodir. A chuva torrencial e relâmpagos ocasionais funcionam como previsível metáfora da situação de intermitência emocional daquelas pessoas. A iluminação de Daniela Sanchez satura a atmosfera febril e a trilha composta por João Callado pontua a tensão.

O elenco entrega atuações intensas. Os quatro personagens, que aparecem, saem e depois reaparecem, são críveis e destilam uma retórica pesada em torno de raça e gênero, assuntos ainda distantes de uma solução fácil. Flavia Santana faz de Kendra uma figura inflexível, que mal digere sua irritação pelo fato de o filho ter colocado um adesivo provocativo no automóvel, pelo marido por deixá-los, da polícia por depreciá-la. A atriz expressa a angústia dessa mulher quase sempre na iminência de gritar, que sabe que o cotidiano nunca é tranquilo para os negros, independentemente de sua origem social. Leonardo Franco incorpora o presunçoso Scott, o membro da classe dominante que nunca precisou se comprometer. Sua chegada à delegacia exibindo o seu distintivo muda instantaneamente a temperatura do lugar.

O policial inexperiente, que faz perguntas enviesadas a respeito de Jamal, é vivido com determinação por Daniel Villas. Ele exala a insensibilidade de um agente da lei branco que, se não é racista, demonstra ter a mente impregnada de prejulgamentos. Na composição de Marcelo Dog, o veterano superintendente negro revela-se um profissional resignado, que desenvolveu a habilidade de cruzar os dois lados para conseguir sobreviver. Em algumas cenas curtas, o ator transmite a visão de mundo clara de um homem que enxerga a situação sob variados ângulos e tece observações francas que adicionam textura e peso ao enredo.

Não se trata de uma dramaturgia irrepreensível - a discussão do casal, por exemplo, traz à tona pendências que aparentemente nunca tinham sido discutidas por eles, algo pouco plausível em um relacionamento de muitos anos. Pequenas incongruências, no entanto, não chegam a desidratar a contundência da obra, que vibra com a urgência de uma conversa necessária. O autor fornece uma visão dolorosa dos medos e temores que quase todos os pais de uma criança negra enfrentam diariamente. Faz também um estudo acerca do tratamento desigual que se concede às mulheres em tais circunstâncias, em sentido contrário à tolerância com que os homens são tratados.

Pai e mãe são papeis cruciais para se imergir na história. Kendra amarga a desilusão de ter passado a vida toda tentando manter Jamal em um ambiente seguro e longe das más companhias e agora nota que só isso não foi o suficiente. Por sua vez, Scott está indignado com a mudança repentina de imagem de seu filho, um estudante exemplar que cursou escolas badaladas de maioria branca. O afiado drama de Christopher Demos-Brown mostra que as raízes da intolerância e discriminação continuam firmes abaixo da superfície de civilidade.   

Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )   

Foto (Ricardo Brajterman)

 

Avaliação: Bom

 

O Incidente

Texto: Christopher Demos-Brown

Direção: Tadeu Aguiar

Elenco: Flavia Santana, Leonardo Franco, Daniel Villas e Marcelo Dog.

Estreou: 03/08/2023

Teatro Vivo (Avenida Chucri Zaidan, 2460, Vila Cordeiro). Sexta e sábado, 20h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 120. Em cartaz até 27 de agosto.

Teatro: Tom na Fazenda

Uma agressão física acontece quando dois personagens se conhecem, mas não há revide ou algum tipo de retaliação por parte da vítima. A peça do dramaturgo canadense Michel Marc Bouchard, dirigida por Rodrigo Portella, é repleta de elementos assustadores. O jovem publicitário Tom viaja até uma remota fazenda rural para acompanhar o funeral de seu amante, um cara que se deitava com todo mundo e acabou de morrer em um acidente de trânsito. Ao descobrir rapidamente que a família enlutada nada sabia sobre sua existência e sua ligação homoafetiva com o falecido, se apresenta como colega de trabalho. Agatha, inclusive, acreditava que o filho tinha um amor de longa data na cidade e está magoada porque a moça não deu o ar da graça no enterro. Francis, o mais velho, sabia sobre a vida secreta de seu irmão e passa a intimidar o visitante se ele revelar a verdadeira natureza de sua união. Uma quarta figura, que surge às tantas, despenca ali para acumular mais mentiras, transformando tudo em pesadelo.

Como o hóspede é instado a permanecer na casa, um complexo drama psicossexual começa a ganhar rosto. Ambivalentes, o homofóbico Francis e o cativo voluntário Tom desenvolvem um vínculo gelatinoso, ilustrado por insultos verbais e enfretamento carnal – em uma sequência enervante, um deles é amarrado e pendurado de cabeça para baixo. Não bastasse, Tom e Agatha se enredam aos poucos em uma relação típica de mãe e filho. Os três formam uma espécie de relacionamento distorcido de codependência. Os múltiplos graus de mal estar servem para adensar a paisagem de lama e animais, marcada por dores e arrependimentos, invencionices e segredos, feridas tangíveis e psicológicas. Todos se encontram imobilizados e lutam com quem são e o que querem.  

A direção inocula teatralidade à montagem e aplica uma carga erótica, viril e aterrorizante às interações entre os dois homens. A encenação intensa é apoiada pela iluminação melancólica de Tomás Ribas, a rústica e enlameada arena cenográfica concebida por Aurora dos Campos e pelos figurinos de Bruno Perlatto, que ajudam a retratar as personalidades. 

O elenco destila genuíno entrosamento. Armando Babaioff encarna Tom, que enxerga em Francis o fantasma de seu finado parceiro. O ator transmite a ira interna de um sujeito forçado a expressar sua angústia e paixão na forma de uma namorada fictícia. Nos diálogos, pressionado pelas pulsões amorosas, o personagem também narra seus sentimentos sem que os outros o ouçam. Em desempenho vigoroso, Gustavo Rodrigues entra na pele do valentão de cabeça quente Francis, disposto a manter sua mãe em uma conveniente ignorância enquanto se digladia contra sua repressão e raiva. De passado sombrio, e hoje pária na comunidade local, o irmão chegou tempos atrás a rasgar literalmente o rosto de um adolescente. Uma aura de ameaça se desenha toda vez que ele irrompe no palco.     

Convincente na composição, Soraya Ravenle interpreta a gentil e angustiada Agatha, que fechou os olhos ao longo dos anos. Ela optou por ignorar a homossexualidade de um filho e a homofobia do outro e hoje nem se alarma com os hematomas de Tom. Talvez a passiva mulher saiba mais do que os demais imaginam. Camila Nhary exala desenvoltura ar dar vida à Sarah/Helen que, ao entrar tardiamente em cena, rompe o clima claustrofóbico. Ela é amiga de Tom e foi convencida por ele a representar a suposta amada estrangeira do morto. As trapalhadas com a língua e os erros de tradução abrem aqui frestas de humor em meio à tensão reinante.

O texto é hábil em borrar as fronteiras entre sexo e brutalidade, examinar uma família incapaz de lidar com uma perda recente e capturar a experiência sufocante de mascarar a própria identidade. A relação de dominação e a perversa dinâmica sexual entre Tom e Francis compõem as passagens mais interessantes do espetáculo, que já circulou por cidades brasileiras e colheu elogios em minitemporada na França. Por meio de Francis, o público observa que o ódio contra os homossexuais, brotado da ignorância, pode facilmente descambar em crueldade e infâmia, por mais próximo que seja o laço de parentesco.

Ao conjugar realismo e lirismo e introduzir energia maníaca à trama, Bouchard evita que a história caia na monotonia. Em um mundo onde a paz é mais importante que a verdade, ele pinta um quadro de quatro criaturas em busca de alguma fatia de conexão. Se o texto começa como um suspense psicológico, no desfecho o que se vê é a materialização do horror.   

Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Victor Pollak)

 

Avaliação: Ótimo

 

Tom na Fazenda

Texto: Michel Marc Bouchard

Direção: Rodrigo Portella

Elenco: Armando Babaioff, Gustavo Rodrigues, Soraya Ravenle e Camila Nhary.

Estreou: 05/05/2023

Teatro Vivo (Avenida Chucri Zaidan, 2460, Morumbi). Sexta e sábado, 20h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 37,50 a R$ 100). Em cartaz até 25 de junho.

 

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