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Teatro: Tubarão Banguela

Uma praia pode ser o microcosmo de uma sociedade que se sente impotente e é refém da natureza imprevisível da vida. Nesta geografia espelhada pela peça, os personagens se relacionam, porém se mostram desorientados. Há um velho solitário, que perdeu os anos de predação sexual e agora compartilha a sua existência com um cachorro meio niilista. Duas amigas torram sob o sol escaldante, enfurnadas no tédio e marasmo. Um tubarão ronda perigosamente as águas, onde um surfista faz manobras sobre as ondas. A ameaça está também na pele de um dissimulado homem de camisa azul. De olho no movimento à beira-mar, um bombeiro precisa fazer resgate enquanto tenta salvaguardar o afeto em sua família. Uma filha se desespera ao procurar pelo pai. Uma criança quer entender o mundo dos adultos. O som de um helicóptero ensurdece os banhistas.

A promissora estreia na dramaturgia e na direção da jovem atriz Rita Batata acontece sem a pretensão de cavar profundezas emocionais ou psicológicas. Valendo-se de recortes de histórias conectadas, a trama pinça o flagrante em um plácido dia de verão. A fissura na calmaria advém de um acidente no mar, nunca visto e apenas narrado, estopim de um curioso encadeamento de pontos-de-vista de personagens direta ou indiretamente envolvidos com o episódio. O que aflora a partir daí são os sentimentos, as motivações ocultas, os desejos mascarados, a índole humana dessas testemunhas oculares absorvidas pela desgraça ocorrida. O texto ignora qualquer perspectiva de alcançar a verdade absoluta, ciente da impossibilidade de alcançá-la. Sem se preocupar em seduzir ou encantar, os fragmentos narrativos passam pela borda da consciência crítica. No entanto, transpiram certa poesia, mesmo que transfigurada por eventos dolorosos. O público acompanha um enredo, estruturado em justaposições e sobreposições, que expõe indivíduos às voltas com impasses, reveses, mal-entendidos, acasos felizes ou não.  

Algumas vezes a construção cênica exala a estética de uma história em quadrinhos, especialmente na sequência inicial, um mosaico de tipos quase inertes à beira mar ilustrando molduras. Movida por diálogos vivos e cenas enérgicas, a montagem desliza em ritmo ágil e seguro, sem nunca perder o ímpeto. Expressões gestuais de sentidos inusitados sublinham a encenação – por exemplo, as cocotas se contorcem na areia e uma personagem gira em círculos, manifestando o desequilíbrio emocional vivido naquela hora. Soluções simples e sugestivas, como a simulação de sangue na água em jarras posicionadas à frente do palco, são acionadas. Um pouco de atenção e é possível observar que a autora borrifou a representação com características da linguagem de origem japonesa haicai. No caso, a descrição sem artifícios dos acontecimentos, os fatos que sucedem no momento presente e o homem em simbiose com a natureza.

Esta espécie de meditação acerca da perplexidade de todo ser humano diante de inevitáveis perdas e danos, é materializada em cena por um elenco desenvolto e expansivo, que parece exibir felicidade em atuar. Nenhum deles está desconectado do clima geral do trabalho e eventualmente se multiplicam em narradores e figuras secundárias, como um policial, um repórter, o moço da xerox. Rafael Lozano brilha na composição de um cachorro à procura de identidade. Bella Marcatti se sobressai ao dar vida a uma criança esperta e de perguntas incômodas. Mariana Leme empresta impetuosidade e viço à filha perseverante e incauta no amor. Leandro D´Errico, o velho ranheta, e Rafael Pimenta, o pai atônito, exprimem firmeza e potência. Todos evitam sucumbir à caricatura ou efeitos fáceis. Os figurinos de desenhos dissonantes de Bia Pieratti e Carol Reissman, a competente luz de Aline Santini e a atilada trilha sonora de Thiago Iglesias enriquecem o espetáculo.

Nesta obra desafetada, não há grandes verdades, mas pequenas crenças. O texto soaria bem como uma parábola a respeito da condição em que vivemos, sobre essa suspeita de que o tempo só serve para fazer as pessoas esquecerem das velhas tragédias até o instante em que produzem outras novas.

(Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Daniel Spalato)

 

Avaliação: Bom

 

Tubarão Banguela

Texto e Direção: Rita Batata

Elenco: Rafael Lozano, Bella Marcatti, Leandro D´Errico, Mariana Leme e Rafael Pimenta.

Estreou: 26/10/2018

Teatro Sérgio Cardoso (Rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista. Fone: 3288-0136). Sexta e sábado, 19h30; domingo e segunda, 20h. Ingresso: R$20. Até 26 de novembro.

Teatro: A Profissão da Sra. Warren

O texto do irlandês Bernard Shaw, considerado um dos maiores dramaturgos de língua inglesa, nunca foi montado em São Paulo. Em 1960, recebeu montagem no Rio de Janeiro pelo Teatro dos Sete, com direção e cenários de Gianni Ratto e elenco capitaneado por nomes conhecidos do teatro brasileiro, como Olga Navarro (Sra. Warren), Fernanda Montenegro (Vivie) e Sérgio Brito (Praed). Agora ganha vida nos palcos paulistanos em um espetáculo potente, dirigido por Marco Antônio Pâmio.

Escrita em 1893, e proibida até 1902 na Inglaterra por abordar a prostituição, a peça mantém atualidade desconcertante e caráter transgressor. A trama começa numa casa de campo, alugada pela jovem Vivie Warren (Karen Coelho) para poder se dedicar aos estudos. Com apenas 22 anos, a menina foi criada longe da família, cursou os melhores colégios e atualmente estuda na Universidade de Cambridge. A rotina muda quando recebe a visita da mãe (Clara Carvalho), com quem não conviveu, e dos amigos dela, casos do arquiteto Praed (Mário Borges), o barão milionário Sir. George Crofts (Sérgio Mastropasqua), o reverendo Samuel Gardner (Cláudio Curi) e seu filho Frank (Caetano O’Maihlan). A reunião desses personagens irá detonar uma série de faíscas e revelações desagradáveis. A anfitriã descobrirá, por exemplo, que sua refinada educação acabou sendo bancada pela fortuna advinda da rede internacional de bordéis administrada por sua mãe, mantenedora de um estilo de vida incomum até para as classes mais abastadas da época. O choque dramático da informação perturba a filha o suficiente para adotar decisões extremas. Como rejeitar a figura materna, romper com o entorno burguês e assumir plenamente o controle das coisas. O dramaturgo não se preocupa em dissecar os aspectos sentimentais do relacionamento entre as duas protagonistas. Aqui, o conflito de gerações dá vez à uma poderosa crítica social sobre o feminismo e o poder do dinheiro nas relações humanas.  

Pâmio, que decidiu transferir a ação originalmente ambientada no fim do século 19 para os anos 1950, obtém bom rendimento do elenco. A experiente Clara Carvalho confere veracidade à matriarca que, apesar da profissão, é uma figura romântica e imprime-lhe doses de ironia e sarcasmo. Karen Coelho exibe nuances no desempenho de Vivie, uma jovem que encarna a visão hipócrita da sociedade sobre a atividade do meretrício. Ambas protagonizam uma das cenas mais tensas, um afiado colóquio sobre o tipo de trabalho que propiciou o conforto financeiro. Sérgio Mastropasqua convence na pele do aristocrático Crofts, sócio na atividade profissional da Sra. Warren, e revela sua face ordinária ao tentar seduzir a sua filha. Mário Borges mostra atuação segura, encarnando um tipo romântico que impressiona a universitária. Cláudio Curi representa um apreensivo reverendo Gardner, que guarda um segredo sexual do passado. Caetano O’Maihlan é hábil em dissimular o comportamento ambíguo de Frank em seu relacionamento com Vivie.

Como o enredo se desenvolve em vários espaços dentro e fora da casa, Duda Arruk desenhou uma cenografia simples e prática, na qual os ambientes são mais sugeridos que realistas. A eficiente iluminação de Caetano Vilela reforça o tom amargo da história. Fábio Namatame é o responsável pelos elegantes figurinos, que caracterizam apropriadamente a década de 1950, principalmente os vestidos rodados. A trilha original, de Gregory Slivar, pontua todo a encenação, criando os climas necessários aos embates. O teatro de Shaw é, fundamentalmente, um teatro de ideias, que predominam sobre a intriga e a ação dramática. O público acompanha um jogo intelectual fascinante, recheado de diálogos vivos aos quais não faltam cinismo, humor e poesia, movimentado por uma mistura heterogênea de vilões elegantes e perdedores variados.

(Vinicio Angelici – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Ronaldo Gutierrez)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Profissão da Sra. Warren

Texto: Bernard Shaw

Direção: Marco Antônio Pâmio

Elenco: Karen Coelho, Clara Carvalho, Mário Borges, Sérgio Mastropasqua, Caetano O’Maihlan e Cláudio Curi

Estreou: 11/05/2018

Masp (Avenida Paulista, 1578, Bela Vista. Fone: 3938-0697). Sexta e sábado, 21h; domingo, 20h. Ingresso: R$ 30 e R$ 50. Até 22 de julho.

Teatro: A Milionária

Escorado em humor ácido e um convidativo jogo verbal, o teatro do dramaturgo irlandês Bernard Shaw goteja críticas políticas e sociais e apresenta figuras femininas que se movem por dinheiro e têm condutas arbitrárias. O texto foi escrito em meados dos anos 1930, época da ascensão do fascismo, e traz como protagonista a milionária Epifânia, em conturbado processo de separação do marido, Alaster, um boxeador amador peso-pesado, porém um peso-pena na maneira de se comportar. O casamento aconteceu após um desafio. Seu finado pai, por quem nutria uma afeição edipiana, impôs a condição de que o pretendente só casaria com a filha se, em seis meses, conseguisse multiplicar uma ninharia em fortuna. O esportista venceu o desafio, valendo-se de golpes e artimanhas financeiras. Hoje em pé de guerra, ambos se encontram, cada um já com seus respectivos amantes, no escritório do advogado em comum Julius.

A ricaça, que pensa em suicídio, também não se acerta com o recente namorado, um cara metido a intelectual, especialmente depois de se apaixonar por um médico muçulmano, filho de uma lavadeira já falecida. O novo relacionamento, no entanto, também está condicionado a um conjunto de instruções. A do pai dela, a repetição do que foi a exigência em relação à sua primeira união. Da parte da mãe dele, ela deixou determinado que a aspirante ao coração do rapaz precisa passar pela prova de sobreviver com pouca grana unicamente de seu trabalho ao longo de um semestre. Ambos não abrem mão porque estão dispostos a viver de acordo com os desejos legados de seus progenitores.

A montagem dirigida por Thiago Ledier clareja alguns temas caros da dramaturgia do autor, como a acumulação de renda, os direitos dos trabalhadores, os paradoxos da democracia, a desigualdade de gêneros. Tanto o médico quanto a herdeira são personagens que deflagram um saboroso debate ideológico. Ao ser desafiada a viver com grana contada, Epifânia põe a nu o modo de agir e pensar de sua classe social. Ela é a típica exemplar da plutocracia irresponsável, que exerce domínio sobre tudo o que toca, de raciocínio puramente matemático, uma gente que precisa sempre desejar alguma coisa. O oposto dele, um profissional desinteressado em riqueza e dedicado a cuidar dos desvalidos, que enxerga no acúmulo de bens a simbologia do poder. São diferenças que se infiltram no romance e o trincam perigosamente.

Agradável, o espetáculo desliza como enganosa comédia romântica, nutrida por cenas envolventes e de riso fácil. Um exemplo acontece logo no início, momento em que o escritório de advocacia lembra um ringue de boxe. Epifânia acusa o marido de andar com uma moça tosca e que ele tem o péssimo hábito de agredir mulheres. Alaster até admite o abuso, mas assegura ser em legítima defesa.

Toda a encenação, por sinal, transpassa uma dinâmica nervosa. Ledier inoculou vitalidade à ação e coordenou o conjunto para que a mise-en-scène fosse fiel ao espírito da obra. Contou para isso com um elenco sintonizado à proposta, que brinda o espectador desdobrando boas performances. Chris Couto domina o palco na pele dessa aristocrata ao mesmo tempo altiva e assustadora. Sua atuação afiada e vigorosa torna interessante uma criatura mimada e egoísta que, embora tenha todo o ouro do mundo, sente sérias dificuldades em consolidar um amor. Com desempenho enérgico e carisma, Sérgio Mastropasqua dá vida ao ponderado e prudente advogado Julius, uma espécie de mestre de cerimônias, que se esforça para controlar sua indignação e caprichos. Guilherme Gorski faz o marido infeliz da grã-fina, um sujeito engraçado e meio palerma. Sua atual namorada na peça, a perseverante Polly, é interpretada de forma veraz por Priscilla Olyva.     

Convincente, Luti Angelelli encarna Adriano, o namorado temporário da magnata, em participação marcante nos primeiros minutos. Caetano O’Maihlan incorpora com força e firmeza o meticuloso doutor muçulmano, cuja dedicação aos pobres se torna irresistível aos olhos de Epifânia. Cy Teixeira atua em dois papeis, como a secretária do advogado e a dona da fábrica de costura onde trabalha ao lado do marido, vivido por Alexandre Meirelles. No enredo, são procurados pela endinheirada, que está atrás de emprego, e precisam lutar para não serem tiranizados. Mesmo restritos a um espaço de tempo curto, os dois atores oferecem desempenhos vibrantes. Thiago Carreira acumula as funções de gerente do hotel e garçon, desincumbindo-se da missão de forma satisfatória. A cenografia e iluminação, assinadas por César Bento, são funcionais. Os figurinos, criação de Cy Teixeira, revelam-se adequados.   

O público acompanha trama cintilante, povoada por uma série de seres desagradáveis flagrados em situação de vulnerabilidade pelas circunstâncias a que se encontram expostos. Eles falam o que pensam, sem rodeios e disfarces. A egocêntrica e autocrática Epifânia, por exemplo, está tão habituada a conseguir o que quer que chega a atropelar os intrusos em seu caminho. Ela cria empregos, contudo às custas provavelmente da destruição de algumas vidas. Em uma passagem memorável, alguém diz que os pobres não são ricos porque simplesmente têm medo de ficar.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Ronaldo Gutierrez)

 

Avaliação: Bom

 

A Milionária

Texto: Bernard Shaw

Direção: Thiago Ledier

Estreou: 03/08/2018

Elenco: Chris Couto, Sérgio Mastropasqua, Cy Teixeira, Priscilla Olyva, Alexandre Meirelles, Caetano O’Maihlan, Guilherme Gorski, Luti Angelelli e Thiago Carreira.

Teatro João Caetano (Rua Borges Lagoa, 650, Vila Clementino. Fone: 5573-3774). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Entrada gratuita. Em cartaz até 23 de setembro.

 

Teatro: A Noviça Rebelde

Trata-se de um dos mais queridos musicais de todos os tempos, desde sua estreia na Broadway, em 1959. Nenhum outro espetáculo conquistou uma trajetória de sucesso tão duradoura e se instalou na memória afetiva de várias gerações. Após ganhar oito prêmios Tony, a montagem inspirou um icônico longa-metragem (1965) estrelado por Julie Andrews e Christopher Plummer, que chegou a faturar o Oscar de Melhor Filme. A fórmula é simples e funciona: uma sedutora história de amor e uma corajosa fuga dos nazistas.

Ambientada na Áustria pouco antes da Segunda Guerra Mundial, e vagamente baseada em fatos reais, a história conta a saga de uma família aristocrática, que vê sua rotina ser abalada com a presença da noviça Maria. Insatisfeita com sua vida no convento, ela havia sido enviada para trabalhar como governanta de sete crianças irrequietas na casa do viúvo Capitão George Von Trapp. Não demora e ambos se apaixonam, mas o romance é ameaçado por uma rival e pelo clima político cada vez mais opressivo. Em 1938, com a anexação da Áustria pela Alemanha nazista, o barão é forçado a servir na Marinha alemã. Valendo-se de um plano mirabolante, o clã decide fugir para a América para tentar sobreviver de música.

A dupla de diretores Charles Moeller e Claudio Botelho, que já tinha assinado uma leitura do musical em 2008, consegue bom resultado à frente de um elenco de 45 atores. Malu Rodrigues, a filha Louisa na versão anterior, agora encarna a protagonista Maria. Ela amadureceu como intérprete e apresenta desempenho virtuoso, exibindo belíssima voz e alcançando as notas altas com muita segurança – suas cenas com a garotada são envolventes. Com tipo apropriado e empenho visível, Gabriel Braga Nunes dá vida a Von Trapp, herói da resistência à ocupação nazista em seu país. Num registro excessivo e caricato, Marcelo Serrado se mostra à vontade como Tio Max, arrancando boas risadas da plateia. Ambos não têm vocais que impressionam, mas cumprem a função satisfatoriamente.

Dona de voz potente, Gottsha está esplêndida como a Madre Superiora, imprimindo doçura e autoridade ao papel. Os empregados da família são vividos com hilaridade pelos experientes Nábia Villela e Roberto Arduin. Convincente, Alessandra Verney faz uma baronesa fina e elegante e brilha na canção O Que é Que a Gente Faz?. Os capitães nazistas são executados com bom rendimento por Luiz Guilherme e Fábio Augusto Barreto. Jana Amorim, Raquel Antunes e Marya Bravo demarcam desempenhos apaixonados como as irmãs mais próximas à Maria. 

À frente do elenco infantil, na pele da filha mais velha Liesl, a atriz e cantora Larissa Manoela se destaca na deliciosa canção Sixteen Going on Seventeen, um encontro escondido com o namorado Rolf (Diego Montez, em boa performance). Os irmãos são assumidos com graça e talento por Beatriz Dalmolin (Louisa), Leonardo Cidade (Friederich), Dudu Ejchel (Kurt), Valentina Oliveira (Brigitta), Lorena Queiroz (Marta) e Madu Agois (Gretl).

Na parte técnica, Moeller e Botelho contaram com o cenógrafo inglês David Harris, responsável por projetos cênicos de espetáculos como Les Miserables. Ele produziu uma estrutura neutra com efeitos de luz, que lembram pinturas. Os bonitos figurinos, alusivos à primeira metade do século passado, são do também inglês Simon Wells. O diretor musical Marcelo Castro rege uma orquestra de dezoito músicos, um grupo que cintila nas canções da dupla Rodgers e Hammerstein, papas do teatro musical entre as décadas de 1940 e 1950. The Sound of Music, Do-Re-Mi, My Favorite Things e So Long, Farewell são cantadas pelo elenco nas versões em português de Botelho. Completam a equipe, Alonso Barros (coreógrafo), Drika Matheus (designer de luz), Marcelo Claret (designer de som) e Simone Momo (visagismo).

Se o primeiro ato funciona como um típico drama familiar, o segundo adquire contornos políticos. Mesmo com clichês e transições emocionais que parecem um tanto apressadas, o musical tem o condão de agradar públicos variados. Porque todo mundo está diante de decisões difíceis. Maria não se enquadra nas rígidas normas do convento e busca uma alternativa de vida. Von Trapp precisa optar se enfrenta os nazistas ou se deixa o país. Dilemas éticos bastante humanos.     

(Vinício Angelici – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo                                                                                                     

 

A Noviça Rebelde

Texto: Howard Lindsay e Russel Crouse, baseado no livro The Story of the Trapp Family Singers

Músicas: Richard Rodgers

Letras:  Oscar Hammerstein II

Direção: Charles Moeller e Cláudio Botelho

Elenco: Malu Rodrigues, Gabriel Braga Nunes, Alessandra Verney, Marcelo Serrado e outros.

Estreou: 28/3/2018

Teatro Renault (Avenida Brigadeiro Luis Antonio, 411, Bela Vista. Fone: 4003-5588). Quarta a sexta, 21h; sábado, 16h e 21h; domingo, 15h e 20h. Ingresso: R$ 75 a R$ 310. Até 27 de maio.

 

Teatro: Um Panorama Visto da Ponte

A trama desenrola-se no pós-Guerra, em uma América saturada pela migração dos refugiados econômicos. O ponto nevrálgico dos eventos é o bairro proletário Red Hook, no Brooklyn nova-iorquino, domicílio de uma grande legião de imigrantes legais e ilegais. Uma panela de pressão prestes a explodir, diga-se. Nesse ambiente de miséria e degradação, a tragédia enunciada ajunta figuras com arroubos autodestrutivos, caso de um rude trabalhador ítalo-americano. É incrível como este melodrama naturalista escrito em 1957 pelo dramaturgo americano Arthur Miller (1915-2005), que recebeu montagem enérgica de Zé Henrique de Paula, vaticina a questão da identidade e a atual caça às bruxas aos imigrados.   

Tenso e de beleza selvagem, o roteiro expõe como protagonista o estivador Eddie (Rodrigo Lombardi), que mora com a esposa Beatrice (Patrícia Pichamone) e a sobrinha adolescente Catherine (Gabriella Potye), sob os cuidados do casal desde a morte de sua mãe. O casamento de sexo rarefeito gelou de vez e há uma fixação incestuosa não reconhecida entre o homem e a menina – vez por outra ela tem o hábito de pular alegremente no corpo dele, envolvendo as pernas em volta da sua cintura e os braços em torno de seu pescoço. A mulher observa a tudo, mas se esforça em permanecer em silêncio.

Em rota de independência e disposta a aceitar um convite de emprego, Catherine acaba involuntariamente ativando o rastilho da desgraça ao se atrair por Rodolfo (Bernardo Bibancos). Ele é um dos irmãos italianos que a família acolheu clandestinamente em seu apartamento e que ali desembarcaram dispostos a ganhar dinheiro para enviar às suas respectivas famílias pobres na Sicília. O rapaz exala charme e torna-se popular nas docas por saber cantar, cozinhar e divertir os colegas. O crescente envolvimento dos jovens inflama o ciúme e a homofobia de Eddie, incapaz de domar seus sentimentos - cada vez mais hostil com o hóspede, chega a consultar o advogado local Alfieri (Sérgio Mamberti), que também acumula a função de narrador e fala com o público como se este fosse júri. A atmosfera está carregada. O espectador intui que algo terrível está na iminência de acontecer, a catarse é apenas uma questão de tempo.

A encenação descomplicada de Zé Henrique de Paula se desenvolve sem pressa e atropelos. Centra a atenção em desfiar com clareza os acontecimentos, despindo-se de artifícios inócuos, porque acredita no poder do enredo e nas interlocuções viscerais e cruentas. A abordagem, por sinal, emana uma racionalidade impressionante. Em momento algum cede à tentação do puro dramalhão ou da pieguice. Os diálogos são expelidos com intenções, subtextos e camadas sobrepostas. Os personagens, que circulam descalços, se expressam em tons medidos, difusamente perturbados, quase confusos. Todo o horror espraia-se em um cenário, assinado por Bruno Anselmo, fundado por contêineres que demarcam cômodos, docas e ruas. Um telefone público, possível contato para o departamento de imigração, adquire feições sinistras. Nessa espécie de abatedouro, um não pode se esconder do outro.  

O elenco atua em fina harmonia, graças aos desempenhos precisos e aos sentimentos destilados com limpidez comovente. Num trabalho gestual estudado, os corpos sinalizam as fraturas emocionais e os complexos vínculos afetivos daqueles indivíduos em agitação. Na composição do orgulhoso, intempestivo e encurralado Eddie, sujeito que implode sob a intimidação de desejos que mal consegue compreender, Rodrigo Lombardi desengata performance intensa – nota-se a meticulosa partitura corporal de contorcer e curvar os ombros em situações-limites. Uma atribuição difícil porque o personagem tanto se mostra afável quanto assustador, alguém que está perdido muito antes de perder o controle.

Com marcante presença cênica e persuasão, Sérgio Mamberti habita Alfieri, o piedoso advogado que presta auxílio ao protagonista. Exceto duas passagens em que contracena efetivamente com os demais, ele se dirige à plateia como se fosse o coro na tragédia grega, exprimindo ideias e sentimentos gerais. Patricia Pichamone irradia as frustrações da reprimida e envergonhada Beatrice, a companheira que deseja ficar ao lado de seu marido mesmo vendo-o destruir a si próprio e a sua família. Ela imprime rigidez ao papel, potencializando a angústia e a trajetória infeliz da esposa, que por muito tempo tentou ignorar fatos e evidências e agora passou a ser devorada por eles.

As ambiguidades de Catherine, a menina que talvez não perceba o interesse doentio de Eddie por ela, são habilmente capturadas por Gabriella Potye. A atriz expressa a exuberância juvenil e a perplexidade da incipiente adulta, se equilibrando entre a infância que ainda resiste e o despertar da sexualidade. Bernardo Bibancos desembrulha performance desassombrada na criação de Rodolfo, responsável por iluminar a masculinidade ameaçada do estivador. Faz com que o afeto do garoto soe como algo mais vertical do que mera volúpia e descompromisso. Seu irmão mais velho na história, Marco, dono de seu próprio código de honra e de natural força latente, é vivido de forma impulsiva por Antonio Salvador. Embora inocente, é sobre ele que desaguam as consequências do desequilíbrio de Eddie. Gabriel Mello e William Amaral, revezando-se como vizinhos, colegas de trabalho e oficial da imigração, interpretam com segurança e diligência.

Por meio dessa teia asfixiante, aguda e atemporal, Miller despeja um olhar cético ao sonho americano e suas juras de bonança e felicidade. Neste território coexistem homens imperfeitos, moralistas e corretos, dominados mais pelo poder do que pelo amor. Eddie, por exemplo, encampa o típico herói trágico, aquele que não pode mudar sua natureza e é pródigo em fazer escolhas ruins. A impactante e simbólica cena da cadeira retrata de maneira cruel sua impotência moral e viril.    

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Ale Catan)

 

Avaliação: Ótimo

 

Um Panorama Visto da Ponte

Texto: Arthur Miller

Direção: Zé Henrique de Paula

Elenco: Rodrigo Lombardi, Sérgio Mamberti, Antonio Salvador, Bernardo Bibancos, Gabriel Mello, Gabriella Potye, Patrícia Pichamone e William Amaral.

Estreou: 03/08/2018

Teatro Raul Cortez (Rua Doutor Plínio Barreto, 285, Bela Vista. Fone: 3254-1631). Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 80. Até 30 de setembro. 

Teatro: Sutura

O dramaturgo escocês Anthony Neilson tem o hábito de criticar o tipo de teatro que captura e expressa tão somente as preocupações estreitas da classe média londrina. Por ser avesso à essa leitura circunscrita da realidade, ele escreve peças que não aliviam a consciência burguesa e desnudam o lado sombrio da natureza humana. Caso típico desta obra, que andou provocando polêmica, mal-estar e foi acusada até de blasfema em algumas cidades onde foi encenada. Não à toa, diga-se, porque expõe assuntos espinhosos como violência sexual e automutilação, além de diálogos como a de um personagem que confessa sentir tesão ao ver mulheres nuas entrando em câmeras de gás em Auschwitz. Tal conteúdo, presumivelmente pesado, é desafiador para encenadores e atores, pelo seu potencial de incomodar plateias mais conservadoras. 

Com direção de César Baptista, e estrelada por Ivo Muller e Anna Cecília Junqueira, a montagem põe em movimento a história de um casal antagônico cujo esporte preferido é intercalar rispidez e afeto em seu casamento. Eles são duas pessoas mergulhadas num esforço comovente para tentar remendar um relacionamento exaurido e doente. Não é atípico, portanto, que Stu e Abby conversem escrevendo um para o outro em bloquinhos de anotação, numa estratégia comum e naturalmente aceita de interlocução. Já os primeiros minutos dão a chave de que os problemas começaram ou apenas continuam. Isso porque ambos estão vivenciando o dilema de manter ou não a gravidez indesejada dela, uma vez que não se enxergam plenamente preparados para botar alguém no mundo. 

Não linear, o texto deixa no ar uma porção de dúvidas sobre o que realmente está acontecendo, especialmente a partir do momento em que a trama evolui enrodilhando episódios de diferentes períodos, em claro desprezo pela cronologia. Logo surge uma espécie de plano paralelo ou fuga da realidade em que ela faz o papel de uma universitária que paga seus estudos trabalhando como garota de programa e ele é um cliente excêntrico cada vez mais abusivo. São passagens que configuram uma dramatização de fantasias sexuais que vai do clichê ao mais ultrajante - o homem gosta, por exemplo, de exibir imagens pornográficas excessivas que garimpou na internet e uma delas é tão repulsiva que repugna a mulher, embora mais adiante ela irá paradoxalmente mudar de opinião. Estas sequências que compõem um mesmo enredo ganham relevância porque projetam as atribulações amorosas do casal e o estado destrutivo em que se encontram. Aos poucos as lacunas são preenchidas, embora ainda subsistam dúvidas se de fato o que testemunhamos é um mero exercício de fetiches ou um faz-de-conta crucial para manter a união matrimonial depois de terem experienciado eventos arrepiantes.  

O diretor optou por aproximar a audiência da ação, o que potencializa a força do espetáculo, ainda que a atmosfera de tensão nem sempre se mantenha incólume. Nada que comprometa, porque a encenação é poderosa o suficiente para contornar eventuais inconsistências. Nota-se rigor no trabalho e a direção estampa habilidade em instaurar uma conexão natural entre temas embaraçosos, a imobilidade cenográfica, a trilha sonora sugestiva, as cenas de erotismo, o apartamento claustrofóbico e a entrega dos atores. Estes acionam desempenhos convincentes e palpáveis. Anna Cecília Junqueira desenha uma linha verossímel entre a jovem impetuosa e pragmática. Sua Abby é uma figura que parece sentir necessidade de se aviltar, principalmente quando se impõe um ato de autoflagelação, símbolo do trauma de uma perda. Na composição do misógino Stu, o ator Ivo Muller desdobra um homem em rota de definhamento emocional, que extrai doses de perversidade ao imergir em ficções sexuais.

Neilson disponibiliza um olhar frio e autêntico sobre o terreno escorregadio do amor ou, melhor, de como esse sentimento pode ser corroído pela desconfiança e por uma codependência patológica. Há limitações na dramaturgia, como a insuficiência de informações relacionadas ao filho e a falta de uma discussão transparente sobre o sofrimento dividido. Imperfeições que não prejudicam uma narrativa que se transforma em um ciclo inesgotável de culpa, raiva, penitência e luto. Todo esse processo de expiação é acompanhado por um público investido no papel de voyeur, sequioso por saber o que teria sucedido com a criança. Neste drama enevoado e cru, os personagens sabotam o próprio convívio, não sabem viver sem a presença do companheiro e sentem sérias dificuldades em lidar com si mesmos.   

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Bruno Favery)

 

Avaliação: Bom

 

Sutura

Autor: Anthony Neilson

Direção: César Baptista

Elenco: Anna Cecília Junqueira e Ivo Muller

Estreou: 24/04/2018

Oficina Cultural Oswald de Andrade (Rua Três Rios, 363, Bom Retiro. Fone: 3221-5558). Quinta e sexta, 20h; sábado, 18h. Grátis. Até 25 de maio.

 

Teatro: Agosto

A família Weston é um poço de culpas, queixas, tormentos e penitências, nesta obra do dramaturgo americano Tracy Letts. A matriarca, por exemplo, é dona de língua venenosa e não tem medo de ferir quem quer que seja com sua verborragia indomada. As filhas retratam na pele danos emocionais passados e presentes. Neste clã desajustado, o exercício preferido entre os seus membros é a autodestruição. Com o nome em inglês de August: Osage County, estreou em 2007 em Chicago e recebeu na sequência montagem elogiada na Broadway, conquistando inúmeros prêmios importantes. Em 2013 ganhou versão cinematográfica (Álbum de Família), protagonizada por Meryl Streep e Julia Roberts. O título original, aliás, faz referência a um condado ao lado de uma reserva indígena em Oklahoma, entre o Sul e o Meio-Oeste dos Estados Unidos, de planícies áridas e secas, sobretudo no calor de agosto.

Escorada em verdades incômodas, a trama explicita a miséria humana que assola estas figuras disfuncionais. Beverly (Isaac Bernat) foi um poeta de prestígio nos anos 1960 e hoje se entregou ao alcoolismo. Divide a casa escura – por conta da ausência de luz externa - com a esposa, Violet (Guida Vianna), mulher viciada em remédios que luta contra um câncer na boca. Ele acabou de contratar a empregada indígena Johnna (Júlia Schaeffer), a quem a esposa trata com desprezo e preconceito. Certo dia, o marido desaparece e os Weston se veem forçados ao reencontro, o que desdobra uma série de conflitos, escândalos e revelações desagradáveis. Firmada por André Paes Leme, a encenação preserva a dramaturgia sombria do autor, que já teve montado aqui os textos Killer Joe e Bichado.

Com um grupo numeroso em mãos e vários dramas suplementares, como o das filhas em suas incansáveis batalhas para formar famílias platônicas, a direção instaura boa dinâmica e fluidez ao espetáculo. A história foi pensada originalmente para acontecer em um cenário realista, no caso, uma casa assobradada de três andares, cujos cômodos se abrem para a observação da plateia. O formato é descrito na abertura por uma das personagens, para que o espectador imagine o que não será visto. Isso porque, em sua adaptação, Paes Leme e o cenógrafo Carlos Alberto Nunes optaram por uma cenografia de poucos elementos, apenas tapetes e cadeiras que demarcam os ambientes. Cenas e diálogos são alternados e entrecortados, ora falam as pessoas de uma sala ora as de um quarto. O artifício propicia mais agilidade à ação e tonifica os embates. A iluminação de Renato Machado reforça tais ziguezagues. Patrícia Muniz criou figurinos adequados. Ricco Viana assina a trilha sonora, que contribui para ilustrar os climas necessários.

O elenco exibe rendimento homogêneo. Em desempenho visceral, Guida Vianna incorpora a matriarca Violet, fazendo-a com irreverência, ousadia e originalidade. Este crítico assistiu produção em 2008 na Broadway, estrelada pela veterana Estelle Parsons no papel de Violet e, em 2010 em Buenos Aires, outra capitaneada por Norma Aleandro no mesmo papel – é possível afirmar que a atriz brasileira brilha tanto quanto as duas citadas. Letícia Isnard concede veracidade e intensidade à contestadora Bárbara, em processo de divórcio e vivendo relação conturbada com a filha adolescente Jean (Lorena Comparato). Cláudia Ventura interpreta Karen, a noiva iludida ante a possibilidade do terceiro casamento. Marianna Mac Niven dá vida à Ivy, que ainda mora na casa dos pais e planeja fugir para Nova York. Eliane Costa encarna Mattie, que carrega um segredo e mantém vínculo perverso com o próprio filho. Júlia Schaeffer defende a contemplativa forasteira Johnna - por meio dela, Letts aborda a dolorida questão do extermínio indígena na região do Meio-Oeste americano. No elenco masculino, o destaque é Isaac Bernat, em papel duplo (Beverly Weston e Bill, marido de Bárbara). Alexandre Dantas (Steve), Rubens Camelo (Charlie) e Guilherme Siman (Charles Júnior) também apresentam performances satisfatórias.

Por meio da implosão dessa tribo, vitimada por adultério, pedofilia, incesto e discórdias, Letts faz a radiografia do colapso do idealismo americano. Não por acaso, à certa altura, alguém afiança que os Estados Unidos são uma experiência que fracassou. A família Weston poderia muito bem ser a extensão de uma guerra civil. 

(Vinicio Angelici – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Elisa Mendes)

 

Avaliação: Ótimo  

 

Agosto

Texto: Tracy Letts

Direção: André Paes Leme

Elenco: Guida Vianna, Letícia Isnard, Alexandre Dantas, Claudia Ventura e outros.

Estreou: 06/07/2018

Sesc Consolação (Rua Doutor Vila Nova, 245, Vila Buarque. Fone: 3234-3000). Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 12 a R$ 40. Até 5 de agosto.

Teatro: A Ira de Narciso

Cheia de camadas e significados, a peça do dramaturgo franco-uruguaio Sérgio Blanco gera perguntas e dúvidas e desperta infinitas conjecturas e elucubrações. Por conta de seu enredo ambíguo, permite e convida o espectador a tecer nexos e associações, num exercício complicado de dissociar realidade e ficção. Estrelado por Gilberto Gawronski, com direção de Yara de Novaes, o espetáculo insere o público numa história de suspense e mistério, que combina experiências pessoais vivenciadas pelo autor com uma série de situações fictícias. O resultado é ao mesmo tempo instigante e poético. Logo no início, embalado por canções de Roberto Carlos, o ator lê e-mail de Blanco afirmando que só o brasileiro, a quem havia conhecido anos antes num festival de teatro, poderia interpretar o texto. Mentira ou verdade? é a incerteza que sitia e desconcerta a audiência. 

A obra é concebida em torno de um personagem que é o próprio Sérgio Blanco representado por Gawronski. Trata-se de autoficção, gênero literário emergido nos anos 1970 que articula contraditoriamente as categorias autobiografia e ficção – ou seja, autor, personagem e narrador constituem a mesma pessoa. No enredo, o dramaturgo está em Liubliana, convidado para proferir uma palestra sobre O Olhar Poético em Narciso: a Transformação do Real. Desde sua chegada à capital da Eslovênia, ele envia uma série de mensagens para o seu amigo ator, que se encontra no Brasil. Em narrativa nada óbvia e com torções surpreendentes, ele se maravilha com a cidade e descreve, por exemplo, como conheceu e se envolveu sexualmente com um jovem local, com quem se encontra no hotel e no parque. Conta também da preparação da conferência. E menciona, perplexo e abalado, um conjunto de manchas de sangue seco que descobriu no carpete e nas paredes da suíte onde está hospedado, impossíveis de limpar. 

Conforme avança, o espetáculo desembrulha pilhas de informações e abre-se para uma diversidade de vozes e personagens, como o suspeitoso amante, o investigador aposentado, a mãe, os acadêmicos, o diretor do hotel. Aos poucos, a ação adquire feições de thriller policial e quebra-cabeças, com a eclosão de detalhes sinistros. O resultado se revela desconcertante porque não sabemos se os fatos retratados são ou não fiéis e confiáveis. A intenção de borrar o real e o ficcional é notória. Nesse sentido, a figura mitológica de Narciso funciona o tempo todo na montagem como uma metáfora para o olhar do artista – aquele que não escreve/cria para si mesmo porque se ama, mas porque precisa ser amado. Um pensamento que detona meditação preciosa sobre o papel e o lugar do criador e do próprio teatro.

Yara de Novaes faz a encenação escorrer envolvente, obtendo equilíbrio entre ritmo e cadência. A direção não cede à gratuidade e supera com habilidade quaisquer riscos de monotonia, cansaço e aridez. Alcança facilmente o propósito de transmitir intacto o espírito do texto e dá liberdade para o intérprete se movimentar à vontade pelo ambiente cênico. Na cenografia de André Cortez, estruturas sustentam caixas de som que servem tanto como armários para guardar impressos, como frigobar, de onde saem latinhas de refrigerantes e bebidas alcoólicas, e até receptáculo de irradiação de luz. Em uma impressionante alegoria, o protagonista chega a afagar o fóssil diminuto de um mamute.

Uma das razões de a encenação preservar o nível de fascínio e atenção deve-se ao trabalho sensível, interativo e afiado de Gawronski. Seu desempenho meticuloso capta e exprime com sutileza todas as implicações da dramaturgia. De maneira desembaraçada, ele consegue criar climas emocionais intercalados com momentos de luxúria em companhia do amante e passagens irônicas, traduzidas nos encontros com os acadêmicos europeus, intelectuais que alfineta por serem indiferentes ao avanço da extrema-direita e ao drama vivido pelos refugiados africanos. No palco, o ator divide a cena com Murilo Basso, seu duplo, cuja presença existe para potencializar conceitos e imagens. Intenso e provocante, o texto passeia por temas tocantes como o isolamento social, sexualidade, morte, o intrincado labirinto do eu. Ao cabo, Blanco observa o homem contemporâneo e sua inquieta relação com o mundo insólito que habita.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

(Foto Celso Curi)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Ira de Narciso

Texto: Sergio Blanco

Direção: Yara de Novaes                                                                                                      

Elenco: Gilberto Gawronski e Murilo Basso

Estreou: 12/04/2018                                                                                                                 

Sesc Pinheiros - Auditório 3º andar (Rua Paes Leme, 195, Pinheiros. Fone: 3095-9400). Quinta a sábado, 20h30. Ingresso: R$ 25. Até 12 de maio.

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