EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: De Volta a Reims

A jornada do personagem central em seu retorno à cidade natal de Reims, na França, é eivada de simbolismos. Tem o caráter de um confronto incômodo contra fantasmas antigos que ainda insistem em sobressaltar o seu presente. Três décadas se passaram, o funeral de seu autoritário pai recém-aconteceu e ele não quis chegar a tempo, porque declaradamente o desprezava. Trata-se de uma viagem com o intuito de se reconectar com o seu passado e sua família, após longa temporada de ausência estudando em Paris. Seu desembarque será uma experiência perturbadora. Desde sua partida, ainda jovem, vivenciou um turbilhão de mudanças. Virou um intelectual de respeito, assumiu a homossexualidade, superando o trauma dos insultos na infância, e galgou alguns degraus na pirâmide social, que o fizeram se apartar de vez de seu berço proletário. 

Inspirada na obra homônima do filósofo francês Didier Eribon, a dramaturgia assinada por Reni Adriano chega aos palcos com direção de Cácia Goulart e atuação solo de Pedro Vieira. Uma montagem potente, que escoa um conjunto acurado e atualíssimo de reflexões em torno de identidades de classe e sexual. O protagonista quer compreender as engrenagens do determinismo social, a gênese da homofobia e as razões que levaram nas últimas décadas parte de seus parentes, além de nacos expressivos dos trabalhadores locais, a dar votos para a populista e ultradireitista Frente Nacional, após anos votando entusiasticamente no Partido Comunista.

A história recente da política francesa, um fenômeno verificável em vários países, fornece pistas que podem explicar a mudança de comportamento do eleitorado operário. Ao chegar ao poder em 1981, e adotar algumas iniciativas neoliberais, os socialistas foram pouco a pouco se desprendendo dos estratos populares, que se enxergaram negligenciados. Por sua vez, a classe média esquerdista e liberal também se descuidou das demandas e pleitos dos setores menos favorecidos da população. Sem mais o sentimento de solidariedade e companheirismo que o engajamento político propiciava, as camadas operárias tornaram-se vulneráveis aos discursos xenófobos, homofóbicos e nacionalistas. Assim, progressivamente migraram para a extrema direita.

O agora letrado homem sabe que só escapou da sina de ter de largar cedo a escola e ir trabalhar, fado comum da gente pobre da região, graças aos esforços de sua mãe, que custeou a sua formação acadêmica ao acumular funções na fábrica e como faxineira. Peão, o pai desdobrava-se em dois empregos. Exposto à uma cultura de preconceitos, ele desenvolveu uma intolerável homofobia, embora cultivasse orgulho ao ver o filho na televisão, hoje abertamente gay e um bem-sucedido intelectual defensor de minorias. Toda a aversão do pai contra homossexuais não era fruto de uma perversidade genuína, mas moldada pela violência e insensibilidade do meio social em que vivia. Um ambiente desprovido de ideias e ideais, que marcou também sua mãe, exilada dos estudos antes de concluí-los. Como acreditava não ter condições de ficar escolhendo um príncipe encantado, ela se casou com o primeiro que apareceu, porque não podia esperar conhecer um fulano mais inteligente. É interessante como a peça desencava meditações improteláveis acerca dos mecanismos sociais que regem o mundo do trabalho e a seleção social que age no sistema educacional e produz um sistema para os ricos e outro para os pobres.   

Em um palco minimalista, preenchido por sons e imagens projetadas na parede e no corpo do ator, um sereno Pedro Vieira encontra a expressão adequada na composição desse sujeito que entrelaça confissões e análises sociológicas para tentar aclarar seu itinerário existencial. Ele nunca escorrega para o melodrama ordinário. Sua performance emana a inquietação e ansiedade que demarcam a trilha de quem ascende na escala social e os sentimentos conflitantes e contraditórios que assolam aqueles que vivenciam a ruptura dos laços familiares. Falando para si ou para o público, desnuda a dor de alguém flagelado por uma espécie de constrangimento subterrâneo de sua raiz humilde. Nas rodinhas eruditas que frequentava era mais descomplicado falar da sua homossexualidade do que admitir a sua proveniência. O texto, aliás, guarda pontos de conexão entre as narrativas de Eribon e o percurso de Vieira, que deixou o cotidiano de carências e sem perspectivas de Palmeira dos Índios, no agreste alagoano, para arriscar-se na carreira artística em São Paulo - durante a encenação ele chega a resgatar reminiscências, retratos e cantigas.

Há duas cenas emblemáticas neste drama confessional, temperado com sobriedade e sutilezas por Cácia Goulart, que optou por usar uma linguagem poética para fazer deslizar o enredo. Na primeira, a douta figura oferece uma taça de champagne a um espectador, num simulacro dos círculos sofisticados e eruditos a que havia aderido. Em outra, relembra da vez em que, na capital francesa, cruzou por acaso na rua com seu avô, pilotando uma mobilete. A caminho de seu ofício de limpador de janelas, o velho carregava escada e balde. Nesse momento, experimentou o temor de ser flagrado por alguém de seu mundinho burguês. E se tivesse de responder com quem conversava? Afligia-o a percepção de que já reproduzia os valores e julgamentos das elites dominantes.

A obra é um doído ensaio sociológico sobre identidade, genealogia, indulgência, vergonha e culpa. O personagem saiu do armário sexual, mas acabou num armário de classe. Vive a estranha sensação de não pertencer a campo social algum. Sente-se um forasteiro tanto na provinciana Reims quanto na cosmopolita Paris.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Cacá Bernardes)

 

Avaliação: Ótimo

 

De Volta à Reims

Texto: Reni Adriano, livremente inspirado no livro Retour à Reims, de Didier Eribon

Direção: Cácia Goulart

Elenco: Pedro Vieira

Estreou: 13/4/2019

Viga Espaço Cênico (Rua Capote Valente, 1323, Pinheiros. Fone: 3801-1843). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 30. Em cartaz até 26 de maio.

 

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