EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Eu Estava Em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse

O único filho homem de uma família retorna ao lar, após longos anos de ausência motivada por uma áspera briga com o pai. Cinco mulheres, todas sem nome e gerações distintas, o aguardaram ansiosamente por todo esse tempo. Desde que ele saíra, descontrolado e batendo a porta, elas mal conviveram entre si, tampouco efetuaram uma real troca de afetos. A sensação é a de que suas existências ficaram suspensas. Viveram entregues às fantasias e ao exercício do autoengano. Como se fossem personagens de Tchekhov e Beckett.  

A propósito, a presença do jovem não será vista pelo público. E mais enigmático ainda: não se sabe quem ele é, se voltou mesmo, se está vivo, se sua figura não passa de um devaneio compartilhado pelo quinteto e se tudo o que dizem dele deve ser encarado como verdade. Só o conhecemos por meio do olhar e dos relatos desse trágico coro feminino. O fato é que seu presumível regresso acabou pulverizando as ilusões e produziu um inevitável choque de realidade naquela casa.   

O texto do dramaturgo francês Jean-Luc Lagarce (1957-1995), que recebeu montagem envolvente assinada por Antunes Filho, se estrutura como um contínuo fluxo de pensamentos, memórias e imaginação. Uma dramaturgia que se configura a partir do tema da ausência, evoluindo sem pressa e em ritmo cadenciado. O espetáculo fisga o espectador pela energia poética emanada. O primeiro solilóquio, articulado pela Filha Mais Velha, lembra o prólogo das tragédias gregas e funciona como uma síntese da obra. “Eu estava aqui, em pé, como eu sempre estou, como eu sempre estive, imagino isso, eu estava aqui, em pé, e esperava que a chuva chegasse, que ela caísse sobre o campo, sobre as plantações, e sobre o bosque, e que ela nos acalmasse...”

A fala inicial aciona uma série de questões que serão desdobradas pelas demais mulheres, enredadas nessa ladainha de arrependimentos, penitências, frustrações e ressentimentos, pelo sentimento de desperdício de vida. São monólogos que eventualmente dialogam entre si e dão corpo ao faz-de-conta criado em torno das expectativas do retorno de quem partira. Por meio dessa narrativa lírica, o espectador passa não só a compreender as relações no interior desse destroçado núcleo familiar como a observar o looping mental a que estas criaturas passivas estão submetidas.

A rigorosa direção dribla a dificuldade natural de uma peça que exige dicção e sintaxe precisas, entradas e saídas em sincronia, gestos e movimentos meticulosos – o que se vê, afinal, é um falso naturalismo. A encenação escorre como um sonho, sem intenções de resvalar no melodrama. A simplicidade da cenografia de Simone Mina, com cadeiras espalhadas pelo palco quadriculado, símbolos da espera e da pausa, acentua a atmosfera onírica. O ambiente tanto pode significar os contornos do paraíso ou a geografia do inferno.

Antunes Filho reuniu elenco homogêneo e em sintonia com a proposta cênica. Um grupo de atrizes que desfia boas e afiadas performances, porque elas precisam trabalhar as palavras com articulação exata e sensível, sem soar antinatural, e encarnar tipos que vagam como fantasmas. Elas repetem, interpretam e reinterpretam os monólogos, num equilíbrio adequado entre martírio e ansiedade. O público é tocado por essa dor desmedida, tristeza e desassossego. No papel da Mais Velha de Todas, Rafaela Cassol é pungente e ensimesmada. Intensa, Suzan Damasceno destila histeria e dependência no papel da Mãe. Na composição da Filha Mais Velha, Fernanda Gonçalves ativa nuances e compaixão. Segura, Viviane Monteiro faz a Segunda Filha combinando doses de humor e lamúria. Daniela Fernandes concede vida à Filha Mais Nova, impregnando-a de luminosidade e desprendimento.

Este jogo nutrido de armadilhas psicológicas e digressões transforma o simples ato de aguardar alguém em um conto de horror. A história, aliás, permanece um mistério até mesmo para os seus personagens. Lagarce concebeu um poema de luto, um poema do tempo que transcorreu, do tempo que se perde indefinidamente. Certamente há quem ache o espetáculo afetado e pouco aprazível, por conta de seu enredo avesso à linearidade. Isso porque sua construção não é do tipo videogame. A plateia está diante de uma casa de bonecas fantasmagórica, que às vezes lembra A Casa de Bernarda Alba, de Garcia Lorca. Habitada por um clã de indivíduos feridos, para quem a reaparição de um ente desejado não vai significar mudança alguma.    

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Lenise Pinheiro)

 

Avaliação: Ótimo

 

Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse

Texto: Jean-Luc Lagarce

Direção: Antunes Filho

Elenco: Fernanda Gonçalves, Daniela Fernandes, Viviane Monteiro, Suzan Damasceno e Rafaela Cassol.

Estreou: 21/09/2018

Sesc Consolação (Rua Doutro Vila Nova, 245, Vila Buarque. Fone: 3234-3000). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 40. Até 16 de dezembro.

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