Teatro: A Verdade
- Criado em Terça, 28 Janeiro 2020 14:39
- Escrito por Edgar Olimpio de Souza
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Os dois casais desta farsa desaforada mentem para manter as aparências. Alguém é enganado agora, na sequência é sua vez de enganar e depois ele se vê ludibriado de novo. Até o público acaba engabelado neste clássico do adultério, escrito pelo dramaturgo francês Florian Zeller, que recebeu encenação inspirada e espirituosa assinada por Marcus Alvisi. Na trama eivada de reviravoltas e revelações em cascata, Michel (Diogo Vilela) mantém há seis meses um caso extraconjugal com Alice (Carolina Gonzalez), companheira de seu melhor amigo, o desempregado Paulo (Paulo Trajano). Alice, no entanto, não quer mais que os encontros aconteçam apenas em quartos de hotéis. Ela propõe um fim de semana juntos em alguma outra cidade.
A situação começa a descarrilar a partir do instante em que Laura (Bia Nunnes), esposa de Michel, passa a lhe fazer perguntas embaraçosas relacionadas a eventos mal explicados e justificados. Para completar, Paulo, com quem costuma jogar tênis, confidencia a ele que anda meio desconfiado do comportamento da própria mulher. Ou seja, parece que o surrado clichê das inesperadas reuniões de negócios não funciona mais. Ciente de que pode ser desmascarado a qualquer momento, Michel mergulha em um redemoinho de mentiras. Sua tática principal é mostrar indignação quando contraditado – é engraçado observar o marido adúltero se contorcendo e suando nessas circunstâncias. O texto, porém, prepara uma armadilha. De forma tortuosa, como perceberemos, o quarteto se encontra conectado nesse tabuleiro de hipocrisias, fingimentos e dissimulações.
O autor trata de maneira sutil e sinuosa da engrenagem do adultério, da subjetividade da verdade e da natureza viral do engodo. Aliás, ele gosta de tapear o público, como se viu na recente montagem de A Mentira, dirigida por Miguel Falabella, que desfiava a mesma intriga sob um ângulo diferente. O espectador nunca tem certeza de quem está iludindo e em quem se deve acreditar, porque os quatro vivem o tempo todo se desdizendo. A infidelidade pode estar subentendida em uma frase ou olhar, em uma recordação ou promessa não realizada. Traição, de Harold Pinter, é uma influência visível na dramaturgia de Zeller. Com a diferença de que a obra do dramaturgo inglês investigava também outros tipos de traição, como a de valores, princípios, crenças.
Marcus Alvisi imprime uma direção sem excessos e cuidadosa, que assegura a fluência e o ritmo necessários à representação. Assim, consegue preservar não só o suspense e as ironias como o equilíbrio em um jogo cujo poder muda de mãos a cada minuto. O espetáculo parece uma variação mais requintada de um vaudeville e das comédias boulevard, ambos os gêneros caracterizados pelos enredos ágeis e discrição intelectual. Concebida por Ronald Teixeira e Guilherme Reis, a inteligente cenografia presta auxílio valioso à mis-en-scène. Os atores se movimentam em um espaço cênico que abriga os múltiplos ambientes, como um quarto de hotel, casa, consultório médico e vestiário.
O elenco reunido entrega talento e dá conta de incorporar criaturas que empregam a retórica romântica como arma para suas imposturas. Em desempenho vívido e hilário, Diogo Vilela exibe o magnetismo e o pânico genuíno do infiel, um mentiroso para quem todos estão mentindo, que perde o chão nas horas em que sua honestidade é posta à prova e está convencido de que a mentira eventualmente se faz necessária diante da franqueza cruel. Carolina Gonzalez encarna com desenvoltura e naturalidade Alice, a amante tensa, sensual e meio infantil que sofre de dúvidas morais e ameaça revelar tudo. Na pele de Laura, a atriz Bia Nunnes concilia segurança e firmeza na criação de uma figura enigmática, independente e persuasiva. Paulo Trajano representa habilmente o dúbio Paulo, o camarada que não deixa transparecer o que sabe e guarda uma carta no bolso para ser sacada na ocasião adequada.
É notável como esta produção articula as constantes alternâncias de perspectivas e pontos de vista, escorada em personagens que contam uns aos outros versões diversas de suas histórias. Forma-se um quebra-cabeça onde, quanto mais se avança, menos transparente a realidade fica. A comédia propicia uma reflexão sobre certa inviabilidade de o casal viver com fidelidade, as omissões pontuais que atenuam uma verdade dolorosa e a disputa de poder que costuma infectar as amizades masculinas – o jogo de tênis, aqui, serve como metáfora de uma velada luta pela predominância entre Michel e Paulo. Só na aparência superficial, a peça deixa no ar uma questão incômoda: em um relacionamento conjugal, a sinceridade irrestrita emancipa ou aprisiona?
(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )
(Foto Thiago Cardinali)
Avaliação: Bom
A Verdade
Texto: Florian Zeller
Direção: Marcus Alvisi
Elenco: Diogo Vilela, Bia Nunes, Carolina Gonzalez e Paulo Trajano
Estreou: 23/01/2020
Teatro Vivo (Avenida Doutor Chucri Zaidan, 860, Morumbi. Fone: 97420-1520). Sexta, 20h; sábado, 21h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 40 e R$ 90. Em cartaz até o dia 28 de março.
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