EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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MITsp: Mundo no palco

Breves considerações sobre alguns dos trabalhos apresentados na sétima edição da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, que movimentou a cena teatral paulistana de 5 a 15 de março desse ano.  

Farm Fatale. Trata-se de um conto de fadas ecofuturista, assinado pelo dramaturgo e cenógrafo francês Philippe Quesne. Atores transfigurados em espantalhos entram numa fazenda esvaziada, carregando fardos de feno gravados com slogans políticos. Eles são amorosos, têm charme infantil, as vozes soam distorcidas. Cantam, recitam versos e poesias de Shakespeare, compartilham histórias sobre os agricultores para quem trabalhavam, hoje todos mortos, vítimas da industrialização da agricultura e uso de pesticidas na lavoura. Um dos espantalhos é um ex-ativista que participou de protestos contra a poluição e as mudanças climáticas. Outro tenta gravar um canto de pássaro que, junto dos insetos, foram extintos – apenas as vacas geneticamente modificadas sobreviveram. 

O espetáculo se mantém o tempo todo nesse registro surreal, pontuado por questões filosóficas e políticas. Uma abelha rainha sobrevivente é entrevistada para o programa de rádio independente que a turma apresenta. Um porco de plástico em tamanho real se encontra no palco. Próximo dele, uma criatura peluda bota um ovo grande brilhante, que será juntado aos demais ovos mágicos transportados no caminhão da trupe – talvez eles queiram criar uma nova vida, sem a presença dos humanos predadores. (foto acima)

Avaliação: Bom   

 

Casa Mãe. Primeira parte de uma trilogia denominada Contos Imorais, a peça da artista francesa Phia Ménard desembrulha poderosa reflexão sobre uma Europa avessa ao diferente. Sozinha no palco, envergando figurino meio punk, ela manipula uma estrutura de papelão que, aos poucos, adquire a forma do icônico templo grego Parthenon. Durante a execução da obra, a performer corta, encaixa, ajusta, usa varas de apoio. Um esforço físico obstinado, acompanhado com algum suspense e angústia pela plateia. Mais adiante, uma chuva torrencial implode a imponente construção de papel grosso, que se transforma em ruína.

Estamos diante de uma metáfora trágica. Se o berço da civilização é a Grécia, ali acontece figurativamente o seu desmoronamento. No dia seguinte, como que encarnando o mito de Sísifo, ela terá de começar de novo. A lição depreendida é a de que possivelmente seja necessário vivenciar a desconstrução de tudo para outra vez o ser humano reaprender a viver em sociedade, de uma maneira mais generosa e tolerante. (foto acima)

Avaliação: Ótimo   

 

Tu Amarás. A engajada companhia chilena Bonobo examina aqui a cultura da aversão à alteridade, um tipo de comportamento que começou a ser construído desde a chegada do colonizador espanhol à América e a dominação que impôs aos povos nativos. Após o flashback inicial, o espetáculo salta para os tempos atuais e flagra um grupo de médicos chilenos se preparando para uma conferência internacional sobre preconceito na medicina. O motivo é melhorar o atendimento aos amenitas, imigrantes extraterrestres que desembarcaram na Terra para escapar do genocídio em seu planeta natal. Os alienígenas, nunca mostrados, se instalaram marginalmente em um bairro e agora são vítimas do ódio e racismo latentes dos vizinhos.

No papel de vigilantes morais, estes profissionais querem acabar com a desconfiança, discriminação, preconceito e mazelas que assolam os novos habitantes. Acontece que involuntariamente eles, que se consideram indivíduos especiais, vão revelando seus próprios crimes e malfeitorias, tudo aquilo que afirmam combater. A montagem, assentada em diálogos incisivos, ilumina as incoerências e as deformações dos valores  embutidos nos discursos de igualdade e fraternidade. (foto acima)

Avaliação: Ótimo   

 

Babaca. Dirigida por Gisèle Vienne, a partir do livro do escritor americano Dennis Cooper, a obra se vale de fantoches para narrar os terríveis assassinatos em série na vida real cometidos no Texas nos anos 1970 pelo adulto Dean Corll e os adolescentes Wayne Henley e David Brooks. O trio foi responsável pela morte de 27 jovens, executados por gratificação sexual. O ator francês Jonathan Capdevielle interpreta Brooks, que supostamente está reencenando os homicídios para estudantes de Psicologia.

Sentado em uma cadeira, dentro da prisão onde cumpre sua sentença, ele retira os bonecos de luvas que retratam os parceiros dos crimes e inicia os relatos arrepiantes. Sua performance é obsessivamente realista, apoiada em uma diversidade de vozes, sons e gemidos, até das vítimas, transitando entre a ternura e brutalidade, o assustador e o risível, num inspirado trabalho de ventriloquismo. Eventualmente as cenas são interrompidas para que o público possa ler trechos da história impressos em fanzines distribuídos previamente. Visceralmente intensa, a peça percorre temas como homossexualidade, adolescência, violência sexual, perversidade e alienação. (foto acima)

Avaliação: Ótimo   

 

By Heart. O dramaturgo português Tiago Rodrigues escreveu e atua nesta montagem, que presta uma pungente homenagem ao poder da literatura. Dez espectadores se acomodam em cadeiras dispostas em linha no palco para memorizar um soneto shakespeariano. Com nítido senso de humor, que extrai principalmente das previsíveis dificuldades dos participantes, ele incorpora uma espécie de maestro regendo um coral. No final, os voluntários recebem pequeno papel comestível com o soneto de Shakespeare.

Habilmente Rodrigues tece uma engenhosa teia de conexões surpreendentes entre o poema do bardo inglês, a história da sua avó, que legou ao neto a paixão pelos livros, a filosofia humanista de George Steiner, a Rússia stalinista, profetas bíblicos, um programa de televisão holandês e o romance distópico Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, sobre uma sociedade autoritária na qual os livros são caçados e queimados pelo governo. A mensagem política é concreta. Em tempos de confisco do patrimônio cultural e de censura, além do hábito cada vez mais arraigado de se recorrer aos mecanismos de buscas na Internet, a maneira como guardamos o conteúdo dos livros na memória se torna uma arma vigorosa. (foto acima)

Avaliação: Ótimo   

 

Multidão. Com elaborados movimentos coreográficos, a produção, que abriu o evento, é uma criação da artista franco-austríaca Gisèle Vienne ambientada em uma rave. A hipnótica trilha sonora de techno-trance concede ares de fim de mundo ao ritual coletivo protagonizado por quinze performers com indumentária típica da juventude urbana, como jeans, jaquetas e tênis. Desde o início eles se deslocam pelo palco em câmera lenta, sempre alterando a velocidade dos gestos e trejeitos – em certo momento, eles chegam a cair no chão.

Pequenas narrativas e histórias se formam, sob uma acurada arquitetura de iluminação, algumas vezes com o uso de luz diagonal no espaço cênico ou centrada em um determinado personagem. Duas garotas se beijam, um rapaz solitário apenas observa, uma adolescente desfila sua sensualidade, uma briga explode. São cenas de volúpia, violência, amizade, atração e repulsa. Por instantes conversam, mas os diálogos são inaudíveis para a plateia. No fim, como se tivessem em processo de desintegração, eles abandonam o espaço liberando fumaça de seus corpos. (foto acima)

Avaliação: Bom   

 

O que Fazer Daqui para Trás. Nesta montagem, concebida e dirigida pelo performer e coreógrafo português João Fiadeiro, a curiosa peça questiona a natureza do tempo e espaço. O artista propõe uma reversão, dinamitando a ideia de que só é possível entender o tempo como um movimento que flui do passado para o futuro. Performers entram correndo dos fundos do palco, param diante de um pedestal que sustenta um microfone e, ofegantes, contam algum episódio do cotidiano, compartilham um ponto de vista, revelam desejos. Minutos depois retornam, outra vez arfantes, com suas ladainhas um pouco modificadas, produzindo novos sentidos. Há humor nesse circuito cênico que parece sem fim.

Estruturada como uma partitura, a narrativa se desenvolve intercalando falas e silêncios. Próximo do desfecho, os intervalos se encurtam e até desaparecem, o que provoca uma frenética movimentação dos atores. As falas se tornam inconclusivas, porque um interrompe o outro, e mal chegam a ser enunciadas. A respiração é irregular, a exaustão tomou conta dos intérpretes. Para Fiadeiro, o ser humano é assolado pela urgência, a vida se transformou numa corrida incessante e quase nunca é possível discernir, organizar e compreender o seu sentido. (foto acima)

Avaliação: Bom   

 

 

 

 

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