EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Top Girls

A abertura é extravagante e perturbadora. Organizado pela bem-sucedida executiva Marlene, recentemente promovida na empresa onde trabalha, o jantar reúne cinco convidadas de diferentes épocas, egressas da história, literatura, arte e mitologia. Todas envergam figurinos singulares. Há uma arrogante concubina japonesa da era medieval. Uma menina paciente, abnegada e obediente, da obra do escritor inglês Geoffrey Chaucer. Uma intrépida escritora e viajante vitoriana. Uma transgressora que se disfarçou de homem, se elegeu papa na Idade Média, mas comprometeu o seu disfarce ao parir durante uma procissão. Uma camponesa, tema de um quadro do pintor belga Brueghel, que lidera um exército feminino contra demônios no inferno.  

A experiência em comum dessas comensais é, além de perder dinheiro, ter e perder bebês. A contemporânea Marlene, por exemplo, abandonou a própria filha. À medida que o vinho escorre, e o humor continua servindo de tempero, a conversa torna-se gradualmente mais confessional. A heterogênea confraria passa a compartilhar suas biografias conturbadas e os horrores que viveram. Nota-se que cada uma delas pagou um preço terrível pelo seu sucesso no mundo dos homens. 

Inédita no Brasil, a peça da dramaturga inglesa Caryl Churchill examina os papeis disponíveis para as mulheres na sociedade moderna contra o pano de fundo das lutas contra a opressão e os valores patriarcais. Situada nos anos 1980, sob o governo selvagemente liberal de Margaret Thatcher, que entre outras ações fragilizou o movimento sindical, ganhou montagem competente assinada por Laerte Mello. Ele está à frente do inquieto grupo Teatro Fatal Companhia, criado em 2013, que pela quinta vez visita a dramaturgia britânica – a última foi Avenida Cyprus, de David Ireland, no ano passado.

Na sequência da festiva celebração no restaurante, e agora banhada com tintas naturalistas e brincadeiras em torno de estereótipos machistas, a trama desemboca no escritório de recrutamento profissional. Entrevistas com candidatas almejando ascensão se sucedem, em pequenos retratos da ambição feminina. As pretendentes são julgadas com certo desdém, por sua roupa, aparência e idade. Uma das entrevistadas é induzida a não revelar ao futuro empregador o seu plano de casamento com filhos. Pelas outras colegas, o público toma conhecimento de que Marlene merecia upgrade na agência em detrimento de outro aspirante – em uma passagem devastadora, a esposa aparece para defender a promoção do marido. O segundo ato traz ainda duas adolescentes enredadas em um cotidiano vazio, brigas e bullying. Uma delas nutre o desejo de eliminar a mãe.   

No desfecho, ambientado na casa de sua infância, no interior da Inglaterra, Marlene visita a sua irmã mais velha Joyce, abandonada pelo cônjuge tóxico e que sobrevive trabalhando em subempregos. Ela é a típica representante da classe trabalhadora de baixa renda. As duas estão em polos contrários do espectro ideológico. Não demora o confronto. Na verdade, trata-se mais de uma luta de classes, salpicado por segredos dolorosos e sacrifícios pessoais. 

A cuidadosa direção desarma a cilada de lidar com uma dramaturgia discursiva, estruturada com diálogos sobrepostos, especialmente no terço inicial. O diretor torna o fio narrativo coerente, dá ênfase à ótica dos personagens e articula uma encenação sem efeitos estridentes e agradável de se acompanhar. A unidade do conjunto é um ponto forte. Trata-se de uma produção simples, apoiada em espaço cênico minimalista, trilha sonora pontual de Felipe Sales e iluminação correta de Gabriel Savino e Thiago Winter.

Com diferentes níveis técnicos e sem destaques ou solos especiais, o elenco efervescente de nove atrizes, algumas dobrando funções, se esmera em dar credibilidade às criaturas representadas, buscando torná-las tridimensionais. Carol Gomes dedica-se a desenhar com autoridade e musculatura a obstinada Marlene, que deixou para trás os laços familiares e se recusa a marrar a sua história enquanto as demais falam de seus filhos, amantes e maridos. Acredita piamente que o futuro pertence a pessoas como ela.     

A desajeitada Angie, que herdou o impulso materno de se projetar a qualquer custo na vida, é encarnada sem afetação por Katrinny. A menina se mostra problemática desde o começo e sua vulnerabilidade eclode no final desconcertante. Ancorada em desempenho seguro, Claudia Piassi delineia Joyce como alguém envaidecida pela luta por sua própria independência. Fernanda Versolato rende satisfatoriamente na dupla composição de Papa Joana e da companheira do homem que tomou atitude radical ao se ver preterido no trabalho. As demais intérpretes transpiram energia e tensão ao habitar figuras femininas que precisaram se sacrificar para alcançar o pico num universo regido pelo patriarcado. 

Ainda assustadoramente relevante, o texto começa épico, contaminado por comicidade absurda, e desliza para um realismo mordaz. Não por acaso, em ironia rasgada, a agência se chama Top Girls. Aqui elas são parecidas com tubarões. Joyce não teve a chance de estar no topo e a imposição da maternidade acabou se transformando em um fardo complicado de suportar. A iludida Marlene, que se compraz da vitória de pirro num ambiente dominado por homens, desistiu insensivelmente de sua filha e adotou o individualismo thatcherista. 

Caryl discute o que permaneceu igual e o que mudou ao longo dos séculos para o sexo feminino. A relativa facilidade com que algumas conseguem triunfar não abre necessariamente o dique para o progresso das outras. Aquelas que se confraternizaram no jantar de Marlene só saíram de alguma forma vitoriosas quando negociaram com o poder masculino. Uma fala, proferida por umas personagens, dimensiona a questão: “eu não vivi como mulher. Não posso opinar”.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Caco)

 

Avaliação: Bom

 

Top Girls

Texto: Caryl Churchill

Direção: Laerte Mello

Elenco: Carol Gomes, Claudia Piassi, Giovanna Amato, Katrinny, Marcelle Lemos, Nanda Versolato, Raquel Paim, Thais Costa e Tammy Hammal. Apoio: Carol Gonzalez e Duda Meneghel.

Estreou: 24/11/2023

Teatro de Arena Eugênio Kusnet (Rua Teodoro Baima, 94, Vila Buarque). Sexta e sábado, 19h; domingo, 18h). Ingresso: R$ 40. Em cartaz até 17 de dezembro.

 

 

 

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