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Teatro: O Incidente

A trama começa avassaladora. É madrugada e a professora de psicologia Kendra encontra-se agoniada em uma delegacia de polícia de Miami, na Flórida. Ela é uma mulher negra e está em busca de informações sobre o seu filho adolescente, que havia saído de carro com amigos na noite anterior e sumiu após uma blitz policial. Desde então ele não responde às suas mensagens de texto ou chamadas telefônicas. O ex-marido Scott, um investigador branco do FBI, chega dali a alguns minutos. Ambos desejam saber tudo do paradeiro de Jamal, mas os poucos detalhes são fornecidos meio a contragosto pelo novato guarda de plantão, que destila racismo a conta-gotas – ele afirma ser necessário seguir o protocolo de pessoas desaparecidas e que os pais devem aguardar a vinda do chefe do departamento.

O mote da vulnerabilidade de jovens negros diante da polícia preside a peça do dramaturgo americano Christopher Demos-Brown, assinada por Tadeu Aguiar. O texto expõe as entranhas do preconceito e dos estereótipos, que vitimam até os casamentos interraciais. Parte do enredo, por sinal, se concentra nas brigas do casal, separado há quatro meses e com mágoas ainda não curadas. A questão da raça permeia obviamente a trajetória deles, da mesma forma que o papel de gênero se tornou uma rixa no interior da relação. Kendra se queixa de que ele é um pai pouco efetivo na vida do rapaz. Scott refuta qualquer ideia de vitimização de Jamal e argumenta que o filho poderia esquivar-se do racismo evitando usar trancinhas e deixando de portar adesivo no automóvel com mensagem desfavorável aos policiais.

A direção segura de Aguiar conserva a ação em constante fervura e produz uma montagem que nunca escorrega para a polêmica estéril. Mesmo que em alguns momentos soe um pouco didático, o texto evoca questões de inegável atualidade, como racismo, brutalidade injustificada da polícia, família e injustiça. A delegacia fria e estilizada de amplas janelas, concebida por Natalia Lana, é um barril de pólvora prestes a explodir. A chuva torrencial e relâmpagos ocasionais funcionam como previsível metáfora da situação de intermitência emocional daquelas pessoas. A iluminação de Daniela Sanchez satura a atmosfera febril e a trilha composta por João Callado pontua a tensão.

O elenco entrega atuações intensas. Os quatro personagens, que aparecem, saem e depois reaparecem, são críveis e destilam uma retórica pesada em torno de raça e gênero, assuntos ainda distantes de uma solução fácil. Flavia Santana faz de Kendra uma figura inflexível, que mal digere sua irritação pelo fato de o filho ter colocado um adesivo provocativo no automóvel, pelo marido por deixá-los, da polícia por depreciá-la. A atriz expressa a angústia dessa mulher quase sempre na iminência de gritar, que sabe que o cotidiano nunca é tranquilo para os negros, independentemente de sua origem social. Leonardo Franco incorpora o presunçoso Scott, o membro da classe dominante que nunca precisou se comprometer. Sua chegada à delegacia exibindo o seu distintivo muda instantaneamente a temperatura do lugar.

O policial inexperiente, que faz perguntas enviesadas a respeito de Jamal, é vivido com determinação por Daniel Villas. Ele exala a insensibilidade de um agente da lei branco que, se não é racista, demonstra ter a mente impregnada de prejulgamentos. Na composição de Marcelo Dog, o veterano superintendente negro revela-se um profissional resignado, que desenvolveu a habilidade de cruzar os dois lados para conseguir sobreviver. Em algumas cenas curtas, o ator transmite a visão de mundo clara de um homem que enxerga a situação sob variados ângulos e tece observações francas que adicionam textura e peso ao enredo.

Não se trata de uma dramaturgia irrepreensível - a discussão do casal, por exemplo, traz à tona pendências que aparentemente nunca tinham sido discutidas por eles, algo pouco plausível em um relacionamento de muitos anos. Pequenas incongruências, no entanto, não chegam a desidratar a contundência da obra, que vibra com a urgência de uma conversa necessária. O autor fornece uma visão dolorosa dos medos e temores que quase todos os pais de uma criança negra enfrentam diariamente. Faz também um estudo acerca do tratamento desigual que se concede às mulheres em tais circunstâncias, em sentido contrário à tolerância com que os homens são tratados.

Pai e mãe são papeis cruciais para se imergir na história. Kendra amarga a desilusão de ter passado a vida toda tentando manter Jamal em um ambiente seguro e longe das más companhias e agora nota que só isso não foi o suficiente. Por sua vez, Scott está indignado com a mudança repentina de imagem de seu filho, um estudante exemplar que cursou escolas badaladas de maioria branca. O afiado drama de Christopher Demos-Brown mostra que as raízes da intolerância e discriminação continuam firmes abaixo da superfície de civilidade.   

Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )   

Foto (Ricardo Brajterman)

 

Avaliação: Bom

 

O Incidente

Texto: Christopher Demos-Brown

Direção: Tadeu Aguiar

Elenco: Flavia Santana, Leonardo Franco, Daniel Villas e Marcelo Dog.

Estreou: 03/08/2023

Teatro Vivo (Avenida Chucri Zaidan, 2460, Vila Cordeiro). Sexta e sábado, 20h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 120. Em cartaz até 27 de agosto.

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