EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: O Dilema do Médico

Um médico e pesquisador anuncia ter desenvolvido a cura para a tuberculose, na época, início do século 20, uma doença tida como incurável e letal. No entanto, o tratamento está à disposição apenas para um número reduzido de pacientes. Como sua clínica só pode acolher mais um doente, há dois candidatos disputando a terapia - um jovem talentoso, mas amoral, artista plástico e um honrado clínico totalmente dedicado à classe dos marginalizados. 

Escrita e encenada pela primeira vez em 1906, a sátira do dramaturgo irlandês Bernard Shaw (1856-1950) arremessa dardos tanto contra a prática da medicina privada, num tempo em que o Estado abria mão de sua responsabilidade pública na área da saúde, quanto à decência de gente que brinca de Deus e só se preocupa com suas contas bancárias. Dirigido por Clara Carvalho e encenado pelo Círculo de Atores, que nos últimos anos tem se debruçado sobre a dramaturgia do autor, o espetáculo é uma comédia que camufla uma tragédia.

A trama apresenta cinco caricaturas de médicos, um grupo de amigos que se reúne no consultório particular do doutor Colenso Ridgeon para cumprimentá-lo pela recente conquista do título de cavaleiro, concedido a ele por sua contribuição à medicina. O colóquio dos compadres, que parecem formar uma conspiração para leigos e não uma profissão, revela-se um desfile de criaturas que compartilham suas próprias teorias sobre como curar quase tudo, um tipo de vigarice, diga-se, aceito passivamente pela classe alta.

O enredo acelera após a chegada de Jennifer, anunciada pela funcionária de longa data Emmy. A visitante é mulher de Louis Dubedat, um gênio artístico tuberculoso que precisa urgentemente de socorro. No início, Ridgeon não se interessa muito pelo caso, mas fica impressionado ao contemplar alguns dos trabalhos do rapaz. Para complicar as coisas, ele se apaixona pela moça, rompendo a sua sina celibatária, possível razão dos desconfortos físicos que anda sentindo. Mais adiante, descobre que o seu colega pobre Blenkinsop, um idealista que receita remédios naturais e só atende quem não pode pagar, também está morrendo de tuberculose e requer salvação. O impasse está dado. Como Salomão, deve decidir qual deles é mais precioso para a sociedade e será o último escolhido para o procedimento experimental.

Sem precisar gastar energia entupindo a encenação de referências contemporâneas, a montagem desembrulha um debate envolvente e divertido sobre os “assassinos licenciados ignorantes”, como Shaw gostava de etiquetar estes agentes da saúde. Clara Carvalho tem uma visão clara da medula da história e a pilota de maneira fluída e com rigor cênico. A direção traz à tona a essência dos personagens e extrai de uma obra de mais de um século cada centímetro de sua relevância.   

Híbrido de nomes de gerações e trajetórias distintas, o elenco entrega performances focadas e resiste à tentação da caricatura. Com recursos técnicos aprimorados e sensibilidade, Sergio Mastropasqua sugere em Ridgeon que existe algo de trágico em um homem inclinado a imolar sua ética profissional. Na pele da cativante Jennifer, a atriz Bruna Guerin imprime delicados contornos e um ar de desesperada vulnerabilidade a uma mulher que não regula esforços para exaltar as virtudes e a arte do seu marido.                                                                                   

O bígamo e narcisista Dubedat, que cultiva o péssimo hábito de pedir dinheiro emprestado e não pagar, é desenhado por Iuri Saraiva com dissimulação e acento anárquico. À certa altura, o pintor espeta discurso imprevisível sobre moralidade, esfregando uma singular noção de valores que afronta o senso moral comum. Oswaldo Mendes projeta com autoridade o discreto, sentencioso e aposentado médico Patrick Cullen, para quem as novas descobertas científicas não passam de reciclagem de velhos estudos.

Na composição do cirurgião Cutler Walpole, um palerma que acredita que toda patologia é consequência do envenenamento do sangue e basta remover o inexistente saco nuciforme, Rogério Brito avoluma sua performance com gestual cômico. Na mesma chave de humor, Renato Caldas distingue-se ao dar vida ao presunçoso e afetado doutor Ralph Bloomfield, adepto da ideia de que todas as enfermidades podem ser erradicadas à base de medicamentos que estimulam os fagócitos.

Luti Angelelli é crível na caracterização do oprimido e de aparência maltrapilha Blenkinsop, visto pelos demais como um clínico medíocre. Guilherme Gorski emana segurança como o médico Schutzmacher, orgulhoso da posição que desfruta na coletividade e por sua clientela de elevado poder aquisitivo. Nábia Villela interpreta Emmy com tamanho desembaraço que agiganta um papel pequeno. Restritos à pontuais intervenções, Márcia de Oliveira (Minnie), Rogério Pércore (Redpenny, Morte e Secretário) e Thiago Ledier (jornalista) preenchem o palco destilando desempenhos corretos e sinceros.

A não realista cenografia de Chris Aizner resolve de maneira simples a necessidade de três ambientes – consultório, restaurante e estúdio do artista. Painéis móveis são coreograficamente manipulados para criar os recintos. A coparticipante iluminação de Wagner Antônio se vale de contrastes, como na sequência da morte, que ganha atmosfera pesada. Marichilene Artisevskis assina o figurino, aplicando tons de modernidade ao padrão formal e elegante daquele período histórico. A música de Gregory Slivar complementa a cena com o uso de bons efeitos sonoros.   

Nesta peça, Shaw explicita graves questões que ainda reverberam nos dias atuais. O acesso global aos cuidados médicos continua sendo um ideal distante para a maioria da população. E o dilema do título enseja a discussão de como a presunção de imparcialidade médica mantém-se longe da pacificação. O impactante desfecho põe cara a cara Ridgeon e Jennifer, que se reencontram na exposição póstuma que esta organizou. Ele faz uma confissão terrível e ela alavanca uma defesa amorosa do artista, cuja carreira foi ceifada por uma deslealdade inominável. A herança artística de Dubedat será a partir dali carregada pela ex-companheira, agora empoderada. Trata-se de uma sequência seminal, em que a perseverante Jennifer repudia e liquida o celebrado Ridgeon.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Ronaldo Gutierrez)

 

Avaliação: Ótimo

 

O Dilema do Médico

Texto: Bernard Shaw

Direção: Clara Carvalho

Elenco: Sergio Mastropasqua, Iuri Saraiva, Bruna Guerin, Oswaldo Mendes, Rogério Brito, Renato Caldas, Luti Angelleli, Guilherme Gorski, Nábia Villela, Márcia de Oliveira, Rogério Pércore e Thiago Ledier.

Estreou: 20/01/2023

Auditório do MASP (Avenida Paulista, 1578). Sextas e sábados, 20h; domingo, 19h. Em cartaz até 26 de março. 

 

 

 

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