EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: O Bem Amado

Na provinciana, moralista e mística Sucupira ninguém morre e crime algum é cometido, o que desespera o prefeito recém-eleito Odorico Paraguaçu, que precisa urgentemente inaugurar a sua principal obra. Afinal, ele venceu a eleição montado no slogan “vote em um homem sério e ganhe um cemitério”. Escrita em 1962 pelo dramaturgo baiano Dias Gomes (1922-1999), esta sátira com um olho no riso e outro na crítica social e política migrou ao longo das décadas para o teatro, virou telenovela e minissérie e foi transposta para as telas de cinema. Agora sobe aos palcos novamente, em versão musical dirigida por Ricardo Grasson e embalada por canções assinadas por Zeca Baleiro e Newton Moreno. O ator Cássio Scapin interpreta o célebre protagonista, um papel vivido no passado pelos pesos-pesados Paulo Gracindo e Marco Nanini.  

Pelo viés do humor, a dramaturgia se utiliza de um fictício lugarejo no litoral baiano, que sobrevive da pesca e dos eventuais veranistas, para escancarar a engrenagem que move a política brasileira, especialmente as práticas corruptas que subsistem mais visivelmente no chamado Brasil profundo. Traz à tona a figura dos coronéis ou protetores, aqueles que exercem controle sobre suas comunidades sempre em favor de seus interesses pessoais. Sem perder a atualidade sessenta anos depois, o roteiro esculpe um painel inconfundível das mazelas da administração pública nacional, que desafiam os padrões de decência e correção políticas - troca de favores, arranjos a portas fechadas, relações clientelistas, estratégias nada democráticas para se perpetuar no poder e outras infâmias que emperram a modernização do País.

A trama tem início quando um morto precisa ser transportado para o município vizinho e o oportunista Odorico espreita uma oportunidade de tocar campanha política tendo como bandeira a construção do primeiro campo santo em Sucupira. Escolhido para o cargo com o voto popular, ele começa a selar acordos escusos e desviar recursos da educação e das demandas emergenciais para cumprir a promessa. O problema é que o empreendimento fica pronto, mas nunca é batizado porque não existe defunto para sepultar, o que impulsiona críticas da oposição, principalmente da sensacionalista imprensa local, personificado pelo jornalista Neco Pedreira. O impeachment passa a ser uma possibilidade concreta.  

Com a cooperação das irmãs Cajazeiras (Dorotéia, Dulcinéia e Judicéia), falsas carolas com quem mantém envolvimento amoroso, o mandatário se despe de qualquer escrúpulo e aciona uma série de artifícios e ardis para conseguir um cadáver. Entre outros expedientes controversos, manda trazer de outro município um doente em estado terminal para se tratar em Sucupira - até um discurso e a marcha fúnebre foram preparados. Ele também nomeia como delegado Zeca Diabo, um matador profissional, ex-morador da localidade, que ganha carta branca para “sacudir a marreta” em nome da lei. Cada vez mais kafkiano à medida em que as tentativas fracassam, a solução da vez é forjar um caso de infidelidade conjugal envolvendo a mulher de seu fiel secretário pessoal Dirceu Borboleta.

Grasson encadeia habilmente as ações e traça a montagem com linhas seguras e toques pessoais, propiciando que a encenação transcorra sem entraves ou tempos mortos. Ancorado no realismo fantástico e na comicidade temperada com ingredientes fellinianos que surge naturalmente, proveniente de um enredo coalhado de situações absurdas e impossíveis, o diretor instaura uma comunicação direta e intensa com o espectador.

O elenco desembrulha interpretações precisas e bem desenhadas, que distinguem personagens que transitam entre a ingenuidade, a esperteza e o deboche. Em atuação inspirada, Cássio Scapin incorpora Odorico Paraguaçu, uma personalidade populista e manipuladora, cuja fala verborrágica pitoresca soa invariavelmente vazia. Marco França, também diretor musical, mostra desenvoltura na pele do jagunço Zeca Diabo, espécie de alegoria da fúria do sujeito reprimido. A recalcada Dorotéia (papel de Kátia Daher), que sabe estar sendo enganada pelo prefeito, a apaixonada Dulcinéia (Luciana Ramanzini, que acumula ainda a figura de Chico Moleza, o coveiro sem trabalho) e a ingênua Judicéia (Rebeca Jamir) ganham espessura cômica em cena, em performance vibrante e solar das três atrizes.

Proprietário do jornal A Trombeta, o combativo Neco Pedreira é representado por Guilherme Sant´Anna, intérprete de grandes recursos técnicos e uma voz poderosa que lhe confere autoridade. Eduardo Semerjian tira partido da composição corporal e da máscara expressiva na criação de Dirceu Borboleta, braço direito do alcaide, o retrato do brasileiro facilmente manipulável. Heitor Garcia (Primo Ernesto e Demerval), Roquildes Junior (Mestre Ambrósio), Ando Camargo (Vigário e Zelão) e Bruno Menegatti (músico) protagonizam sequências importantes, não cedem à caricatura fácil e compõem harmoniosamente a trupe.

A equipe criativa contribui para que a mis-en-scène adquira o colorido de celebração cômica. Símbolo de praças e jardins públicos de cidadezinhas do interior, o coreto concebido pelo cenógrafo Chris Aizner captura e expressa a pulsação de Sucupira. O pavilhão funciona como ponto de encontro, palanque para discursos políticos e furtivos romances. Está atracado ao espetáculo como os figurinos de Fábio Namatame, que dizem muito sobre personalidades, relacionamentos e conflitos interpessoais, assim como a eficiente iluminação de Cesas Pivetti e o singular visagismo de Alisson Rodrigues. A dinâmica trilha sonora de Zeca Baleiro e Newton Moreno, executada e cantada ao vivo, ajuda a avançar a história e compreender melhor as atitudes e motivações dos personagens.

A peça respira vitalidade e alegria, movimentada por estes tipos excêntricos e desavergonhados e um sucessivo jogo de trapaças, armações e reviravoltas.  Pequenas piadas e momentos descontraídos garantem leveza a um texto que apresenta Sucupira como microcosmo do Brasil. O Bem Amado é uma comédia, mas não seria equivocado entendê-la pelo prisma da tragédia. 

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

(Foto Ronaldo Gutierrez)  

 

Avaliação: Ótimo

 

O Bem Amado

Texto: Dias Gomes

Direção: Ricardo Grasson

Elenco: Ando Camargo, Bruno Menegatti, Cassio Scapin, Eduardo Semerjian, Guilherme Sant’Anna, Heitor Garcia, Kátia Daher, Luciana Ramanzini Marco França, Rebeca Jamir e Roquildes Junior.

Estreou: 05/08/2022

Sesc Santana (Av. Luiz Dumont Villares, 579, Santana). Sexta, 21h; sábado, 20h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 12 a /R$ 40. Em cartaz até 11 de setembro.

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