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Teatro: Tudo

O dramaturgo, diretor e ator argentino Rafael Spregelburd não foge da polêmica ao sintetizar os fracassos humanos, num exame irônico do desvirtuamento da essência dos grandes arquétipos e discursos. A instigante peça, que recebeu encenação inspirada de Guilherme Weber, escancara as travas que afetam a dinâmica do trabalho num escritório do Estado, o rebaixamento da religião à crendice rasteira e a conversão da arte em mais um produto descartável de consumo. A degradação dos valores dessas três instituições, que estruturam e interpretam a realidade, é desnudada por meio de um tipo de comicidade desesperada, argumentos filosóficos, narrativas bíblicas e lampejos de mitologia grega.

Ambientada numa repartição pública, a primeira sequência reúne quatro funcionários que não compreendem bem as suas atribuições. Há a presença ainda de um narrador, que comenta de forma desdenhosa os acontecimentos. A alienação, no entanto, não parece incomodá-los. Um deles chega a descrever diligentemente as tarefas ali executadas, porém o incomum é que a exposição do funcionamento está a léguas de distância de uma gestão competente. O quarteto se perde em diálogos inúteis e evasivos. Briga-se por causa do sumiço de um documento. Uma querela do passado gera desconfianças entre dois colegas. Todos especulam a razão de outras agências pegarem fogo. Um deles se mostra indignado com o número exagerado de mictórios nos banheiros de cada andar. Alguém passa o tempo inteiro se desfazendo de móveis e objetos. De repente irrompe uma discussão acalorada em torno de um casaco e cédulas de dinheiro são incineradas. Molde de uma instância do Estado assolada pela irracionalidade administrativa.  

A sequência seguinte se passa durante a ceia de Natal, evento citado anteriormente, protagonizado por uma família disfuncional. A anfitriã convidou um amigo do emprego com o propósito de deixar enciumado o seu ex-marido, um professor de filosofia que cultiva o hábito de se envolver amorosamente com suas alunas. O jantar inclui também um artista conceitual e sua namorada, uma criatura que interage à base de monossílabos e palavras desconexas.

O eixo central gira em torno de um fato já decorrido que está longe de apaziguado. Uma coleção de livros foi queimada na bienal de arte como parte de uma performance e tanto o performer quanto o homem que ingenuamente lhe emprestara os volumes discutem o significado da controversa realização. A tensão aumenta porque começa uma batalha verbal sobre a natureza e o sentido da produção artística. 

Mais curta, a trama derradeira transcorre na residência de um casal em crise, durante uma noite chuvosa. O marido é um escritor de livros infantis, aludido rapidamente no enredo precedente, surpreendido ao chegar em casa e encontrar um médico, que havia sido convocado às pressas pela sua esposa por suspeitar do estado febril do bebê. Uma narradora orbita na cena evocando passagens do Antigo Testamento, atiçando uma correspondência entre os flagelos da passagem bíblica e a situação em andamento. Desde que deu à luz, a mulher entrou em parafuso, passou a temer a morte do filho e evita chamá-lo pelo nome.

Sem maneirismos na direção, Guilherme Weber estabelece uma afinada sincronia de movimentos e coesão dramática. Explora o despojamento do espaço, valoriza a essência dos conflitos e promove natural integração entre elenco e dramaturgia. Os cinco intérpretes estão adequados aos respectivos papéis e disponibilizam teatro pulsante. Não existe qualquer protagonismo e cada um tem o seu grande momento na montagem.

Claudio Mendes, Dani Barros, Julia Lemmertz, Márcio Vito e Vladimir Brichta mobilizam intensamente seus meios expressivos. Dão vida a criaturas neuróticas, compulsivas e delirantes sob uma camada de aparente normalidade. Gente palpável e, ao mesmo tempo, títeres das circunstâncias, que respondem por suas próprias escolhas e omissões. Julia exibe sólida presença no palco. Dani desembrulha desempenho entre o cômico e o pungente, com meticulosa composição corporal. Brichta irradia energia e carisma. Vito e Mendes se apoiam com firmeza em indicações sutis do texto.  

A cenografia limpa de Dina Salem Levy dispensa a grandiosidade. Nenhum material mencionado, como impressos, artefatos e móveis, é representado ou visibilizado. No quadro inicial, um servidor alega que por conta do acúmulo de tralhas no gabinete, um conjunto nunca visto pelo público, acabou levando uma mordida de alguma coisa escondida. A iluminação de Renato Machado, com destaque para um painel móvel fosforescente situado no teto, os figurinos de Kika Lopes, a trilha sonora de Rodrigo Apolinário e a preparação corporal de Toni Rodrigues operam em harmonia. 

Não deixa de ser provocativa a maneira como o autor aponta o dedo para a perversão que acomete a arte, a religião e o Estado. No episódio do meio, por exemplo, o artista é reconhecido internacionalmente por sua obra, mas ele parece pouco inclinado a transformar o mundo através de sua criação, vista como uma iniciativa de empreendedorismo. De um bem essencialmente simbólico acabou virando uma mercadoria vendável em festivais, bienais, galerias e plataformas digitais. Na terceira parte, a fé passa a ser tão somente uma questão de crença, que dispensa evidências como prova. Aqui, a personagem feminina substitui a religião pelo pensamento mágico-místico, que não faz mal desde que impeça que ocorra algo ruim. Tudo é uma fábula moral, igual às de Esopo, mas sem animais, como o espectador é lembrado logo no início.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

(Foto Flávia Canavarro)

 

Avaliação: Ótimo

 

Tudo

Texto: Rafael Spregelburd

Direção: Guilherme Weber

Elenco: Claudio Mendes, Dani Barros, Julia Lemmertz, Márcio Vito e Vladimir Brichta.

Estreou: 01/09/2022

Sesc Bom Retiro (Alameda Nothmann, 185, Campos Elíseos). Quinta a sábado, 20h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 50. Em cartaz até 09 de outubro.

 

 

Teatro: A Última Sessão de Freud

Existe Deus? Num período em que a Europa tinha razões de sobra para questioná-lo, a controvérsia pontuou a conversa entre o psicanalista Freud e o escritor irlandês C.S. Lewis em setembro de 1939, mas não foi solucionada. Inspirada no livro Deus em Questão, do psiquiatra americano Armand M. Nicholi Jr, a peça do dramaturgo americano Mark St. Germain põe em contraste a filosofia racionalista do pai da psicanálise, para quem a crença no criador não passava de uma fantasia infantil, e a ótica mais espiritual do autor da série literária As Crônicas de Nárnia, recém convertido ao cristianismo. O instigante texto, que ganhou montagem à altura assinada por Elias Andreato, discute questões como ciência e fé, amor e sexo, Deus e o diabo, ressentimentos e o sentido da vida. 

O encontro fictício entre estes pensadores do século passado transcorre no gabinete inglês de Freud pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial. A perspectiva de Hitler despejar bombas sobre suas cabeças a qualquer minuto é aterrorizante para o refugiado judeu de 83 anos, imolado por um doloroso câncer na boca, que fugiu da Viena natal ocupada por nazistas e aterrissou na Inglaterra acompanhado de esposa e filha. Não é menos assustador também para o veterano da Primeira Guerra Mundial, hoje na faixa dos quarenta anos, que chegou atrasado ao compromisso porque os trens operavam para desocupar escolas e hospitais antes dos esperados bombardeios aéreos.

O psicanalista não está incomodado com o atrevimento de Lewis, que em sua última obra literária o retratou de forma satírica. O que o anda irritando é o fato de o convidado, sem mais nem menos, ter deixado de ser um descrente ardoroso e virado um cristão de primeira hora, uma metamorfose que considera inaceitável. Como afirma no início, ele quer aprender como alguém da sua inteligência pode “abandonar a verdade por uma mentira insidiosa.” 

Logo se nota que a peça oferece pouca ação física e privilegia o confronto do pensamento religioso versus pensamento científico, rinha verbal eventualmente interrompida por telefonemas, surtos de agonia oral do analista e o noticiário cada vez mais preocupante sobre a iminência do conflito bélico - os boletins da rádio fornecem uma tensão velada que, à parte o preparo intelectual, expõem a vulnerabilidade emocional dessas duas figuras históricas.

O diretor Elias Andreato areja a encenação com uma cadência elegante e equilibrada. Instaura uma teatralidade vibrante ao valorizar as interpretações e o pingue-pongue de ideias e pontos de vista discordantes. Demarcada por estantes de livros, o famoso sofá-divã e uma vitrine de estatuetas religiosas de civilizações antigas, o escritório cenográfico, concebido por Fábio Namatame, traduz um ambiente onde o fascínio pelo conhecimento se revela enraizado.  

Odilon Wagner (Freud) e Claudio Fontana (Lewis) captam a ferocidade cerebral desses homens em desacordo e esculpem uma dinâmica que adiciona texturas ao trabalho. Wagner é magistral ao transmitir a sinceridade, a índole irascível, o comportamento professoral e a discreta soberba do psicanalista debilitado, surpreendentemente disposto a acabar com sua própria vida. Em instante algum o ator beira a caricatura. Com uma tarefa menos complicada, porque Lewis é mais conhecido por sua literatura do que por sua personalidade, Fontana explora de maneira capilar a tensão e a inquietação de seu personagem. Em determinadas passagens, como quando dispara o alarme de uma sirene de ataque aéreo, o escritor sugere sentir as consequências de sua participação no campo de batalha na Primeira Guerra Mundial. Em outras, se mostra generoso e compassivo ao se preocupar com a avançada doença do médico.

Ancorados em comentários cheios de sarcasmo, opiniões inabaláveis e egos inflados, Freud e Lewis são determinados a ter a última palavra e parecem minimamente propensos a repensar sua visão de mundo. Um tenta injetar dúvidas na convicção do outro e ocasionalmente se percebem sitiados, embora sem nutrir a sensação de derrota. O espectador atento vislumbra que a disputa ideológica está fadada a não ter um vencedor. O espetáculo, aliás, outorga peso igual a ambos os lados da discussão. “Amar o próximo? Dar a outra face? Com Hitler?”, provoca Freud. “Foram os homens, não Deus, não Lúcifer, que criaram prisões, escravidão, bombas”, retruca Lewis. “Se existe um Deus e ele é um Deus bom, como tal sofrimento poderia fazer parte do seu plano?”, alfineta o anfitrião. “Deus quer nos aperfeiçoar através do sofrimento”, afiança o visitante.  

A peculiar relação de Freud com a filha e o romance pouco convencional de Lewis com a mãe de seu melhor amigo também contaminam a reunião. Os dois se intrometem ainda na vida privada do outro e identificam graus de repressão. “Estamos conversando há um bom tempo e esta é a primeira vez que você menciona sexo”, Lewis caçoa, numa óbvia alusão à ênfase da psicanálise em desejos ocultos. É relevante constatar como eles conseguem manter um diálogo fértil e acalorado sem perder a noção de respeito mútuo. Uma cordialidade que caiu em desuso nos dias atuais em que dogmas e certezas absolutas dividem a sociedade em tribos fechadas em si.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto João Caldas)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Última Sessão de Freud

Texto: Mark St. Germain

Direção: Elias Andreato

Elenco: Claudio Fontana e Odilon Wagner

Estreou: 03/03/2022

Teatro Porto (Rua Barão de Piracicaba, 740, Campos Elíseos). Sexta, 20h; sábado, 17h e 20h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 50 a R$ 90. Em cartaz até 7 de agosto.

Teatro: Longa Jornada Noite Adentro

A tragédia exposta aqui por Eugene O´Neill gira em torno da família Tyrone, cujos elementos se baseiam na biografia do dramaturgo americano. Em sua dramaturgia, os personagens vivem à margem da sociedade e nutrem a ilusão do chamado sonho americano. Dirigido por Sergio Módena, o espetáculo começa com Edmund (alter ego do autor) lendo a carta onde ele entrega os originais da peça para a sua companheira Carlota, justamente na data em que comemoravam o décimo segundo aniversário de casamento.

Toda a ação acontece em um único dia no ano de 1912 na casa de veraneio dos Tyrone. Os seus quatro membros se encontram à hora do café, durante o almoço e o jantar e, finalmente, à meia-noite. São momentos, segundo o escritor, em que as famílias costumam se reunir. Metaforicamente, esse intervalo simboliza o tempo da vida.

O patriarca James (Luciano Chirolli) é um homem idoso que há muito abandonou as aspirações de se tornar um grande ator e se resignou a viajar apresentando sempre a mesma peça comercial, um trabalho que não lhe rende prestígio, mas dinheiro - segundo o crítico de teatro Décio de Almeida Prado, O´Neill não teve a coragem de citar o título da obra que encenava, o romance de aventura O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Sua esposa Mary (Ana Lúcia Torre) abandonou seus sonhos do passado de virar atriz ou freira e hoje se conformou em acompanhar o marido em suas constantes turnês. Viciada em morfina, ela demonstra pouco ou nenhum contato com a realidade desde o nascimento do filho mais novo. Este é Edmund (Bruno Sigrist), um jovem que pretende ser escritor, porém, a carreira pode estar comprometida porque ele tem de lutar contra a tuberculose que o acomete. O irmão mais velho, o alcoólatra Jamie (Gustavo Wabner), foi forçado a seguir os passos do pai e fracassou. Não bastasse a dificuldade de se manter nos empregos, ele ainda tem inveja do talento do caçula. Agregada ao núcleo familiar, a criada Cathleen (Mariana Rosa) a tudo acompanha e algumas vezes tenta dar apoio à patroa.

São figuras em pleno processo de desmoronamento, também vítimas do destino, uma sina que não conseguem controlar. O texto não extrai força somente de seu enredo. Há um drama psicológico no ato de revisitar o passado e trazê-lo ao presente, o que propicia uma sucessão de amargos e até violentos embates entre eles. Na encenação pulsante de Módena, a estrutura de arena do teatro serviu para se criar um ambiente intimista e uma atmosfera de suspense cada vez mais densa.

O elenco exibe performances inspiradas. Luciano Chirolli mobiliza sua conhecida técnica na composição de James, sublinhando o desencanto e as inseguranças de alguém que viu os seus sonhos se espatifarem. Num papel difícil e já interpretado por grandes damas do teatro brasileiro (Cacilda Becker, Cleyde Yáconis e Natália Thimberg) e no cinema por Katharine Hepburn, a atriz Ana Lúcia Torre brilha como a frágil e sofrida Mary, uma mulher que se esforça inutilmente em esconder o seu vício. Gustavo Wabner imprime a amargura e desilusão de Jamie. Com bom rendimento, Bruno Sigrist consegue mostrar a vulnerabilidade de Edmund, que também bebe por se sentir culpado pelo estado emocional da sua mãe. Mariana Rosa é correta na pele da empregada.

A encenação é encorpada por uma equipe técnica de primeira linha. André Cortez concebeu bonitos móveis brancos que, iluminados pela luz branca da sempre competente Aline Santini, provocam belíssimo efeito plástico. Fábio Namatame projetou figurinos clássicos e elegantes. A montagem é pontuada pela envolvente trilha sonora de Marco França.

Vale lembrar que ao finalizar a peça em 1941, O´Neill decidiu que o texto não poderia ser lido nem montado ao longo dos 25 anos seguintes à sua morte. Justificou a exigência com o argumento de que uma das personagens retratadas ainda vivia. No entanto, a esposa Carlota não respeitou a condição e autorizou a publicação e montagem em 1956, três anos depois do falecimento do dramaturgo.

(Vinicio Angelici - O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

Longa Jornada Noite Adentro

Texto: Eugene O'Neill

Direção: Sergio Módena

Elenco: Ana Lúcia Torre, Luciano Chirolli, Gustavo Wabner, Bruno Sigrist e Mariana Rosa.

Estreou: 25/06/2022

Teatro Tucarena (Rua Monte Alegre,1024 - Perdizes). Sexta e sábado, 20h30; domingo, 18h30. Ingresso: R$ 80,00. Em cartaz até 04 de setembro.

Teatro: Cabaret dos Bichos

Um cabaré decadente e esfumaçado serve de ambiente para uma envolvente adaptação musicada de A Revolução dos Bichos (1945), o provocativo e provocador romance do escritor e jornalista britânico George Orwell (1903-1950). Socialista democrático, o autor examina a revolução soviética, numa releitura feroz e satírica sobre o desvirtuamento de seus princípios originais e o papel exercido por algumas de suas personalidades históricas, como Josef Stalin, representado por Napoleão, e Leon Trotsky, simbolizado por Bola de Neve.

Sob arrojada assinatura de Zé Henrique de Paula, a montagem faz uso da estrutura do metateatro para desenvolver o enredo, conduzido por uma trupe de artistas saltimbancos. Com acento circense e recursos do vaudeville, o espetáculo reedita fundamentos caros ao universo dramatúrgico e musical de Brecht e Kurt Weill - interação direta com o público, personagens que espelham classes sociais, a história filtrada pela metáfora e o grotesco crivado pela chave do humor. 

A fábula sombria transcorre em uma fazenda. Insatisfeitos com as más condições em que vivem, os bichos tocam uma insurreição contra o proprietário explorador e o expulsam da Granja do Solar, agora rebatizada Granja dos Bichos. Líderes do motim bem sucedido, os porcos Napoleão, Bola de Neve e Gogó engendram o Animalismo, um sistema de pensamento escorado na minimalista sentença “quatro pernas bom, duas pernas ruim”. Uma nova bandeira é perfilhada e um hino composto, cuja letra realça ideais de igualdade, liberdade e solidariedade. O ímpeto revolucionário, no entanto, acaba sendo gradualmente revertido. Intelectualmente ardilosos, os suínos começam a abraçar privilégios que anteriormente condenavam. Napoleão aplica um golpe no companheiro de luta, assume o poder absoluto e passa a reprimir violentamente os opositores. Com comida de menos e trabalho de mais, os animais são diariamente doutrinados pela propaganda e instados a cultuar a imagem do autocrata. 

Dinâmica e imaginativa, a direção se aproveita da narrativa da repressão política e policial e a manipulação da subjetividade, temas de fundo da obra, para fincar pontes e nexos com a realidade política brasileira. O exílio de Bola de Neve, por exemplo, é em Curitiba. Líderes não têm provas, mas convicções. Em solo musical, um porco faz gestos de armas com as mãos. Episódios como os de Brumadinho e Mariana e a lembrança do assassinato de Marielle são ecoados em cena. Nesta versão, nem todas as criaturas da fazenda ganharam corpo e voz, mas as que circulam pelo espaço condensam e traduzem fielmente o sentido e a essência do livro. E a montagem delineia uma surpresa, ativada pelo surgimento pontual de uma figura basilar (Rodrigo Caetano, em pulsante desempenho) extraída do clássico 1984, do mesmo autor.   

Em clima de festa e dissipação, e afinado com a música e a interpretação, o elenco homogêneo se desdobra em oito personagens, ora povoando o diminuto palco ora transitando entre mesas, sofás e cadeiras. O dispositivo cênico simples e funcional de Cesar Costa exprime simbolicamente um cabaré berlinense, onde se bebe, come, dança e se assiste shows. Quem pilota a casa é um sarcástico Mestre de Cerimônias, vivido com especial malícia e desembaraço por Zé Henrique de Paula (substituto de Pedro Silveira, de atuação contagiante). Em representação robusta, Dennis Pinheiro dá vida à Napoleão, o porco opressor que adota comportamento humano, como dormir em camas e fumar cachimbos. Flávio Bregantin imprime relevo na composição de Bola de Neve, defensor da estratégia de espalhar a sublevação para outras propriedades da região. Gogó, porta-voz que vive justificando as regalias e impulsos autoritários do chefe, transpira viscosidade na criação de Fernando Lourenção. Dono de boa presença cênica, Daniel Cabral interpreta um cavalo devotado à causa revolucionária, fadado a um destino trágico. Em correta medida, Bruna Guerin e Amanda Vicente (éguas) e Fabiana Tolentino (cabra) se projetam em seus respectivos papéis, preenchendo-os de impulso, vitalidade e despojamento.   

A equipe criativa tonifica o trabalho. Fran Barros concebeu um desenho de luz que instaura diferentes atmosferas tanto para as passagens da fábula orwelliana quanto para os números musicais dentro do cabaré. Zé Henrique de Paula produziu figurinos que não plagiam os animais, mas ilustram as suas personalidades. A diretora musical Fernanda Maia, que rege a irradiante orquestra, compôs belas canções originais que ajudam a avançar e comentar a trama. As coreografias de Gabriel Malo e a direção audiovisual de Laerte Késsimos são competentes.

Orwell acreditava que as revoluções tinham o condão de mudar o poder de mãos, porém, sem transformar seus alicerces sociais básicos. Parece que estamos irreversivelmente fadados à sina de, independentemente do espectro político, termos uma casta de poucos poderosos a explorar uma maioria sem direitos. No enredo fabular, que num ângulo mais amplo esquadrinha a gênese dos regimes totalitários, o desejo de comunhão e liberdade é gangrenado pela ambição e o domínio alcançados pelos porcos.

As diferenças entre humanos e os porcos governantes se esfarelam ao longo dos anos. Os animais da granja já não sabiam mais distinguir quem andava de quatro pernas e quem tinha duas. Orwell certamente leu Esopo - em suas fábulas morais, o escritor da Grécia Antiga exibia humanos animalizados e animais humanizados. O último mandamento da granja, após o torpe apagamento dos anteriores, é paradigmático. “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros”. A utopia virou distopia.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Ronaldo Gutierrez)

 

Avaliação: Ótimo

 

Cabaret dos Bichos

Dramaturgia, Letras e Direção: Zé Henrique de Paula, a partir do romance A Revolução dos Bichos, de George Orwell

Música Original e Direção Musical: Fernanda Maia

Elenco: Amanda Vicente, Bruna Guerin e Luci Salutes (alternantes), Dan Cabral, Dennis Pinheiro, Fabiana Tolentino, Flávio Bregantin, Fernando Lourenção e Pedro Silveira.

Estreou: 23 de maio

Núcleo Experimental (Rua Barra Funda, 637, Barra Funda). Segunda e terça, 21h. R$ 30 (ingressos vendidos pelo Sympla). Em cartaz até 5 de julho.

 

Teatro: O Bem Amado

Na provinciana, moralista e mística Sucupira ninguém morre e crime algum é cometido, o que desespera o prefeito recém-eleito Odorico Paraguaçu, que precisa urgentemente inaugurar a sua principal obra. Afinal, ele venceu a eleição montado no slogan “vote em um homem sério e ganhe um cemitério”. Escrita em 1962 pelo dramaturgo baiano Dias Gomes (1922-1999), esta sátira com um olho no riso e outro na crítica social e política migrou ao longo das décadas para o teatro, virou telenovela e minissérie e foi transposta para as telas de cinema. Agora sobe aos palcos novamente, em versão musical dirigida por Ricardo Grasson e embalada por canções assinadas por Zeca Baleiro e Newton Moreno. O ator Cássio Scapin interpreta o célebre protagonista, um papel vivido no passado pelos pesos-pesados Paulo Gracindo e Marco Nanini.  

Pelo viés do humor, a dramaturgia se utiliza de um fictício lugarejo no litoral baiano, que sobrevive da pesca e dos eventuais veranistas, para escancarar a engrenagem que move a política brasileira, especialmente as práticas corruptas que subsistem mais visivelmente no chamado Brasil profundo. Traz à tona a figura dos coronéis ou protetores, aqueles que exercem controle sobre suas comunidades sempre em favor de seus interesses pessoais. Sem perder a atualidade sessenta anos depois, o roteiro esculpe um painel inconfundível das mazelas da administração pública nacional, que desafiam os padrões de decência e correção políticas - troca de favores, arranjos a portas fechadas, relações clientelistas, estratégias nada democráticas para se perpetuar no poder e outras infâmias que emperram a modernização do País.

A trama tem início quando um morto precisa ser transportado para o município vizinho e o oportunista Odorico espreita uma oportunidade de tocar campanha política tendo como bandeira a construção do primeiro campo santo em Sucupira. Escolhido para o cargo com o voto popular, ele começa a selar acordos escusos e desviar recursos da educação e das demandas emergenciais para cumprir a promessa. O problema é que o empreendimento fica pronto, mas nunca é batizado porque não existe defunto para sepultar, o que impulsiona críticas da oposição, principalmente da sensacionalista imprensa local, personificado pelo jornalista Neco Pedreira. O impeachment passa a ser uma possibilidade concreta.  

Com a cooperação das irmãs Cajazeiras (Dorotéia, Dulcinéia e Judicéia), falsas carolas com quem mantém envolvimento amoroso, o mandatário se despe de qualquer escrúpulo e aciona uma série de artifícios e ardis para conseguir um cadáver. Entre outros expedientes controversos, manda trazer de outro município um doente em estado terminal para se tratar em Sucupira - até um discurso e a marcha fúnebre foram preparados. Ele também nomeia como delegado Zeca Diabo, um matador profissional, ex-morador da localidade, que ganha carta branca para “sacudir a marreta” em nome da lei. Cada vez mais kafkiano à medida em que as tentativas fracassam, a solução da vez é forjar um caso de infidelidade conjugal envolvendo a mulher de seu fiel secretário pessoal Dirceu Borboleta.

Grasson encadeia habilmente as ações e traça a montagem com linhas seguras e toques pessoais, propiciando que a encenação transcorra sem entraves ou tempos mortos. Ancorado no realismo fantástico e na comicidade temperada com ingredientes fellinianos que surge naturalmente, proveniente de um enredo coalhado de situações absurdas e impossíveis, o diretor instaura uma comunicação direta e intensa com o espectador.

O elenco desembrulha interpretações precisas e bem desenhadas, que distinguem personagens que transitam entre a ingenuidade, a esperteza e o deboche. Em atuação inspirada, Cássio Scapin incorpora Odorico Paraguaçu, uma personalidade populista e manipuladora, cuja fala verborrágica pitoresca soa invariavelmente vazia. Marco França, também diretor musical, mostra desenvoltura na pele do jagunço Zeca Diabo, espécie de alegoria da fúria do sujeito reprimido. A recalcada Dorotéia (papel de Kátia Daher), que sabe estar sendo enganada pelo prefeito, a apaixonada Dulcinéia (Luciana Ramanzini, que acumula ainda a figura de Chico Moleza, o coveiro sem trabalho) e a ingênua Judicéia (Rebeca Jamir) ganham espessura cômica em cena, em performance vibrante e solar das três atrizes.

Proprietário do jornal A Trombeta, o combativo Neco Pedreira é representado por Guilherme Sant´Anna, intérprete de grandes recursos técnicos e uma voz poderosa que lhe confere autoridade. Eduardo Semerjian tira partido da composição corporal e da máscara expressiva na criação de Dirceu Borboleta, braço direito do alcaide, o retrato do brasileiro facilmente manipulável. Heitor Garcia (Primo Ernesto e Demerval), Roquildes Junior (Mestre Ambrósio), Ando Camargo (Vigário e Zelão) e Bruno Menegatti (músico) protagonizam sequências importantes, não cedem à caricatura fácil e compõem harmoniosamente a trupe.

A equipe criativa contribui para que a mis-en-scène adquira o colorido de celebração cômica. Símbolo de praças e jardins públicos de cidadezinhas do interior, o coreto concebido pelo cenógrafo Chris Aizner captura e expressa a pulsação de Sucupira. O pavilhão funciona como ponto de encontro, palanque para discursos políticos e furtivos romances. Está atracado ao espetáculo como os figurinos de Fábio Namatame, que dizem muito sobre personalidades, relacionamentos e conflitos interpessoais, assim como a eficiente iluminação de Cesas Pivetti e o singular visagismo de Alisson Rodrigues. A dinâmica trilha sonora de Zeca Baleiro e Newton Moreno, executada e cantada ao vivo, ajuda a avançar a história e compreender melhor as atitudes e motivações dos personagens.

A peça respira vitalidade e alegria, movimentada por estes tipos excêntricos e desavergonhados e um sucessivo jogo de trapaças, armações e reviravoltas.  Pequenas piadas e momentos descontraídos garantem leveza a um texto que apresenta Sucupira como microcosmo do Brasil. O Bem Amado é uma comédia, mas não seria equivocado entendê-la pelo prisma da tragédia. 

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

(Foto Ronaldo Gutierrez)  

 

Avaliação: Ótimo

 

O Bem Amado

Texto: Dias Gomes

Direção: Ricardo Grasson

Elenco: Ando Camargo, Bruno Menegatti, Cassio Scapin, Eduardo Semerjian, Guilherme Sant’Anna, Heitor Garcia, Kátia Daher, Luciana Ramanzini Marco França, Rebeca Jamir e Roquildes Junior.

Estreou: 05/08/2022

Sesc Santana (Av. Luiz Dumont Villares, 579, Santana). Sexta, 21h; sábado, 20h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 12 a /R$ 40. Em cartaz até 11 de setembro.

Teatro: A Pane

O que é a culpa e como mensurá-la? Nesta instigante obra do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt, que recebeu inspirada adaptação teatral assinada por Malú Bazán, a questão se infiltra na cruel trajetória do personagem central, que carrega uma transgressão gravada na alma mesmo que não saiba efetivamente qual seja. O fato, porém, é que ele precisa assumir a responsabilidade por suas ações, afinal, pode ter existido um desejo consciente por trás de tudo.

Publicado em 1955, o instigante conto ganhou versão para rádio, foi transposto para o teatro e migrou para a televisão e cinema. A trama brota quando o jaguar dirigido pelo representante comercial Alfredo Traps sofre pane mecânica num vilarejo suíço. Como os hotéis da região estão lotados, ele se hospeda na isolada mansão de um ex-juiz. Além do anfitrião, três amigos dele estão ali presentes - um promotor, um advogado de defesa e um que tardiamente descobrimos ter sido um carrasco. Todos construíram carreiras vitoriosas em suas respectivas atividades e dominam os labirintos sinuosos do direito. Hoje estão aposentados e cultivam o singular hábito de se reunirem todas as noites para reencenar processos judiciais dos quais participaram. Se não há um convidado especial para o entretenimento, eles teatralizam julgamentos históricos, como os de Sócrates, Jesus e Joana d'Arc. 

Para não parecer ingrato com quem o abrigou e por achar a proposta divertida, o visitante aceita encarnar o papel de réu. Em meio a muita comida e garrafas de vinhos finos, ele é encorajado a discorrer sobre sua vida pregressa. Traps foi um garoto pobre que ascendeu socialmente, mas logo admite que nem sempre agiu corretamente. A partir de seu relato, acaba sendo facilmente manipulado pelo promotor e até por seu advogado de defesa, que reinterpretam e distorcem a sua história de forma ardilosa. O viajante passa a desenvolver uma culpa presumível – alguns atos e condutas cometidos por ele são usados e tornados verossímeis para associá-lo à morte de seu chefe.  

O inusitado nessa dramaturgia salpicada de mordacidade consiste em observar que o hóspede se envaidece ao ser visto como executor de um crime psicologicamente criativo, realizado sem armas ou violência física, que se não fosse o processo judicial em andamento jamais viria à tona. Mesmo reputando-se inocente, cai na tentação de assumir sua culpa e se lambuzar da atenção e respeito daí decorrentes.  

A direção concebeu uma montagem simples e despojada, centrada na potência da retórica, no sutil desenvolvimento narrativo e no desempenho apurado do elenco. A encenação sublinha as notas de suspense e a comicidade nas entrelinhas, expandindo o sentido do jogo de xadrez verbal - a cenografia de Malú Bazán e Anne Cerutti (também responsável pelo figurino, composto por ternos e casacas) sugere um tabuleiro e a existência de uma escada infinita remete à intrigante criação Relatividade, do artista gráfico holandês Escher. 

Nesta arena banhada pela luz correta de Wagner Pinto e música original de Dan Maia, a experiente trupe reunida empresta sua técnica e sensibilidade aos personagens. Com ar fanfarrão, Oswaldo Mendes representa o juiz que pilota o passatempo grotesco e equaliza a batalha entre o promotor e o defensor, um duelo que rende bons momentos no palco. Antonio Petrin aciona a sua conhecida força expressiva na pele do promotor propenso a quebrar regras segundo suas conveniências. O advogado de defesa ganha tempero dissimulado na composição de Roberto Ascar. Heitor Goldflus modula a figura ameaçadora do ex-verdugo que se encarregava das execuções da pena de morte. Cesar Baccan inocula veracidade ao inocente Traps, uma criatura de dimensões dolorosamente trágicas. O mordomo é vivido com bom humor por Marcelo Ullmann - são prazerosas as passagens em que ele chega a soprar o script para os colegas. 

A perversão do conceito de justiça, o significado da lei e para que e quem ela serve é um tema recorrente no repertório de Durrenmatt. Em um de seus textos mais famosos, A Visita da Velha Senhora (1956), uma mulher rica e vingativa regressa para sua antiga cidade natal e oferece aos residentes uma quantia vultuosa em troca da morte do homem que a ludibriou no passado.

Aqui, o dramaturgo trafega numa linha mais irônica ao abordar o avesso da capa de respeitabilidade do sistema judiciário. “Não estamos mais presos a formas, protocolos, leis e todo o entulho inútil dos tribunais”, como confessa sem pruridos o juiz. É possível afrontar a lógica e se atribuir um crime a alguém sem maiores complicações. Para tanto, basta transformar uma narração bem-sucedida em um dispositivo de poder. Em O Processo, o célebre romance de Franz Kafka, Joseph K. acreditava que qualquer mal-entendido a seu respeito seria elucidado, porém seus esclarecimentos se tornam inúteis porque ninguém sabia a razão de sua detenção. O título da peça guarda uma dubiedade. A pane pode tanto se referir ao mal funcionamento do automóvel quanto à devastação mental que Traps sofreu durante a espúria sessão, controlada por cavalheiros que montaram uma armadilha sob a aparência de uma reles brincadeira. Durrenmatt tece um retrato assustador de uma sociedade em colapso moral.   

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Rogério Alves)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Pane

Texto: Friedrich Dürrenmatt

Direção: Malú Bazán

Elenco: Antonio Petrin, Cesar Baccan, Heitor Goldflus, Marcelo Ullmann, Oswaldo Mendes e Roberto Ascar.

Estreou: 14/01/2022

Teatro Faap (Rua Alagoas, 903, Higienópolis). Sexta, 21h; sábado, 20h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 60 a R$ 80. Em cartaz até 12 de junho.

 

 

Teatro: Virginia

O palco vazio parece bordar um mundo impalpável e cerebral.  Na pele da escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941), Cláudia Abreu caminha pelo ambiente cênico envergando um vestido branco. Sua expressão é sobrecarregada e, de repente, enseja movimentos de quem acabou de submergir. Em meio ao barulho da água perfurada pelo corpo prestes a perder de vez os sentidos, passa a conjurar um conjunto de lembranças, reflexões, vozes.

Escrita pela atriz, e dirigida com emoção límpida e simplicidade por Amir Haddad (codireção Malu Valle), o monólogo começa envolvente. O público é instado a imergir na mente de uma mulher que, aos 59 anos, fustigada por mais uma crise mental, encheu de pedra os bolsos do seu casaco e se afogou no rio próximo de sua casa de campo, onde morava com o marido editor - seu cadáver foi descoberto três semanas depois por grupo de crianças. Antes da trágica decisão, ela havia deixado uma carta para sua irmã e outra para o companheiro.

Para dar conta do multifacetado inventário pessoal da artista, Cláudia leu os seus diários e ensaios e revisitou as suas principais obras, como Mrs. Dalloway (1925), Ao Farol (1927) e As Ondas (1931). Nutrida desse pulsante substrato encenável, construiu uma dramaturgia comovente, de recorte humano e não literário, que flagra a romancista em um instante simbólico, aquele milésimo de segundos anterior ao fim. Talvez tenha se inspirado no princípio de que a proximidade da morte pode suscitar uma montagem da vida, de onde emergem as passagens mais significativas de uma existência. Ao longo de quase uma hora, habita uma criatura atormentada por seus fantasmas interiores, que nunca se ajustou às normas e convenções sociais e se refugiou na literatura. Valendo-se do dispositivo narrativo do fluxo de consciência, que marcou o estilo literário de Virginia Woolf, ela se embrenha sem medo nas memórias atemporais da personagem - os pensamentos, sensações, ideias, dúvidas e questionamentos fluem sem pausas e pontuações.  

Com lente de aumento, o vai e vem emocional conduz para o centro aspectos da existência atribulada da ensaísta. A angústia que vivenciou bem jovem após a morte da mãe, o assédio sexual sofrido do meio-irmão, os colapsos mentais nunca diagnosticados e o estigma daí decorrente, a impossibilidade de frequentar a escola, a convivência com o pai autoritário e a irmã portadora de problemas mentais, a assimetria conjugal, a atuação no círculo de intelectuais, o ímpeto feminista, a inclinação bissexual - ela foi amante da aristocrata poetisa inglesa Vita Sackville-West. Aos poucos, a peça vai compondo uma poderosa meditação sobre a condição feminina, desdobrando ainda a questão de como a loucura não necessariamente se contrapõe à lucidez.  

A direção estabeleceu para a atriz uma performance matizada, que oscila do depuramento de gestos, à modulação vocal e aos movimentos detalhistas, estes esculpidos por Marcia Rubin. Sem carregar a mão, os sentimentos são transfigurados em cena e alcançam plena comunicação artística. Dona de recursos expressivos, que impulsionam o texto e concedem credibilidade ao conflito existencial, Cláudia pinça de cada palavra sua essência. Replica a mesma inventividade da origem literária, ao se apropriar do universo cheio de nuances da autora.  Eventualmente a tensão subjacente é atenuada em sequências em que se entrega à leveza da dança. Capturada, a plateia testemunha um trabalho rigoroso, de contornos delicados e de visível teatralidade.

Como a estrutura narrativa abre-se para a polifonia, o recurso permite a instauração de uma dinâmica em que se pula da fala de um para o discurso de outro, logo sucedido pela dicção de um terceiro e sua substituição por um quarto. O coro tem o condão de desnudar as inquietações e as reações de cada um, os pontos de intersecção entre eles, de como um espelha o outro em diferentes ângulos, como se fosse uma música dissonante em vários tons. A mudança sutil de narrador transcorre sem que seja preciso demarcá-la com tintas pesadas. A força da peça, que jamais perde a voltagem e o interesse, está em seu enfoque decididamente humano. Ao mesmo tempo em que amargou a consciência de viver num tempo e espaço dominados pela beligerância e masculinidade, Virginia Woolf revelou admirável capacidade de transcendência.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Rogério Faissal)

 

Avaliação: Ótimo

 

Virginia

Texto e Interpretação: Cláudia Abreu

Direção: Amir Haddad

Codireção: Malu Valle

Estreou: 09/07/2022

Sesc 24 de Maio (Rua 24 de Maio, 109, Centro). Quinta e sexta, 20h; sábado e domingo, 18h. Ingresso: R$ 12 a R$ 40. Em cartaz até 7 de agosto.

Teatro: Foxfinder - A Caça

O ano foi catastrófico para o fazendeiro Samuel e sua esposa Jude no nicho rural inglês com ar checoviano onde moram. Provavelmente eles não vão conseguir cumprir a meta anual de produção agrícola que lhes foi designada pelo governo atual. Raposas podem estar na raiz do fracasso na colheita, assim como são presumivelmente responsáveis por outros males da humanidade, segundo o regime. Não bastasse a tragédia em curso no campo, ambos ainda enfrentam o luto da perda à primeira vista acidental de uma criança.

Um temido foxfinder se encontra a caminho da propriedade. William é o oficial do Estado, treinado desde a infância por um sombrio instituto para rastrear raposas, identificar terrenos infectados por elas e apanhar os cúmplices desses canídeos - por sinal, Jude recebeu de uma moradora local um panfleto subversivo que desmistifica a farsa tramada por quem detém o poder. Se os bichos forem descobertos, a fazenda será fechada e o casal conduzido para trabalhar em fábricas onde a expectativa de vida não supera três anos.

Na fábula distópica da dramaturga inglesa Dawn King, que recebeu inspirada montagem assinada por Walyson Mota, estes seres são bestas míticas com poderes sobrenaturais para corromper as pessoas e dominar suas consciências. Não se engana quem pensou na peça As Bruxas de Salém, de Arthur Miller. À medida que a investigação de William avança, segredos e fatos incômodos dos anfitriões começam a brotar. Tal é a histeria que até mesmo a vida sexual de Samuel e Jude está em análise, o que coloca em risco o relacionamento deles. 

A direção articula com desembaraço a alegoria fantasiosa do texto com o realismo visceral e a tensão febril dos eventos. Sob iluminação de Matheus Brant, a ação acontece predominantemente sobre um pequeno palco (cenário de Geandre Tomazoni e Gustavo Godoy), que induz a uma atmosfera de claustrofobia - apenas algumas cenas transbordam para fora desse espaço restrito que se confunde com o território de um pesadelo. A angústia, a ansiedade e apreensão dos personagens fluem naturalmente para a plateia.

O elenco entrega uma experiência teatral instigante. Bons embates se sucedem. A disparidade entre os camponeses incultos e o comportamento formal e normatizado do inquisidor é bem caracterizado pelos três respectivos intérpretes. Os figurinos de Marichilene Artisevskis realçam o contraste. Valendo-se de expressão monástica, Eduardo Mosri infunde vida ao obsessivo rastreador William, uma figura que pela primeira vez se depara com a noção de dúvida. O ator realça a ingenuidade, a insegurança e autoridade dele, que por trás da fachada fria parece esconder a frustração de um jovem submetido a repressões.  

Ernani Sanchez é convincente na pele de Samuel, que se transformou em um homem quebrado após a morte do filho. Consumido pelo desespero, empunha uma arma e circunda de forma deprimente a plataforma cênica, em atitude tão animalesca quanto aquelas bestas que tenta caçar. As ovelhas e os coelhos podem estar sinalizando que algo estranho se esconde no bosque. Assim refugiado na ilusão, desbasta o peso da culpa que recai sobre os seus ombros.     

Jude é vivida com ímpeto e intensidade por Carolina Fabri, que clareia a incredulidade e as desconfianças da fazendeira. Ansiosa em proteger o marido e a vida deles, ela só quer a partida do inspetor, que há dias se instalou na sua residência e passou a demonstrar crescente atração por ela. Carol Vidotti incorpora Sarah, a vizinha autodeterminada e desafiadora que alerta sobre o arbítrio e o perigo simbolizado pelos caçadores. No entanto, ser flagrado denunciando o embuste é extremamente perigoso – faíscas escapam em um confronto dela com William. Sua lealdade à amiga, inclusive, será posta à prova. 

Ousada e perturbadora, a dramaturgia ilustra a exploração da crença como ferramenta útil de manipulação das massas para se fomentar um caldeirão de fanatismo e construir um ambiente fascista. Escassez de alimentos, aquecimento global, doenças, ideologias autoritárias, políticas belicistas e notícias falsas produziram um clima de paranóia e intolerância. A autora cutuca o vespeiro. As tais raposas, que ninguém nunca avistou nem ouviu e tampouco viu pegadas, podem se insinuar em seus sonhos, ler sua mente e contaminar comunidades com doses de fundamentalismo religioso ou político e ideias perigosas. São bodes expiatórios convenientes para governantes justificarem suas próprias falhas e incapacidades.

Se hoje é politicamente incorreto culpar minorias quando as coisas não funcionam direito – vide exemplos como o dos judeus na Alemanha hitlerista e os refugiados de países pobres na Europa -, incriminar animais não deixa de ser uma narrativa oportuna. Uma frase inquietante é despejada próximo do desfecho: “a ausência de uma raposa é mais um sinal de sua presença e faz parte da normalidade”. A besta não está lá fora, mas dentro de nós. A impressão é a de que chafurdamos em um estado orwelliano moderno.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Halei Rembrandt)

 

Avaliação: Ótimo

 

Foxfinder – A Caça

Texto: Dawn King

Direção: Wallyson Mota

Elenco: Carolina Fabri, Eduardo Mosri, Carol Vidotti e Ernani Sanchez.

Estreou: 02/05/2022

Teatro Sérgio Cardoso (Rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista). Segunda e terça, 19h. Ingressos: Grátis. Reserva pelo site da Sympla. Em cartaz até o dia 14 de junho.

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