Teatro: Tom na Fazenda

Uma agressão física acontece quando dois personagens se conhecem, mas não há revide ou algum tipo de retaliação por parte da vítima. A peça do dramaturgo canadense Michel Marc Bouchard, dirigida por Rodrigo Portella, é repleta de elementos assustadores. O jovem publicitário Tom viaja até uma remota fazenda rural para acompanhar o funeral de seu amante, um cara que se deitava com todo mundo e acabou de morrer em um acidente de trânsito. Ao descobrir rapidamente que a família enlutada nada sabia sobre sua existência e sua ligação homoafetiva com o falecido, se apresenta como colega de trabalho. Agatha, inclusive, acreditava que o filho tinha um amor de longa data na cidade e está magoada porque a moça não deu o ar da graça no enterro. Francis, o mais velho, sabia sobre a vida secreta de seu irmão e passa a intimidar o visitante se ele revelar a verdadeira natureza de sua união. Uma quarta figura, que surge às tantas, despenca ali para acumular mais mentiras, transformando tudo em pesadelo.

Como o hóspede é instado a permanecer na casa, um complexo drama psicossexual começa a ganhar rosto. Ambivalentes, o homofóbico Francis e o cativo voluntário Tom desenvolvem um vínculo gelatinoso, ilustrado por insultos verbais e enfretamento carnal – em uma sequência enervante, um deles é amarrado e pendurado de cabeça para baixo. Não bastasse, Tom e Agatha se enredam aos poucos em uma relação típica de mãe e filho. Os três formam uma espécie de relacionamento distorcido de codependência. Os múltiplos graus de mal estar servem para adensar a paisagem de lama e animais, marcada por dores e arrependimentos, invencionices e segredos, feridas tangíveis e psicológicas. Todos se encontram imobilizados e lutam com quem são e o que querem.  

A direção inocula teatralidade à montagem e aplica uma carga erótica, viril e aterrorizante às interações entre os dois homens. A encenação intensa é apoiada pela iluminação melancólica de Tomás Ribas, a rústica e enlameada arena cenográfica concebida por Aurora dos Campos e pelos figurinos de Bruno Perlatto, que ajudam a retratar as personalidades. 

O elenco destila genuíno entrosamento. Armando Babaioff encarna Tom, que enxerga em Francis o fantasma de seu finado parceiro. O ator transmite a ira interna de um sujeito forçado a expressar sua angústia e paixão na forma de uma namorada fictícia. Nos diálogos, pressionado pelas pulsões amorosas, o personagem também narra seus sentimentos sem que os outros o ouçam. Em desempenho vigoroso, Gustavo Rodrigues entra na pele do valentão de cabeça quente Francis, disposto a manter sua mãe em uma conveniente ignorância enquanto se digladia contra sua repressão e raiva. De passado sombrio, e hoje pária na comunidade local, o irmão chegou tempos atrás a rasgar literalmente o rosto de um adolescente. Uma aura de ameaça se desenha toda vez que ele irrompe no palco.     

Convincente na composição, Soraya Ravenle interpreta a gentil e angustiada Agatha, que fechou os olhos ao longo dos anos. Ela optou por ignorar a homossexualidade de um filho e a homofobia do outro e hoje nem se alarma com os hematomas de Tom. Talvez a passiva mulher saiba mais do que os demais imaginam. Camila Nhary exala desenvoltura ar dar vida à Sarah/Helen que, ao entrar tardiamente em cena, rompe o clima claustrofóbico. Ela é amiga de Tom e foi convencida por ele a representar a suposta amada estrangeira do morto. As trapalhadas com a língua e os erros de tradução abrem aqui frestas de humor em meio à tensão reinante.

O texto é hábil em borrar as fronteiras entre sexo e brutalidade, examinar uma família incapaz de lidar com uma perda recente e capturar a experiência sufocante de mascarar a própria identidade. A relação de dominação e a perversa dinâmica sexual entre Tom e Francis compõem as passagens mais interessantes do espetáculo, que já circulou por cidades brasileiras e colheu elogios em minitemporada na França. Por meio de Francis, o público observa que o ódio contra os homossexuais, brotado da ignorância, pode facilmente descambar em crueldade e infâmia, por mais próximo que seja o laço de parentesco.

Ao conjugar realismo e lirismo e introduzir energia maníaca à trama, Bouchard evita que a história caia na monotonia. Em um mundo onde a paz é mais importante que a verdade, ele pinta um quadro de quatro criaturas em busca de alguma fatia de conexão. Se o texto começa como um suspense psicológico, no desfecho o que se vê é a materialização do horror.   

Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Victor Pollak)

 

Avaliação: Ótimo

 

Tom na Fazenda

Texto: Michel Marc Bouchard

Direção: Rodrigo Portella

Elenco: Armando Babaioff, Gustavo Rodrigues, Soraya Ravenle e Camila Nhary.

Estreou: 05/05/2023

Teatro Vivo (Avenida Chucri Zaidan, 2460, Morumbi). Sexta e sábado, 20h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 37,50 a R$ 100). Em cartaz até 25 de junho.

 

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