Teatro: A Herança

O público não deve se inquietar com as seis horas de duração deste ambicioso e meditativo épico, dividido em duas partes e exibido em dias alternados. Isso porque o premiado texto do dramaturgo americano Matthew Lopez desliza com fluência, envolve gradualmente e propõe reflexão aguçada sobre o que aprendemos com os nossos antecessores e a importância de se preservar o passado vivo. Ambientado em Nova York, na segunda década deste século, o retrato de diferentes gerações da comunidade gay local carrega pontos de contato com Angels in America (1991), a mítica produção do conterrâneo dramaturgo Tony Kushner, que lidava com questões políticas e a epidemia da aids.   

Os personagens de Lopez já não sofrem de homofobia internalizada e exercem plenamente sua sexualidade sem culpa. Encenada por Zé Henrique de Paula, a trama tem início com um jovem grupo de homossexuais da classe média novaiorquina que decide contar a vida deles próprios, inspirados no romance Howards End, do autor britânico E.M. Forster (1879-1970) - o livro aborda a hipocrisia da sociedade burguesa da Inglaterra eduardiana sob o espectro da Primeira Guerra Mundial.

Num flerte metalinguístico, o autor transforma o gay enrustido Forster em uma criatura do enredo. Paternal, Morgan (nome do meio do romancista) eventualmente interrompe a oficina de criação literária para exortar os futuros profissionais a expressar o que realmente sentem. Chega a sugerir que a sua obra seja utilizada como arquétipo para o desenvolvimento da história que estão produzindo.   

O núcleo central é constituído pelos namorados Eric e Toby. Enquanto o primeiro se enxerga como um cara comum e anda incomodado com a perspectiva de despejo do apartamento de família alugado, o companheiro se deleita narcisicamente com o seu autoproclamado talento como dramaturgo. Eles têm como vizinhos Henry e Walter, um casal gay mais maduro e abastado que viveu o flagelo da aids na era 1980, na esteira dos anos Reagan. Naquela época, um diagnóstico dessa doença significava uma sentença de morte. Ambos mantinham uma casa de campo que acabou se tornando refúgio de paz e dignidade para doentes terminais. Por sinal, uma das sequências emocionais mais devastadoras do espetáculo acontece em torno desse abrigo, um encontro dos espíritos dos que partiram.     

A configuração afetiva do quarteto logo se esvai e surgem outras possibilidades de conexão. O relacionamento de sete anos entre Eric e Toby começa a desintegrar quando o segundo passa a sentir fixação pelo aspirante a ator Adam e, no decorrer, pelo garoto de programa sem-teto Leo. Walter morre e um imprevisto vínculo amoroso se materializa entre os enlutados Henry e Eric.

Uma das conquistas da direção é implantar ritmo agradável, valorizar a galeria humana e se safar da cilada do melodrama. É hábil o suficiente para remover qualquer confusão acerca das intricadas ondulações narrativas e mudanças de personagens. Não há coxia e os atores coadjuvantes, que interpretam o círculo privado de Eric e Toby e outros papeis, se posicionam a maior parte das vezes nos flancos do palco quando não interagem na ação principal. Com tique brechtiano, eles comentam os acontecimentos e reagem gestualmente como se formassem um coro onisciente, alavancando uma perspectiva extra à narrativa. A sóbria cenografia de Zé Henrique de Paula, o sutil designer de iluminação de Fran Barros, os figurinos personalizados de Fábio Namatme e a trilha sonora não manipuladora de Fernanda Maia adicionam camadas ao trabalho.    

O elenco coeso assimilou perfeitamente a proposta da peça. Bruno Fagundes transmite milimetricamente a decência e a bondade santa de Eric. O sedutor e autodestrutivo Toby é representado com ímpeto e vibração por Rafael Primot. Ainda em processo de refinamento vocal e gestual em seu desempenho, Reynaldo Gianecchini incorpora  Henry, o poderoso empreendedor imobiliário sempre em viagem de negócios. Em um momento de tensão, durante um café da manhã, Henry, eleitor dos republicanos, expõe suas opiniões políticas conservadoras – Trump nunca é identificado -, num embate ferrenho com os amigos de esquerda de Eric, devotos dos democratas, especialmente o incendiário rapaz vivido de forma eloquente por Haroldo Miklos.

Em estudada composição, Marco Antônio Pâmio impõe sua conhecida densidade nas peles de Morgan e Walter e nocauteia o espectador no longo solilóquio em que, ancorado em altruísmo, preconiza uma equivalência entre o respeito pelos mortos e o amor pelos vivos. André Torquato dobra como Adam e Léo, símbolos dos dois extremos da luta de classes americana. Ele se destaca ao narrar as peripécias de Adam em uma sauna gay em Barcelona e na passagem em que transita entre os dois personagens enquanto conversam. Única atriz na trupe, a experiente Miriam Mehler encarna com força interior e complacência uma mãe ex-homofóbica que perdeu seu filho para o hiv e dedicou sua biografia a auxiliar outros gays infectados.   

Borrifada de humanismo e incidentes, não raro a dramaturgia se abre para discussões acaloradas. Uma das mais intensas é sobre o status da cultura gay que, tendo brigado muito contra a intolerância e preconceito, agora corre o sério risco de ser cooptada pelo sistema. Há também observações perspicazes sobre a geração gay dos vinte e trinta anos que nasceu após o ciclo desconcertante da peste. O diálogo entre estes jovens de hoje, que podem assumir com mais tranquilidade suas identidades sexuais, e os mais velhos, que guerrearam pelos direitos dos homossexuais, vivenciaram o trauma da aids e agora carregam cicatrizes profundas, é a matéria prima da montagem.    

Esta espécie de acerto de contas entre gerações não deixa de ser impressionante. Uma linha que principia com Forster dentro do armário, prossegue nos tempos da peste em Nova York e desemboca nos jovens liberais de hoje. Eric é o descendente em todos os sentidos dos exemplos deixados anteriormente por Morgan e Walter. Tornou-se o guardião da casa de campo, herdeiro de decênios de lutas, experiências pungentes e conhecimento acumulado. Outra figura emblemática é a da mãe que aprendeu tarde a amar o filho gay e mergulhou em profunda reflexão. Imperturbada, relata sua própria história de perda e autorrecriminação amarga. Sua sinceridade é tamanha que sua dor ecoa na plateia.  

Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Herança

 

Texto: Matthew Lopez

Direção: Zé Henrique de Paula

Elenco: André Torquato, Bruno Fagundes, Rafael Primot, Reynaldo Gianecchini, Marco Antonio Pâmio, Miriam Mehler, Haroldo Miklos, Felipe Hintze, Cleomácio Inácio, Davi Tápias, Rafael Américo, Wallace Mendes e Gabriel Lodi.

Estreou: 09/03/2023

Teatro Vivo (Av. Chucri Zaidan, 2.460, Morumbi). Quinta e sábado, 20h (parte 1); sexta, 20h, e domingo, 18h (parte 2). Ingressos: R$ 25 a R$ 100. Em cartaz até 30 de abril. 

 

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