Teatro: Tudo

O dramaturgo, diretor e ator argentino Rafael Spregelburd não foge da polêmica ao sintetizar os fracassos humanos, num exame irônico do desvirtuamento da essência dos grandes arquétipos e discursos. A instigante peça, que recebeu encenação inspirada de Guilherme Weber, escancara as travas que afetam a dinâmica do trabalho num escritório do Estado, o rebaixamento da religião à crendice rasteira e a conversão da arte em mais um produto descartável de consumo. A degradação dos valores dessas três instituições, que estruturam e interpretam a realidade, é desnudada por meio de um tipo de comicidade desesperada, argumentos filosóficos, narrativas bíblicas e lampejos de mitologia grega.

Ambientada numa repartição pública, a primeira sequência reúne quatro funcionários que não compreendem bem as suas atribuições. Há a presença ainda de um narrador, que comenta de forma desdenhosa os acontecimentos. A alienação, no entanto, não parece incomodá-los. Um deles chega a descrever diligentemente as tarefas ali executadas, porém o incomum é que a exposição do funcionamento está a léguas de distância de uma gestão competente. O quarteto se perde em diálogos inúteis e evasivos. Briga-se por causa do sumiço de um documento. Uma querela do passado gera desconfianças entre dois colegas. Todos especulam a razão de outras agências pegarem fogo. Um deles se mostra indignado com o número exagerado de mictórios nos banheiros de cada andar. Alguém passa o tempo inteiro se desfazendo de móveis e objetos. De repente irrompe uma discussão acalorada em torno de um casaco e cédulas de dinheiro são incineradas. Molde de uma instância do Estado assolada pela irracionalidade administrativa.  

A sequência seguinte se passa durante a ceia de Natal, evento citado anteriormente, protagonizado por uma família disfuncional. A anfitriã convidou um amigo do emprego com o propósito de deixar enciumado o seu ex-marido, um professor de filosofia que cultiva o hábito de se envolver amorosamente com suas alunas. O jantar inclui também um artista conceitual e sua namorada, uma criatura que interage à base de monossílabos e palavras desconexas.

O eixo central gira em torno de um fato já decorrido que está longe de apaziguado. Uma coleção de livros foi queimada na bienal de arte como parte de uma performance e tanto o performer quanto o homem que ingenuamente lhe emprestara os volumes discutem o significado da controversa realização. A tensão aumenta porque começa uma batalha verbal sobre a natureza e o sentido da produção artística. 

Mais curta, a trama derradeira transcorre na residência de um casal em crise, durante uma noite chuvosa. O marido é um escritor de livros infantis, aludido rapidamente no enredo precedente, surpreendido ao chegar em casa e encontrar um médico, que havia sido convocado às pressas pela sua esposa por suspeitar do estado febril do bebê. Uma narradora orbita na cena evocando passagens do Antigo Testamento, atiçando uma correspondência entre os flagelos da passagem bíblica e a situação em andamento. Desde que deu à luz, a mulher entrou em parafuso, passou a temer a morte do filho e evita chamá-lo pelo nome.

Sem maneirismos na direção, Guilherme Weber estabelece uma afinada sincronia de movimentos e coesão dramática. Explora o despojamento do espaço, valoriza a essência dos conflitos e promove natural integração entre elenco e dramaturgia. Os cinco intérpretes estão adequados aos respectivos papéis e disponibilizam teatro pulsante. Não existe qualquer protagonismo e cada um tem o seu grande momento na montagem.

Claudio Mendes, Dani Barros, Julia Lemmertz, Márcio Vito e Vladimir Brichta mobilizam intensamente seus meios expressivos. Dão vida a criaturas neuróticas, compulsivas e delirantes sob uma camada de aparente normalidade. Gente palpável e, ao mesmo tempo, títeres das circunstâncias, que respondem por suas próprias escolhas e omissões. Julia exibe sólida presença no palco. Dani desembrulha desempenho entre o cômico e o pungente, com meticulosa composição corporal. Brichta irradia energia e carisma. Vito e Mendes se apoiam com firmeza em indicações sutis do texto.  

A cenografia limpa de Dina Salem Levy dispensa a grandiosidade. Nenhum material mencionado, como impressos, artefatos e móveis, é representado ou visibilizado. No quadro inicial, um servidor alega que por conta do acúmulo de tralhas no gabinete, um conjunto nunca visto pelo público, acabou levando uma mordida de alguma coisa escondida. A iluminação de Renato Machado, com destaque para um painel móvel fosforescente situado no teto, os figurinos de Kika Lopes, a trilha sonora de Rodrigo Apolinário e a preparação corporal de Toni Rodrigues operam em harmonia. 

Não deixa de ser provocativa a maneira como o autor aponta o dedo para a perversão que acomete a arte, a religião e o Estado. No episódio do meio, por exemplo, o artista é reconhecido internacionalmente por sua obra, mas ele parece pouco inclinado a transformar o mundo através de sua criação, vista como uma iniciativa de empreendedorismo. De um bem essencialmente simbólico acabou virando uma mercadoria vendável em festivais, bienais, galerias e plataformas digitais. Na terceira parte, a fé passa a ser tão somente uma questão de crença, que dispensa evidências como prova. Aqui, a personagem feminina substitui a religião pelo pensamento mágico-místico, que não faz mal desde que impeça que ocorra algo ruim. Tudo é uma fábula moral, igual às de Esopo, mas sem animais, como o espectador é lembrado logo no início.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

(Foto Flávia Canavarro)

 

Avaliação: Ótimo

 

Tudo

Texto: Rafael Spregelburd

Direção: Guilherme Weber

Elenco: Claudio Mendes, Dani Barros, Julia Lemmertz, Márcio Vito e Vladimir Brichta.

Estreou: 01/09/2022

Sesc Bom Retiro (Alameda Nothmann, 185, Campos Elíseos). Quinta a sábado, 20h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 50. Em cartaz até 09 de outubro.

 

 

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