Teatro: Sede

São três personagens em estado de angústia. O garoto Murdoch (Felipe de Carolis) vomita a sua raiva e revolta contra o mundo que entende ser absurdo dos adultos. A jovem Noruega (Luna Martinelli) prefere permanecer em silêncio, entrincheirada em seu quarto, sem comer, disposta apenas a abrir a porta para o seu professor de matemática, a quem admira. O antropólogo forense Boon (Marcelo Várzea) viaja de volta à adolescência e aos sonhos que decidiu desertar. Encenado por Zé Henrique de Paula, o texto do dramaturgo libanês-canadense Wajdi Mouawad (Incêndios / Céus, já montados no Brasil) soa inicialmente intrincado. É compreensível que o público se sinta um tanto desorientado no início, exposto à fragmentos de informação, sequências que se sucedem sem ligação aparente e à barreira enevoada entre o passado, o presente e a imaginação. Mas aos poucos o enredo, com tintas fantásticas, adquire nexo, peso e significados.     

6 de fevereiro de 1991, dia de São Gastão. O jovem Murdoch acorda dominado por uma urgência de espaço e ar livre. Começa a falar sem parar em casa, no ônibus, na sala de aula, na diretoria da escola. “Não vou me calar, é meu direito”. O dia a dia, vocifera, é uma cadeia abominável de rotinas repetitivas, regras automatizadas, de aprendizado de coisas que não desentediam. Ele se exaspera com as pessoas grudadas na tevê nunca desligada, intoxicadas por uma espécie de animadora cultural preocupada unicamente em estimular o consumo desenfreado. Intui que o planeta pode soçobrar de vez em mais um conflito militar – na época irrompia a Guerra do Golfo. “A Terra está ferida por um lobo vermelho que a devora.”  

Então acontece um salto temporal. Vemos Boon incumbido de examinar o que está parecendo ser dois corpos fundidos um no outro, que foram encontrados afogados no fundo de um rio congelado. Um monte de carne absolutamente disforme. Em função da morfologia geral, tudo indicava se tratar de um homem e de uma mulher. Um deles, identifica, é o cadáver de Murdoch, ex-colega de classe de seu irmão mais velho, que misteriosamente desaparecera naquele inverno de 1991, aos 22 anos. O outro, se espanta posteriormente, talvez seja o da menina Noruega, a personagem fictícia inventada por ele no passado, quando aspirava se tornar escritor e sua carreira foi bruscamente abortada. A imaginária Noruega, que teria “invadido” a realidade, era o retrato trágico de sua ideia de beleza. “Quando essa beleza não é alimentada, ela se transforma numa coisa horrível, que nos corrói por dentro”, é a metáfora que Boon concebeu e assume importância metafórica até o final da narrativa.    

Poética e delicada, estruturada como um quebra cabeça a ser decifrado pelo espectador, a peça é construída por longos solilóquios dessa trinca de criaturas, que poucas vezes contracenam. Os monólogos tocam na essência de temas atuais, como a busca pelo sentido da vida e a sede de viver, a crise de identidade, o medo do olhar dos outros, os sonhos despedaçados. Murdoch e suas explosões de injúrias e provocações tem sintonia com a biografia do autor de 51 anos, que nasceu no Líbano, emigrou cedo por causa da guerra civil, não conseguiu se fixar na França e acabou radicado no Canadá. Simultaneamente, Mouawad está simbolizado também na figura de Boon e sua vocação para escrever e produzir histórias.

A encenação de Zé Henrique é esteticamente bem resolvida e pilotada em ritmo compassado. Ela deslancha uma genuína teatralidade que enriquece este sofisticado jogo de avanço e retorno no tempo. O diretor instituiu um refinado equilíbrio que faz com que as transições e fusões entre as cenas sejam sempre orgânicas e sutis E evita cair na arapuca de transformar o técnico legista em um mero narrador, Murdoch em um típico rebelde e Noruega em uma mulher somente solitária. A complexidade de cada um deles é valorizada no espetáculo.  

Toda a ação transcorre sobre placas de gelo figurativas, um cenário onírico engendrado por Bruno Anselmo. Com triplo nível, esta plataforma é girada pelos intérpretes em algumas circunstâncias. Logo no início, Noruega e Murdoch protagonizam uma patinação estilizada sobre a estrutura, sinalizando o instante em que o gelo poderia ter rachado e engolido o garoto. Poucos objetos cênicos povoam o território dramático – maca de necrópsia, carteira escolar e um assento duplo de ônibus, todos “resgatados” de baixo da água, presos a uma rede. Conforme o andamento, são manipulados para compor situações e ambientes. Em um momento capital, a maca em pé simula um totem, emblema da igreja onde Bonn encena o ritual da sua morte artística. Executada ao vivo pelos músicos Jonatan Harold, Felipe Parisi e Catherine Santana, as canções originais de Fernanda Maia, também diretora musical, se encaixam com cuidado na dramaturgia e espelham as emoções de Murdoch em relação ao seu pai falecido, “transfigurado” em pássaro. As precisas projeções no palco, de Laerte Késsimos, denotam tanto as camadas de gelo que se trincam quanto o movimento de um polvo, além de estampar um conjunto de palavras e frases. A iluminação de Fran Barros desenha os sentimentos à flor da pele ali em trânsito    

O elenco revela harmonia com o espírito da obra e seus seres circunstancialmente fragilizados. Marcelo Várzea encarna o profissional pragmático Boon em várias etapas de sua existência, perfilando uma performance persuasiva e absorta, com boa presença cênica. Ele disponibiliza a memória e os pesares de alguém que venerava o irmão e abdicou de sua inclinação literária. Felipe de Carolis insufla tom febril na composição do depressivo e provocador Murdoch, o rapaz que se desapegou do deslumbre da infância e ainda não superou o luto paterno. Atriz talentosa, Luna Martinelli capta e expressa a humanidade de Noruega, uma adolescente capaz de se autoagredir e que carrega no ventre um ser estranho, um polvo, o Kraken do folclore nórdico. Aqui, o mítico animal, pesadelo das embarcações em alto mar, pode ser lido como a representação da feiura e da monstruosidade, que muitos se conformam em carregar dentro de si.   

Por meio desse trabalho espesso e cortante, Mouawad perpassa as gerações e seus ciclos. Faz a autópsia de uma adolescência que se defronta com o colapso das ilusões. Não é necessariamente uma visão pessimista sobre opções que fazemos lá atrás e que irão definir o nosso futuro e identidade. Ele impulsiona uma reflexão sobre a necessidade de se cultivar a beleza, o desejo e a fantasia, um ideal que muitas vezes deixamos deliberadamente desbotar. Não por acaso a trama fala de suicídio, real e metafórico. Boon, por exemplo, se tornou um sujeito estimado na sociedade, que convenientemente se ajustou às expectativas do seu entorno. Por dentro, no entanto, ele se encontrava morto. 

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Kombo)

 

Avaliação: Ótimo

 

Sede

Texto: Wajdi Mouawad

Direção: Zé Henrique de Paula

Elenco: Marcelo Várzea, Felipe de Carolis e Luna Martinelli

Estreou: 01/02/2020

Tucarena (Rua Monte Alegre, 1024, Perdizes. Fone: 3670-8455). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 60 e R$ 70. Em cartaz até 29 de março.   

 

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