Baixa Terapia

Tem cara e jeito de uma comédia de costumes, protagonizada por maridos e mulheres discutindo a relação e expondo seus conflitos conjugais. Mas a linguagem teatral adotada serve de pano de fundo para desemaranhar coisas sérias e iluminar um drama complexo e urgente que se torna mais palpável apenas no desfecho surpreendente. Enquanto a virada dramática não se consuma, a envolvente obra do autor argentino Matias Del Federico empina com humor mordaz algumas das misérias e vicissitudes da vida de casado. Com direção de Marco Antônio Pâmio, e elenco encabeçado por Antonio Fagundes, a montagem põe na vitrine três casais de diferentes faixas etárias que não se conhecem. O grupo está ali involuntariamente para fazer parte de uma sessão singular de terapia, destinada a sondar e tratar querelas matrimoniais, com a peculiaridade de que a psicóloga, de quem todos são pacientes, não se encontra presente. 

Embora ausente, a terapeuta deixou no consultório envelopes numerados contendo questionamentos pessoais e instruções. Ou seja, eles precisam conduzir seus respectivos tratamentos uns na frente dos outros, sem o conforto do sigilo profissional. Como é presumível, o jogo proposto tem início em fogo brando. Aos poucos, porém, começa a gerar apreensão, certa histeria e excessos, ainda mais em uma sala abastecida de garrafas de uísque. Uma situação que inevitavelmente tende a degenerar e seguir rumos impensáveis, trazendo à tona algumas disfunções da convivência a dois e o pior de cada um. Forma-se um menu saboroso de confissões, suspeitas, verdades e mentiras. Uma lavagem coletiva de roupa suja, sem filigranas.

Os cinquentões Ariel e Paula (Antonio Fagundes e Mara Carvalho), por exemplo, se esforçam em vão para achar um denominador comum em relação à educação dos filhos. O casamento deles, a se observar o grau de desgaste explicitado, é um perene campo de batalha. Uma geração abaixo, Roberto e Andrea (Fábio Espósito e Ilana Kaplan) estão mais inclinados a tergiversar sobre seus traumas – ela, inclusive, se licenciou do trabalho após uma tentativa de suicídio. Mesmo apaixonados, os jovens Estevão e Tamara (Bruno Fagundes e Alexandra Martins) vivem divergindo se devem ou não morar sob o mesmo teto.

De certa forma, no que tange ao universo da batalha dos sexos, o enredo não chega a apresentar ângulos originais e incomuns. Todavia, os heterogêneos assuntos alavancados - pedagogia infantil, machismo, alcoolismo, depressão, fidelidade e ciúme - são abordados de forma incisiva e perspicaz, galvanizando o riso da plateia. É válido lembrar que o texto guarda pontos de contato com as peças O Método Grönholm, do autor espanhol Jordi Galcerán, e Toc Toc, do dramaturgo francês Laurent Baffie. Em ambas, indivíduos estranhos entre si, casualmente reunidos, são submetidos a provas e tarefas que devem enfrentar e superar.

A montagem se escora na força das palavras e dos diálogos. Pâmio maquinou uma encenação que desliza em ritmo dinâmico, com marcações coreografadas em um espaço cênico intencionalmente reduzido, ambiente mais sugerido que realista – os seis atores se movimentam sem atropelos e de forma bastante natural. O diretor assegura leveza a esse conjunto, que cumpre à risca a ordenação plástica das cenas e mantem o mesmo nível de vitalidade e congruência ao longo do espetáculo. Eles são capazes de transitar com habilidade de uma etapa para outra, mudando de personalidade, atitude e trejeitos nas passagens mais graves.

Como a trama se estrutura sem graduações, não havendo protagonistas e coadjuvantes, todos têm seus momentos cintilantes. Antônio Fagundes demonstra a habitual segurança, dosando em Ariel irritação e ironia. Com estudado maneirismo, Mara Carvalho encarna uma Paula ansiosa e impertinente. Bruno Fagundes, na pele de Estevão, exala flama e espírito juvenil. Na composição de Tamara, a atriz Alexandra Martins empenha-se em torná-la crível. Fábio Espósito realça a natureza sinuosa de Roberto. Responsável por arrebatar o público como Andrea, a figura mais complexa da turma, Ilana Kaplan é capaz de arrancar gargalhadas e simultaneamente purgar sentimentos reprimidos.   

O mais interessante é que a história transcorre sem que o espectador saiba aonde ela desaguará. Por isso o desenlace chocante acaba pegando o espectador no contrapé. Um observador mais atento até poderá captar insinuações e sinais aqui e ali, mas é pouco provável que vislumbre a armadilha do epílogo. Seja como for, o instante em que o ridículo e o cômico dão vez ao flagelo moral fornece um sentido tangível a tudo o que aconteceu. Uma fresta para suscitar outra reflexão, mais trágica e tão atual no cotidiano de muitos relacionamentos afetivos.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Lenise Pinheiro)

 

Avaliação: Ótimo

 

Baixa Terapia

Texto: Matias Del Federico

Direção: Marco Antônio Pâmio

Elenco: Antonio Fagundes, Mara Carvalho, Fábio Espósito, Ilana Kaplan, Bruno Fagundes e Alexandra Martins.

Estreou: 17/03/2017

Tuca (Rua Monte Alegre, 1073, Perdizes. Fone: 3124-9600). Sexta, 21h30; sábado, 20h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 70 a R$ 90. Até 30 de julho. 

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