EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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A Reunificação das Duas Coreias

Não se iluda com o título, porque se trata de uma pista falsa. A peça não fala de política internacional e seus desdobramentos. O nome foi extraído de uma cena, na qual um homem relata à sua desmemoriada mulher como ambos haviam se apaixonado. Na ocasião, eles se sentiam como duas metades de um todo e, ao se unirem, ganharam força incomensurável. Simbolicamente, a atitude equivaleu a uma presumível reunificação das Coreias do Sul e do Norte, há décadas separadas. Uma metáfora sobre a perpétua dificuldade que cerca a união amorosa entre duas pessoas. Nesse texto do dramaturgo e diretor francês Joel Pommerat (Ça Ira / Cinderela / Esta Criança), que recebeu montagem elegante de João Fonseca, o tema crucial que percorre as dezoito micro tramas reunidas é este sentimento de afeição, ternura e carinho. Aquele que produz encontros e desencontros, guarda ambigüidades e contradições, ilude e atemoriza, atrai e distancia amantes, pais e filhos, médico e paciente, advogado e cliente, professor e aluno. Enfim, aquele que se intromete nas mais diversas relações humanas.       

O mérito dessa obra, simples só na aparência, não é falar do amor extraordinário. O que se oferece é uma visão do amor por meio de ângulos inesperados. O público acompanha uma sucessão de pequenos episódios independentes, protagonizados por seres que vivem circunstâncias de certa forma triviais. Mas que são flagrados em momentos capitais, em situações-limites de perda, separação, obsessões, agressividade, impasses, incertezas e dilemas. Para compor esse eloqüente painel sobre o comportamento afetivo nos tempos atuais, o autor desembrulha diálogos curtos, secos e sem tergiversações. Intencionalmente, nenhuma cena tem desfecho conclusivo.      

Há, por exemplo, uma faxineira que revela particularidades sobre o seu casamento sem perceber que o marido jaz morto no mesmo ambiente. Uma paciente, grávida, discute com a médica de uma instituição psiquiátrica, que defende o argumento de que a jovem não tem condições de criar a criança – aos poucos, o jogo se inverte e a profissional expõe sua tragédia pessoal. Em passagem de atmosfera fantasmagórica, um casal de namorados é surpreendido pela aparição de um antigo amor dela. Pontuado por humor negro, um matrimônio se esfarela após revelações das irmãs da noiva. Em outra sequência, os pais de um aluno problemático vão tirar satisfações na escola e ficam desconcertados ao topar com o sentimento sincero entre professor e estudante. Uma mulher abandona o marido, apesar de reconhecer que se amam, com a justificativa de que só o amor não basta.  

O espetáculo não se estrutura numa progressão dramática convencional, uma vez que a fragmentação faz parte da essência da peça. Por conta disso, uma sutil monotonia pode eventualmente incomodar o espectador, submetido por quase duas horas ao mesmo tom e estilo. A interpretação também caminha no mesmo sentido, num registro que dispensa emoções exacerbadas ou ações físicas extremas. Nada disso empana o brilho da montagem. A direção de João Fonseca dispensa artifícios, afinado a uma cenografia minimalista, e obtém equilíbrio entre os enredos, os personagens e os contextos, sempre diferentes e marcados por cortes repentinos – as cenas são descontinuadas quase sempre nas horas de sinuca e embaraços.

O diretor extrai do elenco desempenhos fortes, intensos e comoventes. Os sete atores se desdobram em 47 diferentes personagens, sem perder precisão e vigor. Eles dão vida a indivíduos que encontramos no nosso dia a dia, com seus arroubos, ímpetos, ganas, vaidades, egoísmos, limites e outros instintos básicos de qualquer ser humano. Bianca Byington e Marcelo Valle pontificam no palco, inoculando nuances e matizes às variadas figuras que incorporam. A atriz, por exemplo, entrega desempenho cortante na pele da médica perturbada emocionalmente. O ator é agudo na composição do professor acusado de assédio. Gustavo Machado transita com vivacidade e fluência por diversos papéis. Solange Badim e Reiner Tenente engatam performances energéticas. Letícia Isnard está especialmente inspirada como a descrente prostituta que ainda luta por uma réstia de dignidade. Verônica Debom encanta na representação da jovem grávida que vive espécie de epifania.

A equipe técnica trabalha em harmonia com a proposta da encenação. Os figurinos de Antônio Guedes ressaltam tonalidades escuras. Nello Marrese elaborou uma cenografia demarcada por biombos que descomplicam a movimentação cênica. A iluminação sombreada de Renato Machado ambienta desde residências a espaços comerciais e esquinas de ruas.

Por meio desses recortes de histórias, o dramaturgo projeta homens e mulheres resignados aos seus destinos trágicos, sem direito a heroísmos. Mais do que dramáticos, os clichês das relações amorosas adquirem aqui ares de absurdo e irracionalidade. Parece que o desejo de nunca estar sozinho move as criaturas de Pommerat. Se num primeiro instante o título da peça soa estranho e despropositado, ao longo do espetáculo a expressão fica cada vez mais familiar.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )   

(Foto Victor Hugo Cecatto)

 

Avaliação: Bom

 

A Reunificação das Duas Coreias

Texto: Joel Pommerat

Direção: João Fonseca

Elenco: Bianca Byington, Solange Badim, Marcelo Valle, Gustavo Machado, Verônica Debom, Letícia Isnard e Reiner Tenente 

Estreou: 16/09/2016

Teatro Morumbi Shopping (Avenida Roque Petroni Júnior, 1.089, Morumbi. Fone: 5183-2800). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 50 e R$ 70. Até 23 de outubro. 

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