EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Oleanna

Uma estudante, que empreendeu esforços para conquistar vaga na universidade, sente dificuldades para assimilar as aulas. Por conta disso, corre o risco de ser reprovada e ter de abandonar os estudos. Como precisa desesperadamente passar de ano, ela se dirige à sala do professor de uma disciplina na qual vai mal para confrontá-lo pela nota baixa recebida no último trabalho. Ele fica visivelmente contrariado com a inoportuna visita. A partir daí começa uma conversa anárquica, que será truncada por telefonemas cada vez mais inadiáveis porque o docente anda preocupado com a sua iminente promoção e a nova casa que está negociando. Com alguma relutância, decide ajudá-la.

Trata-se da primeira das três cenas que compõem o enredo, todas ambientadas no mesmo local em tempos distintos. Estamos no início de uma peça do dramaturgo americano David Mamet, montada pela companhia Epigenia, sob direção de Gustavo Paso. O título faz referência a uma canção folclórica norueguesa sobre uma utópica comunidade do século XIX fundada pelo violinista norueguês Ole Bull e a sua mulher Anna - daí o nome Oleanna. Projetada para ser um paraíso campestre, a terra revelou-se inadequada para a agricultura e o sonho do santuário evaporou-se.

O que o autor deixa entrever é a correspondência invertida que existiria entre esta idealizada comunidade no passado e a sociedade individualista de hoje, onde as pessoas preferem telefonar para seus advogados no lugar de arriscarem uma comunicação humana. Ou seja, aquilo que se mirou não foi o que efetivamente se alcançou. É nesse mundo de utopias despedaçadas e comunicabilidade seccionada que o autor buscou oxigênio para criar a trama, inspirada em uma história real ocorrida em solo americano. No caso, a confusão envolvendo o juiz Clarence Thomas que, indicado para integrar a Corte Suprema americana pelo então presidente da República, George Bush, acabou acusado de assédio sexual pela ex-aluna Anita Hill.

Mamet coloca em cena o mestre e a pupila em uma luta verbal sem pausas, riscada por tensão sexual. Com diálogos rápidos, abundantes em emoção e raciocínio, aos poucos o encontro entre os dois personagens ganha feições de um violento confronto de ideias sobre a função do ensino, o lugar do indivíduo na coletividade, as relações entre os sexos e os limites da liberdade de cada um. Constrói-se uma longa conversa, moldada pelo entendimento de que nos tempos atuais toda interlocução é potencialmente temerária. A discussão adquire mais toxicidade ainda porque eles estão mergulhados em suas próprias neuroses e empenhados em suas agendas pessoais, a ponto de um não ouvir o que o outro está dizendo. Basicamente, eles não pensam antes de falar.

O texto desdobra duas verdades em fricção na arena. Por meio das palavras, professor e aluna travam um perigoso exercício de disputa pelo poder, ambos se revezando nas posições de controle e coação. A situação é agravada pelo fato de que ele se comprometeu a dar-lhe nota dez se ela se dispusesse a ter aulas fora do expediente, numa transgressão aos limites das habituais regras universitárias.

A linguagem é dura, crua e ríspida. Daí não ser tão estranho assim que o jogo de insinuações e acusações descambe para a violência verbal e finalmente física.  O progressivo colapso físico e psicológico do educador será acompanhado da lenta transformação da aparente figura inofensiva e débil da educanda. De forma tortuosa, ela irá acusá-lo de assédio sexual. A dúvida sobre o real comportamento de cada um, aquilo que não se vê por trás das máscaras, é um dos pontos de interesse do espetáculo. Ele estaria cercando sexualmente sua aluna ou puramente tentando assisti-la? Ela procura seriamente ajuda ou deseja comprometê-lo por nutrir algum tipo de ressentimento?

O diretor Gustavo Paso conduz o drama exposto mantendo incandescente a sua temperatura emocional. O ritmo da encenação é veloz, em que pese a pouca movimentação cênica. Simples e elegante, a encenação cristaliza marcações que facilitam a troca de posições dos atores no palco. O papel de professor é interpretado em duas versões, a masculina e a feminina. O encenador pretendeu descaracterizar as relações de dominação como uma questão de gênero. Uma concepção que funciona satisfatoriamente e potencializa a teatralidade, na medida em que promove uma leitura mais abrangente da natureza humana. Há ainda uma terceira opção, que junta ator (*Marcos Breda) e atriz (Miwa Yanagizawa) como mestres, os dois simbolizando a instituição de ensino como antagonista da aluna.

Em atuação convincente, irrigada por certa afetação e estudada afabilidade, Breda desenha com nitidez o comportamento impreciso do professor, um sujeito que desvia o olhar do interlocutor, cultiva noção de superioridade e exerce um tipo imponente de paternalismo. Repentinamente surpreendido pela reviravolta dos acontecimentos, que o faz perder o comando da situação, se afogará na indignação, rancor e repulsa. No mesmo papel, que nesta segunda leitura virou uma professora homossexual, Miwa Yanagizawa inocula aspereza maior à personagem, tornando-a menos acessível e mais impaciente. Sua empáfia também irá soçobrar em meio às transformações em curso.

Luciana Fávero expressa com naturalidade, no início, a atitude hesitante da aluna que, aos poucos, em transição cheia de semitons, evolui para uma conduta perversa e extorsiva. A atriz desata um desempenho vigoroso, que não escapa para a caricatura e produz desconforto pela forma como a estudante deturpa o sentido do que o mestre diz.

Mais do que evocar questões oportunas acerca do sistema educativo, tratar das distorções e exageros da cultura do politicamente correto, abordar o explosivo tema do assédio sexual, dissecar a ética e, até mesmo, reproduzir veladamente uma luta de classes, a peça é essencialmente um tratado a respeito da comunicação, da manipulação das palavras e as motivações impuras por trás dos discursos. Mamet escancara uma tragédia sobre o poder e a linguagem que se usa para subjugar ou eliminar o outro.

* Nessa atual temporada substituído pelo ator Fernando Vieira.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )   

(Foto Monica Vilela)

 

Avaliação: Ótimo

 

Oleanna

Texto: David Mamet

Direção: Gustavo Paso

Elenco: Luciana Fávero, Marcos Breda (dias 26, 27 e 28/06) e Miwa Yanagizawa (dias 19, 20 e 21/06). Com os dois atores juntos: 3, 4 e 5/07

Estreou: 30/05/2015

Teatro Eva Herz (Livraria Cultura. Avenida Paulista, 2.073. Fone: 3170-4059). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. R$ 50. Até 13 de dezembro.

 

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