EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Urinal, O Musical

No sentido inverso dos musicais de fisionomia convencional encenados nos últimos anos nos palcos paulistanos, que são bem executados, bom ressaltar, aqui o espírito é francamente underground. Para começar, a obra assinada por Zé Henrique de Paula ocupa um espaço acanhado, diferente dos amplos teatros que costumam abrigar as grandes produções do gênero. Engajada, a trama de título extravagante examina um assunto contemporâneo e oferece perspectivas aprofundadas de leitura. Os autores americanos Mark Hollmann e Greg Kotis poliram uma linguagem que subverte, com ironia sutil, padrões popularizados por alguns dos principais clássicos da Broadway – a montagem original deste texto estreou em Nova York, em 2001, e faturou três cobiçados prêmios Tony. Além disso, o elenco do Núcleo Experimental não foi garimpado em testes e audições, como de praxe em trabalhos assim. Se está longe de brilhar na hora de cantar, o grupo exibe, no entanto, suficiente domínio técnico para dar conta da empreitada.  A conseqüência é um espetáculo atraente, que magnetiza o público com enredo inteligente, repertório musical envolvente e interpretações solares.  

A ação transcorre em um futuro totalitário, em uma cidade indefinida assolada há duas décadas por uma seca de proporções devastadoras. A escassez de água obrigou a extinção dos banheiros privados e agora a população precisa pagar para fazer suas necessidades fisiológicas em instalações sanitárias públicas. Os tais equipamentos de uso compartilhado são administrados pela Companhia da Boa Urina, cujo presidente é o cruel e corrupto Patrãozinho.

As regras devem ser seguidas à risca. Quem não tem dinheiro para usufruir das instalações e tenta burlar a lei é enviado para Urinal, uma misteriosa e temível colônia penal. A perspectiva do exílio forçado não passa de uma estratégica ferramenta de poder e constrangimento para manter as pessoas pobres constantemente com medo. Com razão, aliás, porque quem para lá é encaminhado não costuma mais retornar. Como acontece com o Velho Bonitão. Sem grana para se aliviar na imunda Conveniência número 9, e após mal sucedida tentativa de trapaça, ele urina na rua, é preso e acaba banido da comunidade.

Somado à recente aprovação, num senado corrompido, da majoração de preços para a utilização dos mictórios, o episódio deflagra uma rebelião popular contra a opressão. O movimento é pilotado por Bonitão, filho do infrator, que comanda uma massa heterogênea de tipos que deseja fazer xixi de graça. Os rebeldes chegam a seqüestrar Luz, filha de Patrãozinho, garota que está mantendo romance justamente com o líder da insurreição.

A história evolui deixando entrever temas como ganância, corrupção e pulsões revolucionárias, desfiando um comentário agudo sobre o lado negro do capitalismo. A comicidade aflora nas coreografias em grupo ou duetos, na maneira como os personagens zombam de si, na demolição de certos arquétipos teatrais. Os números com música parodiam produções como Hair, Chicago e Os Miseráveis, com seus vocais  dramáticos, passos bregas, interpretações intencionalmente harmoniosas típicas de musicais dos anos 1940. Na sequência em que estoura o romance entre Bonitão e Luz, comicamente eles colocam os seus ouvidos no peito um do outro. Até um coro gospel ganha vida no palco, o que cria um ruído irônico pelo seu caráter sagrado em um ambiente cheio de pecados. Outra subversão é a brincadeira brechtiana de escalar dois personagens para comentar os eventos, numa quebra de quarta parede que tem o intuito de estimular um olhar objetivo sobre a narrativa.  

Todo esse arsenal de referências, que inclui ainda A Ópera dos Três Vinténs, de Brecht e Kurt Weill, não embaça a singularidade da peça, habilmente construída e com luz própria. Zé Henrique de Paula faz a encenação deslizar agilmente e o ritmo inquieto nunca deixa dispersar a atenção. A direção instaura ainda um desenho dinâmico de marcações que, em certos momentos, parece exalar o hálito das histórias em quadrinhos. Com espaços, escadas e níveis, um mosaico que tanto reproduz o escritório da corporação, o alto de um prédio como becos e ruas, a cenografia busca inspiração nos cabarés alemães da primeira metade do século XX e sua atmosfera de submundo.

A vigorosa trupe tem a oportunidade de explorar várias dicções vocais, animar uma eclética mistura de estilos musicais, passeando pelo jazz, gospel, balada, rap e balé, e encarnar personagens únicos e engraçados. Roney Facchini incorpora um Patrãozinho cínico e severo. Na pele de Luz, Bruna Guerin destila a meiguice de uma mocinha ingênua. Gerson Steves transforma o senador em uma figura covarde e pusilânime. Bonitão, na interpretação de Caio Salay, é um insurgente de encanto juvenil. Nábia Vilella marca forte presença como a serviçal Penélope. O Policial encarnado por Daniel Costa (*) é divertidamente petulante e presunçoso. Luciana Ramanzini mostra tiques cômicos na composição da espevitada Garotinha. Os dois últimos também funcionam como narradores que dão as boas vindas e não se furtam a revelar que o musical não terá final feliz. Os demais intérpretes cumprem satisfatoriamente diversos papéis importantes.  

Bizarra, sarcástica e moderna, a peça desdobra um ponto de vista sobre a sociedade que estamos construindo. O horizonte vislumbrado soa terrível. Se as pessoas buscam o direito de urinar sempre que quiserem e do jeito que preferirem, corporações capitalistas não perdem o apetite predador de controlar e aproveitar todas as atividades, até mesmo as funções fisiológicas humanas. Em diálogo elucidativo, um personagem diz ao outro que o público não acorrerá em massa ao teatro para assistir este musical. Certamente porque, no fundo, ele quer ignorar o fato de que seu modo de vida, a seguir nessa toada, irá se tornar inevitavelmente insustentável.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto: Ronaldo Gutierrez)

(*) Na atual temporada substituído por Zé Henrique de Paula. 

 

Avaliação: Ótimo

 

Urinal, O Musical

Texto: Mark Hollmann e Greg Kotis

Direção: Zé Henrique de Paula

Elenco: Bruna Guerin, Caio Salay, Daniel Costa, Gerson Steves, Nábia Vilella, Roney Facchini e outros.

Estreou: 03/04/2015

Teatro Porto Seguro (Alameda Barão de Piracicaba, 740, Barra Funda. Fone: 3223-2090). Quarta e quinta, 21h. Ingresso: R$ 50 a R$ 80. Até 21 de abril.

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