EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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A prima-dona cabocla

Ela é uma das cantoras líricas mais conceituadas do mundo. Radicada desde 2002 em Berlim, após cinco anos residindo em Viena, a soprano paraense Adriane Queiroz, 38 anos, integra o corpo solista da Staatsoper, a principal ópera estatal da capital alemã, que diariamente apresenta óperas, concertos e balés. Nesta casa de nível internacional, ela atua sob a batuta do prestigiado maestro argentino Daniel Baremboim, “um homem de tanta energia que parece carregar um motor dentro de si”, como ela o define.

A diva brasileira já dividiu o palco com o estrelado tenor espanhol Plácido Domingo, “um artista que nunca se coloca acima da música, simples e genial”, cantou com os meninos cantores de Viena e na celebrada Filarmônica de Berlim. Versátil, é capaz de passear por obras de compositores tão diversos quanto geniais – o arco inclui de Mozart a Beethoven, de Rossini a Puccini. Adriane representou alguns dos mais vigorosos papéis do universo lírico, como Susanna (As Bodas de Fígaro, foto abaixo à direita) e Zerlina (Don Giovanni, foto abaixo à esquerda), ambas de Mozart, além de Micaela (Carmen, de Bizet).

Por conta de tantos compromissos profissionais, poucas vezes ela se apresenta no Brasil. Em junho passado, em São Paulo, na estréia da orquestra do Theatro São Pedro, que executou concerto em homenagem ao compositor Carlos Gomes, a principal estrela da noite foi ela. A soprano brilhou em meio a solistas do naipe de Lício Bruno, Saulo Javan e Sergio Weintraub e seu desempenho não passou incólume pelo crítico Sidney Molina. “Ela é uma das principais figuras da música clássica brasileira. Sua voz é capaz de extrair o pathos de cada frase, graduando brilho e opacidade. Às vezes, parece mais orquestral do que a orquestra”, anotou em crítica publicada no jornal Folha de S. Paulo.

Outros especialistas avaliam que a voz de Adriane combina firmeza nos registros central e grave com a segurança nos agudos, virtude técnica difícil de ser alcançada. Pouco à vontade em concordar ou não com tais análises, ela lembra que o seu tipo de voz é mais comum do que se imagina. Afirma que 70% das mulheres são sopranos natas, biologicamente falando, e que numa audição com cinqüenta candidatas, em média umas quarenta dominam esse registro vocal.   

“Soprano é como doença, dá em todo lugar, com vozes lindas e silhuetas de Hollywood. O que vai fazer a diferença é a experiência e isso não tem plástica que resolva”, alfineta essa elétrica paraense de pele morena, aparência jovial e sorriso farto. “No fundo, o que importa é saber que estou cumprindo o meu destino e trabalhando com dignidade”, assinala ela, que recentemente emprestou sua voz ao monumental disco duplo Sinfonia n° 8, de Gustav Mahler, regido pelo cultuado compositor francês Pierre Boulez.

Boca fechada. Seja como for, sua rápida ascensão neste segmento bastante concorrido é digna de nota. Por sua origem classe média baixa, alguns a consideram uma espécie de cinderela do mundo lírico, embora não avalize a comparação. “Foi difícil entrar no circuito internacional, mas isso não faz da minha trajetória um folhetim mexicano”, resigna-se. Mesmo com o vento a favor, aprendeu que ainda precisa matar um leão por dia para sobreviver. “A responsabilidade e a cobrança são enormes, tanto faz se sou protagonista ou coadjuvante. A todo momento me sinto avaliada.” 

A sua rotina profissional em Berlim segue parâmetros militares e conspira contra a sua vida social. São três récitas semanais à noite e ensaios todas as manhãs de uma ópera seguinte. Às 15h ela fecha literalmente a boca por algumas horas para preservar as cordas vocais. Em média, participa de oito produções diferentes por temporada, que se desdobram em até 55 récitas por ano.

Nessa contagem, devem ser adicionados ainda eventuais concertos e récitas extras. Para efeito de comparação: em 2008, uma ativa soprano brasileira cantou apenas nove récitas em duas produções no Teatro Municipal de São Paulo. Adriane se reveza em papéis maiúsculos e minúsculos. A onda agora é trabalhar com diretores de cinema em ópera, que adoram misturar linguagens. A cineasta alemã Dóris Dorrie, por exemplo, a dirigiu em Turandot, de Puccini, e Cosi Fan Tutte, de Mozart.

Por mais que torça o nariz para aqueles que enxergam em sua trajetória ingredientes de um típico conto de fadas, não dá para ignorar o fato de que ela chegou ao pódio da música clássica por conta de um feixe feliz de acasos e sacrifícios pessoais. Nascida no pobre e populoso bairro de Terra Firme, na capital Belém, ela trabalhava desde os 14 anos com arte-educação em comunidades carentes quando, no final dos anos 1980, decidiu estudar música. Apostava que o conhecimento musical poderia funcionar como valiosa ferramenta na alfabetização de crianças de rua. “Com a inserção da música elas aprendiam mais facilmente a ler”, notou.

Sem saber absolutamente nada de teoria musical, ela foi picada pela mosca azul e se apaixonou pelo canto durante as aulas. Melhor: descobriu que tinha voz de soprano lírico. Ela cita três nomes importantes na sua formação acadêmica. A professora Marina Monarcha teve o condão de fazer aflorar sua paixão pelo canto lírico. A docente búlgara Malina Mineva a incentivou a se profissionalizar. O pianista Paulo José Campos de Melo foi decisivo ao recomendar aperfeiçoamento na Europa. “Adriane tem o poder de amansar feras e acordar os deuses, de assombrar e enternecer com sua voz”, elogia ele.

Personagens fortes. Em 1997, após pedir demissão do emprego, deixar marido e filho em Belém e contrariar os pais que sonhavam vê-la seguir carreira de advogada, desembarcou em Viena com pouco dinheiro no bolso, insegura e cheia de receios. Beliscou uma vaga na Universidade de Artes Cênicas e no Conservatório locais, após enfrentar rigoroso processo de seleção em uma das cidades mais rígidas no tocante à música clássica.

Como tinha 25 anos na ocasião, dois acima do teto de corte, só foi aceita porque, além de demonstrar aptidão técnica, comprometeu-se a fazer o curso em quatro e não seis anos e aprender alemão básico em apenas três meses. “Eles são metódicos em estabelecer barreiras porque tudo é uma questão de estrutura física: quanto mais velho, mais difícil fica desenvolver a musculatura necessária ao canto lírico”, conta.

Foi um período em que amadureceu rapidamente. “Tinha horas que eu ficava tão desesperada que mal conseguia controlar as crises de choro. Aí eu parava e pedia a Deus para me guiar”, recorda. Durante o tempo em que viveu na capital austríaca, atuou na Volksoper, o teatro de operetas e óperas cômicas em língua alemã.

Nunca se acomodou, no entanto. Vivia farejando novas oportunidades. Chegou a fazer audição em Berlim, quando ouviu de um agente que era gorda demais para atuar nos palcos médios alemães. Não desistiu e voltou dois anos depois para novos testes. Acabou selecionada por Baremboim para figurar como solista da Staatsoper. “Fui escolhida durante a Copa do Mundo no Japão e Coréia do Sul. Como ele adorava a Seleção Brasileira, acho que eu entrei pela nacionalidade. Eu tinha grife”, brinca.  

Novamente se viu subindo um degrau de cada vez. Começou cantando papéis pequenos, como Barbarina, em As Bodas de Fígaro, e foi assumindo trabalhos mais expressivos. Hoje interpreta personagens fortes nas óperas Fidélio (foto acima), de Beethoven (Marzellini), L´italiana in Algeri, de Rossini (Elvira), e em obras famosas de Mozart, como A Flauta Mágica (Pamina). O compositor austríaco, aliás, é um dos maiores desafios para cantores líricos: “Suas óperas exigem um trabalho peculiar porque a orquestra é mais transparente e os recitativos mais claros e acordados com o texto”, explica.

Adriane acredita ter fincado de vez seu nome no cenário lírico europeu. Só outra brasileira, a cantora lírica Eliane Coelho, que vive há mais de três décadas naquele continente, tem maior projeção. Um dos sonhos da soprano é interpretar a protagonista em Madame Butterfly, de Puccini, um papel complicado de se criar por conta da origem oriental da personagem. “Creio que para as cantoras latinas o grau de dificuldade aumenta porque não temos intimidade com o universo das gueixas”, justifica. “É preciso equilibrar base técnica e experiências de outros papéis.”

Cara de paisagem. Nesse ano, a sua agenda anda lotada. Meses atrás estreou em solo português, na cidade do Porto, onde se apresentou na Casa da Música sob a batuta do maestro Christoph König. Cantou na Konzerthaus, maior casa de concertos de Berlim, e se apresentou duas vezes no festival 3 Séculos de Canções (foto ao lado), em São Petersburgo, na Rússia. Por fim, fez sua estréia no tradicional Classic Open air am Gendarmenmarkt, na capital alemã, quando se apresentou ao ar livre para seis mil pessoas. Mais recentemente subiu aos palcos no papel de Rosalinde, na opereta cômica O Morcego, de Johann Strauss. 

Quase uma década depois, considera estar adaptada ao estilo de vida em Berlim. Vive ao lado do marido, que trabalha como ator clown e produtor, e do filho de 20 anos. "A cidade tem aquela paz de vilarejo, mas com todas as vantagens de uma grande metrópole, e como sou uma cabocla de Belém, dou muito valor ao verde do lugar”, diz.

Quando a agenda permite, atende a convites e corre para fazer apresentações especiais no Brasil, como a mini temporada no Theatro São Pedro. Quatro anos atrás, no Theatro da Paz, em Belém, representou Ceci numa montagem de O Guarani (foto abaixo), de Carlos Gomes. Mas não quer só trabalho aqui. Confessa sentir saudades do cheiro de chuva, de tomar açaí, de ouvir o carimbó do Mestre Varequete, de se espreguiçar na rede, de jogar conversa fora com os amigos.

A soprano lamenta o pouco espaço e atenção que a música clássica desperta no País. “Apesar de sermos um celeiro de talentos no canto lírico, caminhamos a passos de tartaruga para a profissionalização. Mesmo capacitados, não temos nenhuma companhia de ópera fixa”, indigna-se. Cita o compositor Villa Lobos, que brigava pelo ensino da música nas escolas por saber a importância dessa linguagem para o aperfeiçoamento humano. “Nossas crianças não sabem de sua própria cultura. Pergunte se conhecem uma cantiga de roda e qual o significado simbólico do folclore. Certamente irão fazer cara de paisagem”, aposta. Na Europa, conta, o ensino da música clássica é massificado. No Brasil, ainda segue confinado a um gueto e limitado a uma elite.

Ao lembrar-se dos tempos em que ensinava arte para crianças carentes, ela relativiza o status que alcançou na carreira. “Não vivo do glamour da profissão, algo tão abstrato e passageiro. Jamais vou me desconectar da realidade que conheci ou negar minhas raízes”, avisa. Para a prima-dona cabocla, seu trabalho não tem nada de excepcional. “Se feito com dignidade, não vejo diferenças entre uma soprano, um jornalista, uma cozinheira, um pedreiro e uma dona-de-casa. Cada uma dessas atividades tem as suas especificidades e importância na sociedade.”

 

 

Veja cena de O Guarani com Adriane Queiroz:

 

 

 

 

 

 

 

 

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