EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

  • Font size:
  • Decrease
  • Reset
  • Increase

A voz das mulheres de vida fácil

A chamada profissão mais antiga do mundo tem um jornal no Brasil chamado Beijo da rua, que chega gratuitamente a dezessete estados, é distribuído em boates, casas de massagem, áreas de meretrício e zonas portuárias e sobrevive sem anúncio, em razão do preconceito. Fundado em dezembro de 1988 e produzido na ONG carioca Davida, recebe aporte financeiro do Fundo Brasil de Direitos Humanos, apoio com prazo de validade até abril desse ano, e mantém parceria com a Rede Brasileira de Prostitutas, um comboio de mais de vinte associações de prostitutas que lutam pelo direito, cidadania, prevenção e saúde de quem vive do trabalho sexual. Bimestral, a publicação de doze páginas, tiragem de 7.500 exemplares e versão online (www.beijodarua.com.br) é, provavelmente, a única do gênero no mundo.

De perfil combativo, o veículo serve de voz das profissionais do sexo e escancara sem inibição sua vocação. O próximo número, por exemplo, será uma edição especial com 36 páginas e cheio de artigos polêmicos que abordarão um tema crítico para as mulheres da vida: a “limpeza urbana” associada a grandes eventos internacionais, como a Copa de 2014 e as Olímpiadas de 2016, que carregam com eles discursos alarmistas sobre tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, potencializando a repressão sobre esse tipo de comércio.

“Na Alemanha e na África do Sul, que abrigaram as duas últimas Copas, circulou o número mágico de que quarenta mil mulheres estrangeiras seriam levadas à força aos países para se prostituir. No entanto, nada disso se comprovou. Pelo contrário, as prostitutas identificaram estabilidade ou até queda nos programas, porque as despesas dos torcedores são bastante altas e muitos deles ainda estavam com suas próprias mulheres e famílias. E os homens desacompanhados estavam interessados mesmo era no futebol. Por que seria diferente no Brasil?, questionao editor do periódico Flavio Lenz, que esteve presente no I Encontro Nacional das Prostitutas, em 1987, no Rio de Janeiro, de onde saiu a proposta de criação de um veículo de comunicação que representasse a comunidade. “Naquela época a prostituição era discutida por médicos, psicólogos, assistentes sociais, sociólogos e outros acadêmicos, mas nunca por quem realmente vivia da profissão”, assinala ele.

Defesa das meretrizes. Ao longo de sua existência, o jornal passou pela fase do espanto generalizado das pessoas, sobreviveu à frustrada tentativa de venda em bancas, durante curto período chegou a captar alguma publicidade e nos últimos anos consolidou-se como símbolo da luta da categoria pela conscientização e regulamentação da atividade. Nesses 24 anos, o Beijo da rua trouxe notícias do setor, gerou matérias de serviço, publicou colunas e artigos assinados por quem é do ramo e cobriu eventos ligados à profissão. Em suas páginas, o ofício é tratado com dignidade e sem nenhum tipo de ranço. “Mesmo as fotos são mais discretas e comportadas comparadas às da Playboy”, brinca Lenz. Outro foco da publicação é servir de bunker das causas e reivindicações do movimento.

Em 1997, o veículo estampou a revolta da classe, que derrubou o atabalhoado projeto de cinco ONGs de rodar kombis pelas áreas de meretrício da Baixada Fluminense para coletar sangue das profissionais. “Era uma idéia que só piorava o estigma porque não oferecia o mesmo teste anti-HIV nas portas das empresas, por exemplo”, lembra o editor. “Além disso, há vários centros gratuitos de teste e aconselhamento”. Lucinha Araújo, mãe de Cazuza, e o ex-deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) chegaram a engrossar o cordão de defesa das meretrizes. Em 2003, a publicação abraçou uma campanha contra a Igreja Católica. Dias antes um bispo colombiano afirmara publicamente que todo preservativo continha orifícios por onde vazava o vírus da Aids. A edição não perdoou: imprimiu na capa a foto de uma camisinha com a frase “Pecado é não usar”.

Assuntos explosivos, aliás, costumam rechear o periódico. Em julho de 2002 (foto ao lado) a chamada da primeira página era uma pergunta provocativa: “Você já gozou?”. A reportagem destrinchava por meio de entrevistas, histórias e depoimentos o que fazia do sexo pago um bom ou mau programa, segundo clientela e profissionais. Cliente ruim é o sujeito que não paga o combinado ou quem não quer colocar preservativo? A boa prostituta é aquela que se apaixona?

Já em agosto do ano passado, a manchete “Pecado não é crime” repercutiu a decisão de um juiz fluminense de permitir o funcionamento de uma casa de prostituição em São Gonçalo (RJ), o que é vedado no Código Penal. André Luiz Nicolitt argumentou que “o moderno direito penal não pode considerar crime condutas que mais se aproximam do pecado, tampouco condutas socialmente aceitas”, acrescentando ainda não ter verificado “exploração sexual de criança ou adolescente nem aliciamento de trabalhadoras”. Na sentença, o juiz cita a ONG Davida e a grife Daspu (marca de roupas criada em 2005 para gerar visibilidade e recursos para a organização), “que lutam para o reconhecimento e melhoramento das condições de trabalho destas profissionais, o que encontra eco em princípios fundamentais da República, como a livre iniciativa e os valores sociais do trabalho”. A profissão mais antiga do mundo ganhou com essa decisão um aliado, amplificando a voz e a batalha das prostitutas pela regulamentação do seu trabalho. Hoje, o termo “profissionais do sexo” está incluído na Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho.

 

Crítica do espetáculo Filha, Mãe, Avó e Puta – uma Entrevista

A idealizadora do jornal Beijo da rua, da ONG Davida e da irreverente grife Daspu é a ex-prostituta Gabriela Leite, 60 anos, mundialmente reconhecida como uma das maiores lideranças em campanhas de luta pelos direitos humanos e de combate a Aids entre as mulheres que trabalham no ramo sexual. Sua história de vida incomum pode ser vista na singela peça Filha, Mãe, Avó e Puta – uma Entrevista, dirigida por Guilherme Leme, versão teatral para o livro homônimo escrito por ela. Na montagem, Gabriela é interpretada pela atriz Alexia Dechamps, que relata sua trajetória para um jornalista vivido pelo ator Louri Santos. Nascida uma família classe média paulistana, ela abandonou no final dos anos 1960 o trabalho de secretária e os cursos de Filosofia e Sociologia na Universidade de São Paulo para se dedicar à prostituição. Na década de 1970 mudou-se para Belo Horizonte e, após passagem pela capital mineira, desembarcou em 1982 no Rio de Janeiro, instalando-se na rua remanescente dazona do mangue, conhecida como Vila Mimosa. Foi ali, ainda como prostituta, que iniciou o trabalho de organização e conscientização da categoria, impulso exercitado desde o início da carreira em São Paulo, quando chegou a participar de uma passeata ao lado de artistas contra um delegado que sumia com prostitutas.

Sem resvalar na militância ou abrir-se para a rememoração fácil de episódios sexuais, mas sublinhando a prostituição como estilo de vida, o espetáculo extrai seu interesse dos inusitados relatos da protagonista, flagrada na idade atual. Convencional, linear e estruturada como se fosse um talk show, a montagem vale-se do trabalho dos intérpretes. Ambos não chegam a brilhar no palco, mas são convincentes em seus papéis. Mais importante que a performance, no entanto, é a história de viés humanista, com doses de drama e humor, que vai se configurando. Se o jornalista, em suas intervenções, recheia o enredo com dados e informações relevantes sobre a entrevistada, cabe a esta articular o discurso mais afetivo e de hálito folhetinesco. Mesmo que o espetáculo se ressinta às vezes de mais espontaneidade, em especial nos momentos em que a atriz busca emular gestos e tiques da retratada, a encenação acaba seduzindo pela riqueza do material exposto. No emocional desfecho, a personagem confessa o projeto de morar em uma cidadezinha do interior, mergulhada nos prazeres da culinária, ao lado do companheiro de vida, o jornalista Flávio Lenz.    

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )                                                       

(Foto: Janete Longo)

 

Avaliação: Bom

 

Filha, Mãe, Avó e Puta – uma Entrevista

Texto: Gabriela Leite                                                                                                                               

Adaptação: Marcia Zanelatto                                                                                                                                     

Direção: Guilherme Leite                                                                                                                               

Elenco: Alexia Dechamps e Louri Santos                                                                                                     

Estreou: 28/02/2012                                                                                                                                        

Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Álvares Penteado, 112, Centro. Fone: 3113-3651).  Terça a quinta, 20h. Ingresso: R$ 6. Até 19 de abril.

 

Veja cenas do espetáculo:

 

 

 

 

 

Comente este artigo!

Modo de visualização:

Style Sitting

Fonts

Layouts

Direction

Template Widths

px  %

px  %